A autoridade do Estado está a desintegrar-se à medida que a violência dos gangues toma conta da capital haitiana, Porto Príncipe, e espalha-se além, paralisando a vida quotidiana e forçando as famílias a fugir, afirmou Guterres numa reunião do Conselho de Segurança da ONU focada no país mais pobre do continente americano.
"Os civis estão sitiados, com relatos alarmantes de violação e violência sexual. Hospitais e escolas estão sob repetidos ataques. O Estado de Direito entrou em colapso", descreveu.
Apesar do nível de sofrimento, o apelo humanitário feito em prol do Haiti é o menos financiado do mundo.
Para 2025, o apelo humanitário do Haiti é de 908 milhões de dólares (777,3 milhões de euros) para apoiar 3,9 milhões de pessoas.
Porém, menos de 10% foram recebidos - "fazendo do Haiti o apelo humanitário menos financiado do mundo", observou o também antigo primeiro-ministro português, sublinhando que o país "continua vergonhosamente negligenciado e lamentavelmente subfinanciado".
Como resultado, mais de 1,7 milhões de pessoas correm o risco de não receber qualquer assistência.
"Isto não é um défice de financiamento. É uma emergência de vida ou de morte. Exorto todos os doadores a agirem antes que as operações de salvamento sejam interrompidas", instou.
O foco da reunião do Conselho de Segurança foi o impacto desta crise nas crianças haitianas.
O relatório anual da ONU sobre crianças e conflitos armados colocou o Haiti entre os cinco países com maiores violações graves contra crianças em 2024.
As crianças haitianas estão a ser raptadas e mortas, recrutadas e sujeitas a violência sexual, incluindo violações coletivas.
"São crimes que marcam corpos, mentes e futuros", lamentou o secretário-geral.
Guterres admitiu ainda alarme com o surgimento dos chamados grupos de autodefesa comunitária, alguns alinhados com as forças policiais, que estão implicados em graves violações, incluindo execuções sumárias de crianças.
O Haiti, um dos países mais carenciados do mundo, há muito que sofre com a violência de gangues criminosos, acusados de homicídio, violações, pilhagens e raptos, num contexto de grande instabilidade política.
Contudo, apesar de a situação política continuar frágil no país, Guterres disse hoje que vislumbra sinais de esperança e instou a que essas "conquistas frágeis" sejam protegidas e expandidas.
"Sinto-me encorajado pela crescente cooperação entre o presidente do Conselho Presidencial de Transição, Laurent Saint-Cyr, e o primeiro-ministro, Alix Didier Fils-Aimé, que estão a liderar consultas para impulsionar o processo político", esclareceu o chefe das Nações Unidas.
Guterres aproveitou ainda para instar o Conselho de Segurança a agir rapidamente para autorizar uma força internacional para o Haiti, apoiada pela ONU através de apoio logístico, operacional e financeiro.
O antigo primeiro-ministro português defendeu que as medidas de segurança devem ser acompanhadas por uma pressão cada vez maior sobre aqueles que alimentam a violência, nomeadamente com a aplicação de sanções.
"Isto inclui um embargo de armas eficaz, assim como uma expansão direcionada das sanções contra líderes de gangues, financiadores, traficantes de armas e outros a eles ligados. Estas medidas são vitais para cortar as armas e o dinheiro que sustentam o caos", reforçou.
De acordo com Guterres, a fiscalização nos portos, fronteiras e 'online' deve ser reforçada, em estreita coordenação com os parceiros regionais.
"Com a unidade dentro do país e a determinação deste Conselho, o povo haitiano poderá emergir desta tempestade perfeita, começar a transformar as dificuldades em esperança e reconquistar o seu futuro", concluiu, manifestando a sua "solidariedade inabalável" para com o povo haitiano.
Nesse contexto, a embaixadora norte-americana junto da ONU, Dorothy Shea, anunciou hoje, juntamente com o Panamá, um projeto de resolução para ajudar a combater a crescente violência, estabelecendo uma "Força de Repressão de Gangues" e um Gabinete de Apoio da ONU para prestar apoio logístico aos esforços no terreno.
"A próxima força internacional deve ter recursos para manter territórios, proteger infraestruturas e complementar a Polícia Nacional Haitiana", acrescentou a diplomata, sem avançar detalhes.
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