A par das eleições legislativas, que decorrem em plena guerra no país vizinho, a Ucrânia, e entre tensões que marcaram as relações entre Varsóvia e Kiev nas últimas semanas, vão realizar-se quatro referendos, os mais controversos dos quais dedicados ao controlo da imigração e ao aumento da idade de reforma.
Quando as sondagens afastam um vencedor claro a uma semana da votação, as eleições na Polónia ganharam importância acrescida, não só por aquilo que podem implicar em termos de mudanças internas, após oito anos de domínio absoluto dos populistas conservadores do Lei e Justiça (PiS), como também no impacto na política externa de Varsóvia e na tensa relação que tem vivido com a União Europeia (UE).
Ganhe quem ganhar, ultrapassada uma campanha sobreaquecida e em alto tom, ao que tudo indica, o próximo domingo deverá ser o tiro de partida para uma longa maratona pós-eleitoral, em que nenhum cenário está excluído, incluindo uma nova votação no curto prazo.
Eis algumas perguntas e respostas relacionadas com o processo eleitoral que decorre no próximo domingo na Polónia:
O que está em causa?
Para a maioria dos cerca de 30 milhões de eleitores polacos, a luta pelo poder recai entre o partido PiS, que procura o seu terceiro mandato consecutivo e inédito, sob a liderança do vice-primeiro-ministro e dirigente histórico Jaroslaw Kaczynski, e a alternativa liberal da Plataforma Cívica (PO), dirigida pelo ex-presidente do Conselho Europeu Donald Tusk.
Ambos têm propostas ideologicamente opostas, entre a manutenção de uma política conservadora e nacionalista do partido no poder, que assenta a sua base eleitoral na população mais idosa e rural, ou uma visão liberal, progressista e europeísta da coligação de Tusk, que penetra mais facilmente nos meios urbanos e cativa eleitores letrados.
Mais de um milhão e meio de eleitores vão ser chamados a debutar nas urnas de voto e é neles, apesar da sua indiferença ou baixa participação cívica, que a extrema-direita da Confederação encontra grande parte do acolhimento às suas propostas nacionalistas, ao lema "igreja, campo de tiro e escola" e aos seus comícios com cerveja aberta, mas que tem vindo a baixar nas sondagens, apesar dos seus expressivos 10% e possibilidade real de se aliar ao PiS ou até à PO.
A maioria das sondagens independentes sugere que a disputa está muito próxima. Uma pesquisa realizada na semana passada pela agência Kantar, citada pelo jornal The Guardian, colocou o PiS com 34% e a PO com 30%, o que significa que a capacidade de formar o próximo governo provavelmente dependerá dos resultados de vários partidos menores. Um dos resultados possíveis é um parlamento suspenso, sem qualquer coligação viável, e a perspetiva de novas eleições num futuro próximo.
A sondagem Kantar sugeriu que a PO, juntamente com a esquerdista Lewica e a Terceira Via, de centro-direita, que tem vindo a subir nas pesquisas, poderiam reunir uma estreita maioria parlamentar, mas as margens são curtas e o sistema utilizado para traduzir votos em mandatos é complicado, o que significa que ainda há muitas incertezas.
O que separa os principais candidatos?
Os principais concorrentes estão nos antípodas. O PiS é acusado de sequestrar desde 2015 o executivo e o setor estatal em favor de interesses partidários, que se projetam na economia, na politização do poder judicial e no controlo do espaço público de informação, inundado de propaganda governamental, frequentemente patrocinado por empresas estatais.
O partido dominante afasta porém que esteja a orquestrar um desvio democrático e ao Estado de direito na forma como exerce o poder, argumentando que está a dotar os tribunais de mais meios e a promover uma economia mais justa.
Mas, ao mesmo tempo, ameaça restringir ainda mais os poderes dos tribunais, incluindo os superiores, como o Supremo, e reivindica a defesa dos valores católicos do país contra pressões liberais ocidentais, o que poderá incluir a introdução de temas conservadores nos currículos obrigatórios nas escolas, em linha com um discurso de resistência às políticas impostas pelos "burocratas" de Bruxelas em nome do interesse nacional.
Num contexto de inflação de dois dígitos e de custos crescentes da energia, o partido espera galvanizar o seu eleitorado rural ou de cidades pequenas, maioritariamente mais velho e mais pobre, aumentando o seu programa de subsídios às crianças em 60%, os pagamentos de pensões e reduzindo os preços da gasolina.
Em total contraponto ideológico, a PO aposta no desmoronamento das políticas de direita católica, introduzindo propostas tabu para os conservadores, como o aborto até às 12 semanas, casamentos de pessoas do mesmo sexo ou o alargamento do conceito de violação. Consagra ainda a interrupção voluntária da gravidez e a fertilização 'in vitro' como direitos fundamentais, enquanto promete reencaixar as instituições no Estado de direito democrático e um desanuviamento das relações turbulentas com a UE e capitais vizinhas.
Por que a imigração entrou no centro do debate?
A imigração descontrolada é apresentada pela Polónia como a grande ameaça à segurança europeia que Bruxelas não sabe compreender, numa narrativa que ficou em causa com o escândalo recentemente divulgado da trama de corrupção diplomática polaca que supostamente vendeu mais de 250 mil vistos a imigrantes asiáticos e africanos.
Varsóvia tem repetidamente argumentado que os planos de relocalização de imigrantes propostos por Bruxelas transformariam, nas palavras do primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki, "as ruas polacas em campos de batalha" e dariam origem a "imagens como as de Paris mas em Varsóvia ", numa referência aos tumultos urbanos registados na capital francesa.
Além disso, Varsóvia assumiu o papel de "guardiã da fronteira oriental da UE" ao proteger a fronteira com a Bielorrússia, com a construção, recentemente concluída, de um muro de vigilância com sistema eletrónico que custou mais de 350 milhões de euros. Uma barreira semelhante está em construção ao longo da fronteira com o enclave russo de Kaliningrado (norte).
As ações da Guarda de Fronteiras Polaca e da agência europeia Frontex, que, com sede em Varsóvia, monitoriza as fronteiras externas da UE, foram criticadas em diversas ocasiões por supostamente usarem a brutalidade contra imigrantes e refugiados e dificultar o trabalho das organizações humanitárias. As críticas vêm de "idiotas úteis que beneficiam Moscovo", na opinião do primeiro-ministro, Mateusz Morawiecki.
O filme "Green Border" da polaca Agnieszka, obra vencedora do prémio do Grande Júri de Veneza, expôs a nu esta crueldade, valendo palavras em troca do poder do PiS, que acusou a cineasta de não refletir a realidade e atacar os guardas do seu próprio país. O Presidente polaco, Andrzej Duda, foi ainda mais longe e citou os guardas de fronteira quando dizem que "só os porcos se sentam no cinema", uma expressão alusiva à exibição de propaganda nazi durante a ocupação alemã.
A par do acolhimento de cerca de dois milhões de refugidos ucranianos e da entrada ilegal de bielorrussos, o tema merece duas perguntas nos quatro referendos a realizar no domingo, um sobre a barreira com a fronteira com a Bielorrússia, para onde Varsóvia destacou um reforço de 10 mil militares para travar o fluxo calculado em 19 mil tentativas ilegais de entrada e após instalação temporária de parte dos mercenários do grupo paramilitar russo Wagner a escassos quilómetros dos limites polacos.
Outro é ainda mais polémico, sobretudo pela formulação proposta: "Apoia a admissão de milhares de imigrantes ilegais do Médio Oriente e de África, de acordo com o mecanismo de relocalização forçada imposto pela burocracia europeia?". Este enunciado, segundo Donald Tusk, é característico do discurso xenófobo do PiS e foi um dos temas que a PO levou a um comício histórico há uma semana em Varsóvia, reunindo centenas de milhares de apoiantes.
Quais são os outros referendos?
O aumento da idade da reforma para 67 anos é um dos "temas quentes" da longa lista destas eleições e seus referendos. Neste, o primeiro-ministro tem criticado o líder da PO por ter aumentado a idade de aposentação quando chefiava o Governo (2007-2014): "Sessenta e sete é o número vergonhoso de Donald Tusk".
Neste sentido, o primeiro-ministro polaco tem instado os cidadãos ao voto nas próximas eleições, lembrando que o atual Governo baixou a idade de reforma para 65 anos para os homens e 60 para as mulheres e insinuando que a oposição obedece a comandos externos.
Outro referendo traz de algum modo a resposta na questão, ao perguntar aos polacos se apoiam "a venda de ativos estatais a entidades estrangeiras, levando à perda de controlo dos polacos sobre setores estratégicos da economia", o que motivou o PiS a fazer mais colagens de Donald Tusk e a sua política liberal à Alemanha.
Jaroslaw Kaczynski acredita que "a nação deve levantar a voz porque a privatização já dura 30 anos" e que "a venda dos ativos nacionais é uma ameaça para o futuro", destacando que "há um interesse externo" por trás desta intenção.
"Eles querem destruir a democracia e o Estado de direito", prosseguiu o presidente do PiS, já depois de um vídeo de campanha o exibir a rejeitar uma suposta chamada do chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, e de ter classificado a PO como uma coligação alemã e não polaca.
Segundo a imprensa polaca, "alemão" tem sido uma das dez palavras mais repetidas e utilizadas como "insulto" durante a atual campanha eleitoral, e uma das formas mais frequentes de desqualificar o líder da oposição, é chamá-lo "Herr Tusk", que promete, por sua vez, aliviar as relações com Berlim e terminar com o que considera serem lutas mesquinhas.
As sempre difíceis relações entre Varsóvia e Berlim atravessam uma nova crise motivada por acusações mútuas de falta de controlo da migração ilegal e pela retórica antialemã exacerbada na Polónia pela campanha eleitoral.
Além de reacender disputas históricas com a Alemanha e de referências implícitas ao período nazi, o governo nacionalista polaco não parou de levantar novas queixas e acusações contra os seus vizinhos ocidentais.
Criticou-os em todas as áreas e a todos os níveis, desde o seu modelo social à sua política internacional, além de modelar a UE como um "quarto Reich" cujo principal objetivo é impedir o desenvolvimento económico da Polónia.
Os referendos só serão vinculativos se tiverem mais de 50% de participação, o que tem levado a oposição a apelar para o boicote às suas perguntas controversas.
Que papel tem a discussão europeia?
O braço de ferro entre Varsóvia e Bruxelas intensificou-se com o andamento da campanha, sendo o último ato o anúncio de que a Polónia vai vetar o plano de migração proposto pela UE.
O primeiro-ministro reiterou a sua posição contra "os burocratas de Bruxelas e os seus verdadeiros chefes, que estão em Berlim", que arranjaram um "plano insano" que "inundará Varsóvia com migrantes ilegais".
Em junho, Varsóvia anunciou que vetaria a decisão de Bruxelas de realocar à força 120 mil migrantes por ano para países da UE ou fazer os países pagarem 20 mil euros por cada migrante que não receberem no seu território.
Em vez disso, Morawiecki propõe um "plano de fronteiras seguras" que incluiria a "reforma" da Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex) e o "aumento do orçamento de fundos para o desenvolvimento dos países que fazem fronteira com a UE".
Nesta discussão entrou também em cena o primeiro-ministro húngaro, o ultranacionalista Viktor Orbán, aliado de Varsóvia em política europeia, que acusou Bruxelas de querer "derrubar" o atual Governo da Polónia nas eleições de domingo.
Bruxelas congelou a entrega de fundos comunitários aos dois países. No caso da Polónia devido a controversas reformas judiciais, e também à forma como o PiS prejudica os padrões democráticos e o Estado de direito, um défice que tem passado discretamente no último ano e meio devido ao apoio essencial à Ucrânia de Varsóvia, que se prepara para aumentar os seus gastos em defesa para 3,9%, quase o dobro do acordado pelos países-membros da NATO rumo à constituição de um dos Estados mais robustos da Europa.
A Comissão Europeia manifestou igualmente preocupação com um diploma promulgado pelo Presidente da Polónia alegadamente para combater a influência russa no país, mas que poderá ser usado para visar a oposição e nomeações futuras para cargos públicos.
A Polónia também contrariou indicações da UE sobre as barreiras ao comércio de cereais ucranianos, alegando que prejudicavam os seus agricultores, levando a uma tensão sem precedentes com Kiev desde o início da guerra na Ucrânia, ao ponto de Varsóvia ameaçar suspender o fornecimento de armamento ao país vizinho, mas que acabou com um acordo entre os dois aliados contra Moscovo.
No final de setembro, a Comissão Europeia informou ainda ter recebido uma resposta insuficiente do Governo polaco relativamente à alegada venda fraudulenta de várias centenas de milhares de vistos, num gesto amplificado pelo endurecimento do tom do chanceler alemão sobre este caso e que mandou reforçar a vigilância das entradas na Alemanha provenientes do país vizinho.
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