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'Euromaidan', a revolta pelos "valores europeus", ocupou Kyiv há 10 anos

O 'Maidan' evoluiu há dez anos na Ucrânia de movimento de contestação para revolta massiva com a ocupação prolongada da principal praça de Kyiv, culminando no derrube do presidente 'pró-russo' Viktor Yanukovych em nome dos "valores europeus".

'Euromaidan', a revolta pelos "valores europeus", ocupou Kyiv há 10 anos
Notícias ao Minuto

08:23 - 19/11/23 por Lusa

Mundo Ucrânia/Rússia

Num país onde até então as mobilizações cidadãs tinham decorrido com relativa calma, da greve de fome dos estudantes em 1990 à 'revolução laranja' de 2004, um movimento contraditório, complexo, e com origem nas redes sociais, não era previsível.

Em 21 de novembro de 2013, o presidente Viktor Yanukovych anunciou a suspensão, por pressão de Moscovo, do acordo de associação com a União Europeia (UE) - dependente da aplicação de um pacote de medidas incluindo privatizações e reforma das leis laborais --, justificando prejudicaria o país.

O governo saído das legislativas de 2012 era dominado pelo Partido das Regiões (uma das formações ilegalizadas no 'pós-Maidan'), conservador, centrista, que privilegiava as relações com a Rússia e se impunha como a principal força política desde 2006.

Nessa mesma noite, na sua página Facebook, um jornalista local sugeria uma concentração para a praça central de Kyiv em protesto contra a decisão de Yanukovych, acompanhado por militantes e líderes da oposição que também apelavam à mobilização através das redes sociais.

Algumas centenas de pessoas concentram-se em Maidan, que significa praça em ucraniano, uma mobilização que prossegue nos dias seguintes.

Progressivamente, os protestos passam a dirigir-se contra um poder considerado corrupto e opressivo liderado por Yanukovych, eleito na segunda volta das presidenciais de 2010 com 48,95% dos votos contra a ex-primeira-ministra Yulia Tymoshenko, e que na ocasião confirmaram a fratura entre a parte ocidental e o leste da ex-república soviética.

A primeira intervenção policial contra os manifestantes, sobretudo estudantes, em 30 de novembro, altera em definitivo os objetivos de Maidan.

A repressão das forças policiais suscita forte reação de protesto que faz sair à rua dezenas de milhares de pessoas, com a reivindicação central apontando progressivamente para o derrube do poder. A Rússia raramente é mencionada nos protestos do que ficou conhecido nos primeiros dias por 'Euromaidan' - sobressaíam as bandeiras ucranianas e da União Europeia - para depois se radicalizar e tornar-se numa "Revolução da dignidade".

De início, foi um movimento essencialmente urbano, com uma maioria de licenciados, quadros de empresas, jovens universitários. Mas durante a mobilização no inverno 2013-2014 a base social altera-se, com a chegada de diversas regiões de Ucrânia de manifestantes com origens mais modestas, e com os protestos a alastrarem a outras cidades, em particular nas zonas oeste do país.

Na praça central de Kyiv instalou-se uma "cidade", que aí permaneceu durante vários meses, com tendas que representavam cidades ucranianas ou comunidades religiosas e diversos grupos sociais.

Os manifestantes eram alimentados, aquecidos, protegidos, entre música permanente e discursos inflamados. Para muitos participantes, era a comprovação de que a sociedade ucraniana podia de novo ser protagonista.

Na Rússia, a evolução da situação suscita profunda preocupação, em particular quando os manifestantes de Maidan são visitados e apoiados por diversos responsáveis internacionais.

A intromissão de dirigentes políticos - em particular dos Estados Unidos, com as deslocações a Maidan do falecido congressista John McCain ou de Victoria Nuland, atual subsecretária de Estado para os Assuntos políticos da administração de Joe Biden - alimentam em Moscovo, e em outras latitudes, a tese de um movimento liderado por "neonazis" e do posterior "golpe de Estado".

Nuland distribui de forma simbólica alimentos aos manifestantes, discursa na praça, organiza financiamentos, defende o envio de armamento defensivo para se oporem ao governo de Yanukovych, perspetiva uma nova liderança e arrasa a abordagem da União Europeia. Um protagonismo que também servirá de fundamento à Rússia no apoio aos separatismos e à posterior invasão militar.

Entre as forças políticas envolvidas, os movimentos nacionalistas da direita radical (em particular o partido Svoboda e o movimento de extrema-direita Setor direito), apesar de minoritários, destacam-se pela sua organização e atuação violenta nos confrontos com as forças policiais. Serão os seus membros que também incendeiam, e pilham, vários edifícios da cidade.

Em meados de janeiro, a morte dos três primeiros manifestantes representa um ponto de não retorno, e começa a ser exigida a demissão de Yanukovych. Os confrontos agravaram-se em fevereiro de 2014 e vão provocar mais de 100 mortos, incluindo vários membros das forças policiais atingidos a tiro, e com muitos manifestantes alegadamente abatidos por atiradores furtivos.

As vítimas de Maidan, depois agrupadas com a designação de 'Cintura celeste', permanecem de grande importância na memória coletiva, em particular nos que participarem nos protestos, e nos confrontos, e alvo de constante veneração.

As jornadas sangrentas de meados de fevereiro precipitaram os acontecimentos e levaram à fuga de Yanukovych de Kyiv na noite de 21 para 22 de fevereiro de 2014, quando era aguardado no Congresso do Partido das Regiões, em Kharkiv, onde os seus próximos já admitiam responder ao "pró-europeísmo" de Maidan com a cartada do separatismo.

O presidente será deposto pelo parlamento, desloca-se antes à Crimeia e será retirado por forças russas em direção a Rostov-on-Don, na Rússia, não longe da fronteira comum.

O novo poder que começa a ser erguido em Kyiv, e que implicará a posterior proibição de diversos partidos "pró-russos" e a retirada de direitos à importante minoria russófona, será contestado por estas populações concentradas no sul e leste da Ucrânia.

No decurso do processo de transição do poder em Kyiv, Moscovo anexa a Crimeia em março de 2014 e em abril as cidades de Donetsk e Lugansk, no Donbass, promovem a secessão, apoiadas pela Rússia, dando início à guerra civil.

Em 7 de junho de 2014, Petro Poroshenko, um homem de negócios e um líder político que representava uma das correntes envolvidas na revolta de Maidan, é eleito na primeira volta das presidenciais com 54,7% dos votos.

Para diversos setores contestatários, a designada "Revolução da dignidade" era "sequestrada" pela elite oligárquica representada por Poroshenko. A sua implacável derrota nas presidenciais de maio de 2019 face ao popular comediante e estreante na política Volodymyr Zelensky (73,22% contra 24,45% na segunda volta) foram a expressão de um forte descontentamento popular, e com a guerra civil instalada há cinco anos após o fracasso no terreno dos Acordos de Minsk.

Nas legislativas antecipadas de julho desse mesmo ano, o partido de Zelensky, Servidor do Povo, garante maioria absoluta. E no seu difuso programa também se privilegiava o combate à corrupção, e um acordo de paz global com a Rússia. Cerca de dois anos e meio depois, tinha início a invasão militar ordenada por Vladimir Putin.

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