Chat para mortes e abusos. Como funcionava Coco, o site do caso Pelicot?
O fórum anónimo e sem restrições foi fechado no início deste ano, mas serviu de plataforma de conversação ilícita para homicídios, abusos sexuais, pedofilia e ataques homofóbicos.
© Manon Cruz/Reuters
Mundo França
O caso da francesa Gisèle Pelicot, de 71 anos, que foi drogada pelo marido e violada, enquanto estava inconsciente, por cerca de 50 homens ao longo de uma década, arrebatou França e chocou o mundo. Entretanto, as confissões do marido, Dominique Pelicot, em tribunal, bem como de muitos dos restantes homens que dela abusaram, deixaram o país a refletir sobre a vida dupla que muitas pessoas têm online.
À medida que os homens acusados de violação foram falando e detalhando como chegaram até Dominique Pelicot, soube-se que os contactos e abusos eram coordenados num fórum de conversação chamado Coco, que já esteve envolvido noutros casos de abusos sexuais, pedofilia, homicídios e ataques homofóbicos.
No julgamento ficou claro que os crimes de Pelicot atingiram uma grande escala e mantiveram-se ocultos durante tantos anos precisamente pelo facto de o francês usar o Coco, cujos administradores não tinham qualquer filtro nos conteúdos partilhados na plataforma.
O site tornou-se um dos exemplos mais flagrantes de que as plataformas online podem causar problemas graves quando não são moderadas.
Um paraíso para criminosos
Desde que foi criado, em 2003, o Coco esteve envolvido em vários crimes, mas escapou sempre à responsabilização, levando as autoridades policiais a uma caça internacional ao homem.
Quando se conseguiu finalmente fechar o site, no início deste ano, e a polícia deteve o seu fundador, o engenheiro de software Isaac Steidl, os procuradores franceses revelaram que o fórum já tinha sido citado em mais de 23 mil relatórios de atividades criminosas, que envolviam mais de 480 vítimas e processos judiciais.
Entrava-se e parecia uma selva
Há 21 anos, quando foi lançado como um site de conversação gratuito e com uma interface simples que permitia aos utilizadores comunicar anonimamente, o Coco pedia aos utilizadores que confirmassem que tinham mais de 18 anos, mas o sistema era fácil de enganar. Rapidamente se podia mudar a idade para ter acesso à plataforma e conversar com um nome de utilizador inventado no momento.
"Parecia tão inocente. Tinha um design muito anos 90, com cocos a sorrir e dizia: ‘este é um site para pessoas simpáticas’. Mas entrava-se e parecia uma selva", recordou ao The Guardian Sophie Antoine, responsável pela defesa legal da L'association Agir Contre la Prostitution des Enfants et les violences sexuelles (ACPE), uma organização francesa de combate à prostituição infantil.
A aparência da página inicial do site Coco© Reprodução Coco
Ao entrar no site, depois de se registarem, os utilizadores encontravam uma lista de diferentes fóruns de conversação dedicados a vários temas. A maioria deles era de natureza sexual, com muitos chats dedicados a fetiches e com conteúdos sexuais explícitos. Havia também a possibilidade de entrar em conversas privadas e enviar mensagens diretas a outros utilizadores.
Um jornalista francês, que chegou a entrar no Coco fazendo-se passar por uma rapariga de 15 anos, contou que foi contactado por uma enchente de pessoas que lhe pediram sexo e enviaram imagens de nudez.
"Era muito acessível e muito explícito. Não havia qualquer controlo sobre isso", contou Sophie Antoine.
Como Dominique Pelicot usou o Coco para violar a mulher?
Dominique Pelicot usou um pseudónimo no Coco e pediu a vários homens, num chat chamado "à son insu" – significa, em português, "sem o conhecimento dela" -, para que fossem até sua casa, na cidade de Mazan. No chat, Pelicot dizia que ele e a mulher partilhavam um fetiche por homens que faziam sexo com ela enquanto dormia, sem referir diretamente que a drogava contra sua vontade e que Gisèle não tinha conhecimento nem consentia os abusos.
Como os conteúdos do Coco não tinham qualquer moderação, Pelicot conseguiu usar o fórum durante anos sem penalizações. As autoridades só começaram a desconfiar do francês depois de um segurança de um supermercado o ter apanhado a tentar fazer vídeos, não consentidos, de mulheres enquanto faziam compras, em 2020.
Apesar de o site se ter tornado num conhecido refúgio para abusadores online, os grupos de defesa de direitos humanos e as autoridades enfrentaram vários obstáculos jurídicos para investigar e tomar medidas legais.
Durante anos, os regulamentos da União Europeia impediam que o proprietário de um site fosse legalmente responsabilizado pelos seus conteúdos. Além disso, para complicar a situação, o Coco mudou de domínio, deixando de ser uma página totalmente francesa para passar a estar registada na ilha de Guernsey.
Para conseguir finalmente fechar o Coco, as autoridades precisaram de fazer um esforço conjunto internacional, ao longo de 18 meses, e alterar a legislação para poder responsabilizar os administradores por determinadas atividades que acontecem nos seus sites.
Agora, a lei permite que as autoridades francesas acusem os fundadores de sites de cumplicidade em crimes. As infrações podem ser punidas com penas de prisão até dez anos e multas até 500 mil euros.
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