Francisco Mairlon foi libertado, esta quarta-feira, de uma prisão em Brasília, depois de ter cumprido 15 anos por um crime que não cometeu - e pelo qual poderia ter ficado detido até 2068. À saída do estabelecimento prisional o homem disse "não acreditar" no que estava à acontecer: "Hoje é o dia mais feliz da minha vida".
Apesar de haver agora um desfecho feliz, o caso envolveu um triplo homicídio muito violento. O crime, que aconteceu em 2009, 'valeu' mesmo uma série, que estreou este ano na Globoplay e que se chama ‘Crime da 113 Sul’. Explica o G1, que Mairlon foi dizendo ao longo dos anos que não queria sair da cadeia em decorrência do cumprimento de pena: "Eu só quero sair daqui ilibado".
Os familiares sempre defenderam que o homem, hoje com 37 anos, estava inocente, e chegaram mesmo a começar a estudar Direito para que o pudessem ajudar. foi através da organização não-governamental (ONG) Innocence Project - que trata de erros judiciais - que o homem conseguiu ser libertado. O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ilibou-o por unanimidade na terça-feira, ordenando que este saísse da prisão "de imediato".
Abaixo, pode ver a reação de Mairlon à saída da cadeia, onde ele expressa também muita gratidão: "A todas as pessoas que não desistiram de mim, a ONG Innocence que insistiu, ainda. Família, amigos, não sei nem o que falar".
"É um momento de êxtase que ninguém pode imaginar. Fora os obstáculos, as adversidades que eu tive que passar aqui dentro, ser bastante resiliente com as coisas que aconteceram."
LIVRE DEPOIS DE 15 ANOS | Francisco Mairlon deixou o presídio da Papuda após o STJ anular a condenação dele por suposto envolvimento no Crime da 113 Sul — caso emblemático de Brasília. "Dia mais feliz da minha vida", disse Francisco ao sair da prisão. pic.twitter.com/22XonGOegA
— Jornal da Globo (@JornalDaGlobo) October 15, 2025
As facadas, as vítimas e tudo sobre o crime
O crime aconteceu a 28 de agosto, quando três pessoas foram brutalmente assassinadas e e os seus corpos encontrados no 6.º andar de um apartamento localizado numa zona mais rica da capital brasileira. Apesar de o crime ter acontecido na tarde desse dia, os corpos foram encontrados a 31 de agosto.
José Guilherme Villela, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi morto com 38 facadas. Para além deste homem, de 73 anos, foi também encontrada morta a esposa, Maria Carvalho Mendes Villela, uma advogada com 69 anos. Tinha 12 facadas. Também a empregada doméstica foi encontrada sem vida. Francisca Nascimento da Silva tinha 58 anos, e foi agredida com 23 facadas.
O caso levou várias reviravoltas, com outros detidos a dizerem que tinha sido contratados para cometer o crime, inclusive a mando da filha do casal, Adriana Villela.
A filha foi indiciada pela morte dos pais logo no início da investigação, tendo sido referido que a mulher tinha uma relação conflituosa com os pais, para além de ter sido encontrada uma carta na qual a mãe "brigava" com a filha por causa de questões financeiras, assim como havia “evidências comportamentais” da suspeita que levaram as autoridades a avançar com esta acusação.
Os outros detidos
Para além de Francisco Mairlon, houve outros dois detidos: Leonardo Campos Alves e Cardoso Santana. De acordo com o G1, Leonardo Campos Alves foi o primeiro detido, no ano seguinte. Trabalhou durante 14 anos no condomínio em que as três pessoas foram encontradas, e, seis meses antes do crime, foi demitido. O homem mudou-se para o estado de Minas Gerais, e, ao ser preso, confessou o crime - e também queria agido com um sozinho, Paulo Cardoso Santana.
Esta foi a primeira versão das autoridades, que dava conta de que a dupla teria agido sozinha, e que para além das facadas, tinham levado milhares de dólares da casa, assim como joias.
A investigação acabou por mudar de 'mãos', e, já numa outra esquadra, Leonardo desmentiu a primeira versão, alegando depois que tinha sido contratado pela filha a troco de 27 mil dólares (cerca de 23 mil euros) e todas as joias que tinham retirado do apartamento.
Nesta altura, contava que nunca tinha subido ao apartamento - ao contrário do que tinha dito primeiro - e quem tinha ido até ao apartamento tinha sido o seu sobrinho Paulo e o amigo 'Mairton', que as autoridades identificaram como Francisco Mairlon.
Conta o G1 que o trio se conhecia de uma altura anterior ao porteiro ter sido demitido, quando, em 2008, foram vizinhos.
A detenção de Mairlon
Mairlon fazia entregas de gás num negócio da família e tinha aberto a sua mercearia pouco tempo antes de ser preso. Para além disso, tinha casado também há pouco tempo e sua esposa estava grávida de oito meses quando ele foi detido.
Na altura, quando foi levado até à esquadra, o homem, então com 22 anos, admitiu que tinha ido até ao local onde se tinha passado o crime, mas que não tinha entrado. Mais tarde, afirmou que apenas tinha dito que tinha ido ao local porque teve medo que acontecesse algo à sua esposa e filho. Nunca houve provas materiais no processo de que Mairlon tivesse estado no local, apesar de ter sido confrontado com essa informação.
As autoridades conseguiram localizar Leonardo, no entanto, em lojas - onde foram trocados dólares e joias.
Para a ONG, responsável pela defesa de Mairlon, o antigo porteiro envolveu o ex-vizinho por forma a tentar arranjar uma pena menor para si.
Supremo considera situação "inadmissível"
O STJ considerou que a conduta durante os depoimentos 'feriu' a defesa e contraditório de Mairlon. "Existindo depoimentos incriminando o recorrente bem como depoimentos judiciais inocentando-o, caberia ao magistrado singular, na ocasião de proferir a decisão de pronúncia, confrontar os elementos de informação", explicou o relator do caso, dando conta de que "é inadmissível que, num Estado Democrático de Direito, um acusado seja pronunciado [levado a júri] e condenado por um tribunal de juízes leigos apenas com base em elementos de informação da fase extrajudicial, dissonantes da prova produzida em juízo.
Os juízes assistiram aos vídeos dos depoimentos prestados, tendo sido apontado que a falta de advogado no local é um grave erro. "Os vídeos mostram de que maneira as coisas acontecem na delegacia, sem a presença de advogado, após horas exaustivas de depoimento, suprimindo direitos dos investigados, e o resultado é o incremento enorme do risco de condenações injustas", é explicado.
Para o STJ, os vídeos são "claros, no sentido de que houve uma coação moral".
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