Naseem al-Radee foi um dos quase dois mil prisioneiros palestinianos libertados por Israel na segunda-feira, 13 de outubro. Mas, antes de abandonar a prisão israelita, os guardas prisionais decidiram dar-lhe uma despedida à medida daquilo que foram os últimos dois anos: de punho cerrado, numa cela imunda.
Radee, de 33 anos, conta ao The Guardian, que foi detido por soldados israelitas numa escola que tinha sido adaptada para um centro de refugiados em Beit Lahiya, no norte da Faixa de Gaza.
Os soldados que o capturaram - cerca de dois meses depois do início do conflito, a 9 de dezembro de 2023 - fizeram-no também com recurso à violência. Radee levou com uma bota no olho. Dois dias depois, ainda não tinha voltado ao normal, e mesmo hoje continua sem ser o mesmo.
O palestiniano passou vinte e dois meses em centros de detenção israelita, incluindo cem dias numa cela subterrânea. Ele, tal como muitos outros libertados ao mesmo tempo, relata espancamentos, torturas e fome constante ao longo destes dois anos.
"As condições na prisão eram extremamente duras: desde termos as mãos e os pés constantemente atados a sermos submetidos às formas mais cruéis de tortura", recorda, referindo-se ao tempo que passou na prisão de Nafha, no deserto de Negev - o último sítio onde esteve antes de ser libertado.
Os espancamentos, diz o palestiniano, não eram esporádicos: faziam quase parte de um regime cronometrado ao minuto de abusos e torturas.
"Eles usavam gás lacrimogéneo e balas de borracha para nos intimidar, para além dos abusos constantes e dos insultos. Tinham um sistema rígido de repressão", relembra, "o portão eletrónico abria-se quando os soldados entravam e eles vinham com os cães a gritar 'de barriga no chão', e começavam a espancar-nos sem misericórdia".
Nas celas, o espaço era pouco. Muitas vezes, estavam 14 pessoas num sítio que, diz Radee, parecia ter sido pensado para apenas cinco. Pior: as condições eram insalubres ao ponto de causarem doenças fúngicas e cutâneas que o pouco tratamento médico na prisão não aliviou.
Na segunda-feira, o encarceramento de Radee terminou e num dia, para o palestiniano, propício à celebração: a sua filha mais nova, Saba, completava o seu terceiro aniversário no 13 de outubro.
"Eu estava em êxtase por ser libertado, porque a data coincidia com o terceiro aniversário da minha filha mais nova, Saba. Tinha planeado fazer-lhe o melhor presente de sempre para compensar o primeiro aniversário dela, que não pudemos celebrar porque a guerra começou", conta Radee.
Mas ao ser libertado, e ao tentar ligar para a mulher, uma voz soou do outro lado, dizendo-lhe que o número que pretendia ligar não estava atribuído. Foi quando descobriu que enquanto esteve preso a mulher e todos, menos um, dos seus filhos tinham morrido em Gaza, vítimas do conflito.
"Eu tentei encontrar alguma alegria em ser libertado, mas a Saba foi com a minha família - e a minha alegria foi com ela."
Lei israelita permite detenção por "motivos razoáveis para acreditar" que pessoa é suspeita
A história de Radee repete-se entre os milhares de prisioneiros palestinianos em Israel, detidos, desde 7 de outubro de 2023, simplesmente por parecerem suspeitos - ou por um soldado israelita assim o achar.
Não são os palestinianos, ou as organizações humanitárias que o dizem - é a própria lei israelita, alterada desde esse ataque, que o permite.
Em dezembro de 2023, o parlamento alterou a lei dos combatentes ilegais para permitir a detenção administrativa sem acusação quando um soldado tiver “motivos razoáveis para acreditar” que a pessoa é um combatente ilegal (na prática, um membro do Hamas.
Detido e em Israel a detenção desse 'suspeito' pode ser prolongada quase indefinidamente.
Com a lei alterada, as detenções de palestinianos multiplicaram-se aos milhares. Aliás, segundo a ONG Comité Público Contra a Tortura em Israel (PCATI), em junho deste ano estavam 11 mil palestinianos encarcerados nas prisões israelitas. Destes, 2.780 eram residentes do enclave.
"No geral, a quantidade e o nível da tortura e abuso nas prisões israelitas e campos militares aumentou drasticamente desde o 7 de outubro", relata o diretor executivo do PCATI, Tal Steiner. "Faz parte da política de decisores políticos como Itamar Ben-Gvir, e outros."
Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional de Israel, chegou mesmo a gabar-se, numa publicação no X em julho, de fornecer apenas "o mínimo dos mínimos de comida" aos prisioneiros.
Jovem de 22 anos emagreceu até aos 42 quilos na prisão
Radee entrou na prisão com 93 quilos. Dois anos depois, quando saiu tinha perdido 30 e tem agora 60 quilos.
Um outro prisioneiro, Mohammed al-Asaliya, de 22 anos, chegou com 75 quilos. A certa altura, durante a detenção, a balança não passava dos 42 quilos.
O jovem, raptado também em dezembro de uma escola em Jabalia, conta momentos de tortura semelhantes a Radee.
"Havia uma área a que eles chamavam ‘disco’, onde eles tocavam música aos berros sem parar durante dois dias seguidos”, recorda. “Esta era uma das formas de tortura que eles mais usavam e que era mais dolorosa", diz, acrescentando que também eram "pendurados em paredes", molhados e depois sujeitos a correntes de ar geladas e, às vezes, até "atiravam pimenta em pó aos detidos".
E para qualquer que fosse, depois, a consequência de saúde, para Asaliya "nunca houve cuidados médicos".
"Tentámos tratar-nos a nós próprios e usar o desinfetante do chão nas nossas feridas, mas isso só piorou o problema", relata.
As condições de insalubridade da história de Radee também aqui se repetiam: "os colchões estavam encardidos, o ambiente não era saudável, a nossa imunidade estava fraca, e a comida contaminada".
Devido às condições em que esteve durante dois anos, Asaliya desenvolveu sarna, uma doença de pele contagiosa, que causa comichão intensa e borbulhas.
Radee e Asaliya, mesmo assim, no que toca à sua saúde, fizeram parte dos sortudos.
O hospital de Nasser, em Gaza, que recebeu os detidos na segunda-feira, diz ter sido obrigado a transferir uma grande parte dos prisioneiros retornados para os cuidados urgentes por se encontrarem em estado grave de saúde.
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