Os relatos dos norte-coreanos que conseguiram escapar da Rússia pintam uma imagem de condições laborais desumanas, que os próprios comparam à escravatura.
Falam de dias de 18 horas a trabalhar na construção de prédios e apartamentos, das 6h00 às 2h00 do dia seguinte; de férias anuais que duram apenas dois dias; e de supervisores violentos que “espancam” quem adormece em pé.
“Algumas pessoas deixavam o seu posto para ir dormir durante o dia, ou acabavam por adormecer em pé, mas os supervisores encontravam-nos e espancavam-nos. Sentia-me como se estivesse a morrer”, relatou um trabalhador, apelidado de Chan, em entrevista à BBC.
“Acordar era aterrorizador, porque percebia que tinha de repetir tudo de novo”, contou Tae, outro trabalhador na mesma situação.
E acordava num contentor, sujo e sobrelotado, infestado por insetos, ou até mesmo nos próprios edifícios que estava a construir, com lonas a fazer de portas, para tentar travar as correntes frias. E, de lá, não podia sair.
Os trabalhadores são vigiados atentamente por agentes do Departamento de Estado da Segurança da Coreia do Norte, que os proíbem de abandonar o local de construção.
Nam, outro trabalhador, contou que chegou a cair de uma altura de quatro metros e bateu com a cabeça de tal forma que ficou incapaz de trabalhar. Mesmo assim, e mesmo admitindo a gravidade dos ferimentos, os supervisores não permitiram que saísse para ir ao hospital.
Rússia promete melhores salários a norte-coreanos
Todos estes homens (e muitos mais que permanecem em silêncio) foram para a Rússia de livre vontade - embora alguns possam alegar que foram enganados.
Os empregos na construção no estrangeiro são altamente procurados pelos norte-coreanos, que procuram uma forma de escapar da pobreza. São trabalhos quase que de prestígio, que só escolhem os homens de maior confiança, e depois de um processo de seleção rigoroso.
Saem da Coreia do Norte com a promessa de melhores salários e com a esperança de que, quando voltarem, vão conseguir pagar uma casa para as suas famílias, ou abrir o próprio negócio.
A realidade acaba, depois, por não corresponder às expetativas.
A grande maioria do salário que recebem é enviado diretamente para o estado, tabelado como “taxas de lealdade”. O restante (entre os 86 a 172 euros por mês) nem sequer é entregue mensalmente aos trabalhadores. Fica apontado num caderno e só quando o funcionário regressa a casa é que recebe o salário pelo tempo que trabalhou. A tática, dizem os entendidos, é recente e tem como objetivo desincentivar as fugas.
Mesmo assim, Tae afirmou que o mais “humilhante” foi perceber, ao chegar ao local, que outros trabalhadores da Ásia central recebem cinco vezes mais do que os norte-coreanos por um terço do trabalho.
“Senti-me como se estivesse num campo de trabalho forçado”, confessou Tae.
Outro trabalhador, Jin, relembrou, com alguma raiva, como os outros trabalhadores gozavam com os norte-coreanos: “Vocês não são homens, são máquinas que conseguem falar”. Chamavam-lhes “escravos”, contou, em tom de escárnio.
Para Jin o ponto de rutura chegou quando o supervisor lhe disse que quando regressasse à Coreia do Norte, provavelmente não ia receber qualquer salário, porque o estado precisava do dinheiro. Pouco depois, fazia as malas e punha a própria vida em risco para escapar da Rússia.
Supervisores restringem liberdades para impedir fugas
Nos últimos anos, um número reduzido de norte-coreanos conseguiram orquestrar as próprias fugas, através de telemóveis (proibidos pelos supervisores), que conseguem comprar com o pequeno subsídio diário que recebem para cigarros ou álcool.
À BBC, múltiplas fontes contaram que as autoridades norte-coreanas estão a restringir ainda mais a liberdade dos trabalhadores, para tentarem impedir qualquer fuga.
É nesse sentido que os grupos são submetidos a cada vez mais frequentes sessões de formação ideológica e autocrítica, onde são obrigados a declarar a sua lealdade ao líder supremo da Coreia do Norte, Kim Jong Un, e a registar os seus defeitos.
As saídas mensais, que costumavam acontecer uma vez por mês, são agora mais afastadas entre si e mais raras, e, quando acontecem, são em grupos de cinco, permanentemente monitorizados.
O governo sul-coreano afirmou que o número de fugitivos da Rússia que chegam a Seul diminuiu para metade desde 2022: de 20 por ano para apenas 10.
Força de trabalho russa é reduzida por causa da guerra com Kyiv
O uso de norte-coreanos na força laboral de Moscovo não é novidade, nem surgiu com a guerra na Ucrânia. É uma parceria já longa com Pyongyang (e com Kim Jong Un), que vale milhões de euros ao regime norte-coreano.
Em 2019, as Nações Unidas proibiram esta prática, numa tentativa de cortar os fundos a uma Coreia do Norte que continuam investia em armas nucleares. Na altura, a maior parte dos trabalhadores na Rússia regressaram a casa - mas, agora, começam a ser enviados de novo.
Segundo inteligência sul-coreana, mais de dez mil trabalhadores foram enviados para a Rússia o ano passado. Este ano, fala-se do enviado de outros 50 mil.
A necessidade surge da parte de Moscovo, que alimenta uma ofensiva contra a Ucrânia há mais de três anos e, por isso, tem grande parte da força de trabalho nacional mobilizada na guerra (onde, alegadamente, também já estão norte-coreanos).
“A Rússia está a sofrer uma grave escassez de mão de obra neste momento e os norte-coreanos oferecem a solução perfeita. São baratos, trabalhadores e não causam problemas”, afirmou Andrei Lankov, especialista em relações entre a Coreia do Norte e a Rússia.
De acordo com a mesma fonte de inteligência sul-coreana, o próximo passo para estes trabalhadores será irem para regiões ucranianas ocupadas pela Rússia para iniciarem o processo de reconstrução.
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