"Gaza, neste momento, é o sítio mais imprevisível e inseguro na Terra"

Raul Manarte é psicólogo da Médicos Sem Fronteiras. Já fez várias missões pelo mundo fora, mas revela nunca ter estado num "cenário onde as pessoas não podiam sair", descrevendo Gaza, onde voltou em julho, como "o sítio mais imprevisível e inseguro na Terra". Enquanto psicólogo, juntamente com a sua equipa, tenta "devolver um pouco de sentido de normalidade" aos palestinianos.

Raul Manarte

© Reprodução Instagram/ Raul Manarte

Maria Gouveia
12/08/2025 09:30 ‧ há 2 horas por Maria Gouveia

Mundo

Médio Oriente

Raul Manarte é psicólogo da organização não governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF) e lidera a equipa de Saúde Mental em Gaza. Esteve no território palestiniano em novembro do ano passado, regressou passados oito meses, em julho, e revelou ter encontrado "as coisas piores".

 

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, falou das dificuldades que a população palestiniana vive neste momento, desde logo a falta de comida e água, e afirmou que "o cenário é difícil de descrever".

Pelas mãos de Raul Monarte passam crianças e adultos "fortemente traumatizados", que o que querem é "um cessar-fogo". Um dos maiores medos da população são os "barulhos dos drones e helicópteros, das bombas e das explosões", concretiza.

Conta-nos que os palestinianos lhe perguntam se o mundo 'cá de fora' sabe o que se passa em Gaza ou se a guerra vai acabar. A resposta é "não sei", justificando que um profissional de saúde não mente e não dá "falsas esperanças".

Nós entramos através de um comboio da ONU e as crianças começam logo a fazer sinal de 'dá-me de comer'

Esteve em Gaza, pela primeira vez, em novembro do ano passado. Regressou em julho, passados oito meses. Qual foi o cenário que encontrou em novembro? E que diferenças viu agora?

Agora as coisas estão piores. A principal diferença é a fome, a dificuldade das pessoas acederem a alimentação, inclusivamente os nossos colegas. Toda a gente aqui dentro tem dificuldade em aceder a alimentação. Só no norte [de Gaza], temos mais de 300 crianças e mais de 500 mulheres grávidas que estão com malnutrição de moderada a severa e isto nota-se mal se entra.

Nós entramos através de um comboio da Organização das Nações Unidas (ONU) e as crianças começam logo a fazer sinal de 'dá-me de comer' e isso não acontecia em novembro. Os mercados tinham coisas e agora não, não há quase nada. Essa é a principal diferença.

A outra é que os hospitais nacionais estão completamente a colapsar, sobrelotados. Quando estive cá só metade é que estava a funcionar, agora é igual. Nenhum deles está a funcionar a 100%, todos ou quase todos foram atacados. O Hospital Nasser, onde estive em novembro, tem pacientes no chão. As pessoas não têm camas - ou trazem um colchão ou ficam no chão. Os profissionais têm de passar por cima das pessoas. Não há sequer ligaduras para serem mudadas todos os dias, têm de ser [mudadas] dia sim dia não, o que impede a recuperação das feridas.

Todos os dias morre alguém da família do nosso staff e sinto que muitos se agarram ao trabalho, à sensação de que estão a ajudar outras pessoas

Numa entrevista que deu, referiu que come às escondidas…

Todos nós temos de racionalizar a comida. As pessoas que têm acesso a um pouco mais não querem desrespeitar as que têm acesso a menos, embora toda a gente partilhe o que é uma coisa incrível. As pessoas vão sobrevivendo porque partilham. Se alguém conseguiu farinha naquele dia, partilha o pão com outros e vice-versa.

Tendo em conta a situação de falta de comida, como é que os seus colegas encontram forças para trabalhar?

Doze deles já estão mortos. Desde o dia 7 de outubro que já 12 dos nossos colegas morreram. Eles estão todos muito mais magros. Nota-se a astenia, falta de energia, lentificação e todos eles, ou a gigantesca maioria, moram em tendas, não moram numa casa. Muitos deles, foram deslocados dezenas de vezes.

Todos os dias há alguém que não veio [trabalhar] porque foi ao funeral de um familiar. Todos os dias morre alguém da família do nosso staff e sinto que muitos se agarram ao trabalho, à sensação de que estão a ajudar outras pessoas. Estão a fazer pequenos milagres aqui todos os dias, com muito espírito de equipa. Pelo menos, na minha equipa que é a de Saúde Mental com quem contacto mais, há uma camaradagem gigantesca.

Há muitas pessoas que não falam, muitas crianças que não falam, que estão com mutismo seletivo. Acabaram de passar por um evento traumático de ver os pais morrer à frente deles

Além de comida, o que há mais em falta em Gaza? Quais são as maiores necessidades?

Medicação, material de auxílio hospitalar como bombas ou filtros para as bombas, combustível, o que torna difícil o acesso à água potável - a Médico Sem Fronteiras faz distribuição de água potável em algumas zonas. Não há segurança. As infeções oportunistas começam a espalhar-se devido à falta de questões de higiene. É uma série de coisas que atenta contra a vida das pessoas aqui.

Os adultos perguntam se o mundo 'cá de fora' sabe, pedem-me para dizer ao mundo 'cá de fora' o que é que se passa, perguntam-me porque é que o mundo não faz nada e perguntam-me se eu acho que isto vai acabar ou não

Regressou a Gaza para liderar a equipa de Saúde Mental. Qual é o maior medo dessas pessoas? Quais são os casos mais frequentes entre os pacientes que acompanha?

O trauma é o quadro mais comum, a ansiedade também e sintomas depressivos. Há muitas pessoas que não falam, muitas crianças que não falam, que estão com mutismo seletivo. Acabaram de passar por um evento traumático, ver os pais a morrer à frente deles ou serem amputados, terem a casa a cair-lhes em cima ou serem deslocados vezes e vezes sem conta. É um sintoma que encontramos.

As crianças quando chegam não falam pura e simplesmente. Parece que estão 'zombies' e nós com o nosso trabalho, aos poucos e poucos, tentamos melhorar aqui a funcionalidade. Nunca vamos poder devolver as pernas à criança, nem os membros, nem a mãe, nem o pai, mas tentamos devolver um pouco de sentido de normalidade ao ter atividades recreativas e atividades clínicas também. Por exemplo, cinema ao ar livre, música ou jogos. 

A mesma coisa com os adultos, as pessoas vêm fortemente traumatizadas. Pergunta-me qual é o maior medo?  Um dos maiores medos que as pessoas têm é do barulho dos drones e dos helicópteros, das bombas e das explosões, as pessoas estão hiper vigilantes, o que se agravou desde esta madrugada [8 de agosto]. Não sei se teve a ver com esta decisão de invasão, mas desde a madrugada que, pelo menos, aqui em Deir al Balah, ouvem-se mais explosões. As pessoas querem que haja um cessar-fogo.

Não dizemos que vai ficar tudo bem ou que as coisas vão melhorar se não for verdade

Questionam o Raul acerca do que se passa fora de Gaza?

Os adultos perguntam se o mundo 'cá de fora' sabe, pedem-me para dizer ao mundo 'cá de fora' o que é que se passa, perguntam-me porque é que o mundo não faz nada e perguntam-me se eu acho que isto vai acabar ou não.

O Raul conhece os dois lados. O que é que responde às pessoas?

Respondo que acho que o mundo está cada vez mais ciente do que se passa. A Médicos Sem Fronteiras tem feito um bom trabalho, até a denunciar, por exemplo, a Gaza Humanitarian Foundation. Num relatório que saiu mostra como é que esta distribuição de comida está a matar pessoas. Perguntam se vai acabar [a guerra] e tento fugir um pouco à questão porque não sei.

Nós, profissionais de saúde e profissionais de saúde mental, não mentimos, não damos falsas esperanças. Não dizemos que vai ficar tudo bem ou que as coisas vão melhorar se não for verdade. Não dizemos às crianças que não vai doer mudar as ligaduras, que é uma dor enorme. Não mentimos. Faz parte dos princípios éticos.

Voltando ainda às crianças, vi que a sua equipa tem dois palhaços e um músico. É uma forma de as abstrair e lhes dar um pouco de alegria?

Dá-lhes estrutura, normalidade, alegria, interação social. Também temos uma 'storyteller'. Temos as atividades clínicas com grupos de psicoeducação, temos consultas individuais, temos grupos terapêuticos, mas as atividades recreativas são parte essencial para tentar transmitir um sentido de segurança, normalidade, rotina, previsibilidade naquele que, neste momento, é o sítio mais imprevisível e inseguro na Terra.

É impedida a entrada desses bens essenciais, está a ser impedida pelas Forças Israelitas. Não é uma questão de logística, de terreno ou da geografia

Esteve em missões em outros territórios complicados. Qual é a grande distinção entre o trabalho que faz em Gaza e o que já fez em outras missões?

O trabalho pode não ser assim tão diferente, as condições é que são. Aqui trabalhamos muito em Trauma, por exemplo. Em outras missões também, mas não com estes índices de sintomatologia que são elevadíssimos. Penso que, no ano passado, saiu um estudo que diz que a média de eventos traumáticos que uma pessoa passa no mundo é cerca de sete para 3% da população do mundo. Os palestinianos, 100% deles, passaram por mais de 20. 

Nunca estive num cenário onde as pessoas não podiam sair, em que não podiam ser refugiadas, em que não podiam escapar. Por exemplo, quando foi anunciado que ia haver a invasão ou possível anexação por parte das forças israelitas, a tensão aqui dentro era palpável. As pessoas estão com muito medo e não há nenhum sítio para onde possam sair.

Nunca estive num sítio onde temos 12 mil pessoas em lista de espera para serem retiradas medicamente e não conseguimos, ou num sítio em que não conseguimos fazer entrar todo o material de que precisamos. Às vezes, claro, há desafios logísticos, são sítios remotos, de difícil acesso, mas aqui não. É impedida a entrada desses bens essenciais, está a ser impedida pelas forças israelitas. Não é uma questão de logística, de terreno ou da geografia. 

Como é que é o dia a dia dos palestinianos? Dizia que eles não podem sair, que não há escapatória, há sucessivos ataques, como é que eles encaram o dia a dia?

O dia a dia que conheço melhor é o da minha equipa e é muito baseado no trabalho e depois na família. Chegar a casa, estar com a família, fazem muitas deslocações porque as famílias estão separadas. Usam o dia de folga que têm para visitar o marido, os filhos. Muitas vezes estão divididos porque já foram realocados, tiveram de ir do norte para o sul trabalhar, por exemplo.

Na rua vemos muitos miúdos a brincar uns com os outros. Não há escola há dois anos, há esgoto a céu aberto em muitos sítios e, portanto, entregam-se assim à brincadeira. Até ia dizer a não fazer nada mas, às vezes, é claro nas pessoas que estão na rua a sintomatologia traumática porque parecem estar desligados, meios 'zombies', por tudo aquilo que passaram. É um cenário difícil de descrever.

 O que se está a passar é compatível com um genocídio. As coisas que nós testemunhamos quebram toda a expetativa que temos em relação à palavra ser humano

Há esperança em Gaza?

A perceção que tenho é que, em média, a esperança baixou. Há mais gente que fala que gostaria de sair, sobretudo homens adultos enquanto antes queriam mesmo ficar. Tenho muitos colegas e pacientes que têm esperança de que isto vá passar, que vão sobreviver a esta fase. Há outros que não, acham que é melhor morrer, matarem-nos a todos de uma vez.

É psicólogo, tem formação e tem também outros mecanismos, mas este cenário não atinge também o lado pessoal?

Sim e não. Nós temos as nossas formas de autocuidado, temos formas de nos proteger, de cuidarmos de nós. Mas sim, tem impacto. Estamos aqui uns para os outros, a nossa equipa é a nossa primeira linha de interajuda. Estou um bocado doente, é o meu dia de folga e não fui ao hospital, mas tive logo a ajuda de três ou quatro pessoas e até da minha equipa nacional. Da última vez que estive em Gaza, não consegui sair no dia em que era suposto e foram eles - isto é vergonhoso da minha parte -, que estiveram a consolar-me por não ter conseguido sair quando devia e eles não podem sair. 

Isto mexe connosco a dois níveis. Enquanto profissionais, por causa daquilo a que somos expostos, mas também mexe como seres humanos, cidadãos do mundo porque o que se está a passar é compatível com um genocídio. As coisas que nós testemunhamos quebram toda a expetativa que temos em relação à palavra ser humano.

Fez uma música chamada 'O corpo às balas' com o músico Mahmoud. O que quis transmitir com aquela canção? 

Quando componho não estou a tentar transmitir nada, é uma forma automática de processar as coisas que vejo e as coisas pelas quais nós passamos. É uma forma de gerir as minhas emoções, mas é para mim. Não estou a pensar qual é a mensagem que vem cá para fora.

Depois disso, o músico Mahmoud - que é o músico que está com os palhaços - juntou a voz dele à música. Já me aconteceu com outras músicas em outras missões que, às vezes, eram um gatilho para levar as pessoas à ação, quer uma música que fiz na Guiné-Bissau, quer uma outra que fiz num campo de refugiados e achei que esta também poderia ser e a mensagem veio depois.

Que mensagem gostaria de passar aos portugueses para que compreendessem melhor o que está a acontecer em Gaza? 

Como trabalhador humanitário diria que o que se passa aqui é compatível com um genocídio: há morte em massa de civis, há um ataque às condições básicas de vida, como acesso a medicação, alimentação e água, há deslocação em massa. [Diria] que é preciso cessar-fogo de imediato, que é preciso que os nossos governos pressionem para que isso aconteça e é preciso a abertura dos corredores humanitários para entrar ajuda 'life saving' aqui em Gaza.

Enquanto cidadão português diria que as pessoas, mesmo estando longe, podem ter um impacto aqui. Começa logo por exigirem aos meios de comunicação que falem sobre isto: como é que as pessoas podem ajudar. Em vez de só retratarem o que se passa no terreno ou convidarem analistas, convidem alguém que dê opções de ação cívica.

Uma delas é Portugal aceitar refugiados e feridos, estes miúdos que eu tenho todos queimados, que precisam de extração médica. Portugal podia ter aqui um papel importante para tirar estas pessoas daqui. Se calhar, é essa a principal mensagem.

Leia Também: ONU condena "assassínio de seis jornalistas palestinianos" por Israel

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