Médico de Lampedusa rumou a Bruxelas para salvar ainda mais vidas

Durante quase 30 anos foi o médico que prestava os primeiros cuidados aos migrantes que chegavam a Lampedusa, Itália, mas em 2019, Pietro Bartolo deixou a medicina e rumou a Bruxelas para, enquanto eurodeputado, tentar salvar ainda mais vidas.

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Lusa
01/07/2023 13:12 ‧ 01/07/2023 por Lusa

Mundo

Migrações

Nascido em 1956 na ilha de Lampedusa, no seio de uma família de pescadores, Bartolo passou ele próprio pela experiência de quase se afogar nas águas do Mediterrâneo. Com apenas 13 anos, caiu da embarcação de pesca ao mar sem que ninguém se apercebesse. Só chegados ao porto deram pelo desaparecimento de Pietro e regressaram à sua procura. Esteve quatro horas no alto mar à espera de salvamento.

"Acabar no mar, engolir água salgada, é uma coisa terrível. É uma experiência que eu não desejaria ao meu pior inimigo. Sentimo-nos impotentes, como se estivéssemos a perder as forças, como se estivéssemos à beira da morte", conta em entrevista à Lusa.

No entanto, diz, não foi esse episódio traumático, após o qual ficou um ano sem conseguir falar, que o levou a decidir tornar-se médico.

"Durante a minha infância, tive de lidar com doenças e com o desaparecimento de pessoas de quem gostava muito. Em Lampedusa, os cuidados de saúde nunca estiveram ao alcance da mão. Para chegar ao hospital, é preciso viajar para o continente. O tratamento nem sempre chega a tempo e, quando eu era criança, era ainda mais difícil", explica, pelo que decidiu estudar medicina, na Catânia, e exercer na sua ilha, para ajudar a sua comunidade.

Especializou-se em ginecologia e obstetrícia, depois de ver tantas mulheres de Lampedusa morrerem durante ou após o parto, que nos anos 1960 e 70 ainda se realizava em casa.

Bartolo reconhece, no entanto, que o drama no mar pelo qual passou tão jovem fá-lo sentir-se particularmente próximo dos migrantes. "Neles, não vejo alguém diferente, mas alguém igual a mim. Neles, vejo-me a mim próprio", diz.

Em 1993, foi nomeado diretor do centro de saúde e da policlínica de Lampedusa, que ajudou a criar, e encarregou-se também de prestar os primeiros cuidados médicos a todos os migrantes que desembarcavam em Lampedusa e aos que se encontravam no centro de acolhimento. Também realizou autópsias, muitas.

Em 2019, já depois de ter acudido às vítimas ao trágico naufrágio de 2013 ao largo de Lampedusa que colheu pelo menos 368 vidas, decidiu dedicar-se à política e foi eleito para o Parlamento Europeu, mas com o mesmo desígnio.

Membro do grupo parlamentar dos socialistas europeus, luta pelos direitos dos migrantes enquanto vice-presidente da comissão parlamentar de Liberdades Civis e é relator-sombra da sua bancada nas negociações em curso com o Conselho da União Europeia (UE) em torno do novo pacto para as migrações e asilo.

"Depois de tantos anos em Lampedusa, percebi que ficar na ilha não mudaria o estado das coisas e a narrativa tóxica do fenómeno migratório. Percebi que as entrevistas, os livros e os filmes não eram suficientes e que tinha de levar o meu testemunho e o meu empenhamento aos locais onde a decisão era tomada, pelo que aceitei candidatar-me às eleições", explica.

Admitindo que sente "falta de exercer medicina", Bartolo considera, no entanto, que o trabalho que faz em Bruxelas e Estrasburgo "pode salvar muito mais pessoas, mais pessoas do que poderia ajudar numa vida inteira", e aponta que a sua atual carreira política é também fruto do trabalho realizado como médico.

"Nunca teria vindo para Bruxelas como deputado europeu se não tivesse trabalhado em Lampedusa durante 30 anos como médico, em contacto com milhares de migrantes com as suas feridas físicas e psicológicas. Há coisas que, quando as vemos, não podemos virar as costas, fingir que nada aconteceu, continuar como se nada tivesse acontecido. Quando é a humanidade que está em perigo, não se pode fazer isso", diz.

Sobre as negociações em torno do pacto sobre migrações e asilo, admite apreensão com o seu desfecho, pois "o problema é que as duas propostas", do Parlamento e do Conselho, "vão em direções opostas: o Parlamento votou a favor de um texto baseado na solidariedade entre Estados e num sistema de recolocação automática que tenha em conta os laços significativos do requerente de asilo", enquanto o Conselho (Estados-membros) "adotou um texto que coloca a tónica no repatriamento e na externalização das fronteiras através de acordos com países terceiros"

"Estou preocupado, não o posso negar, mas não tenciono recuar. Já disse, e repito, que lutarei até ao fim por um sistema de migração e asilo que coloque a humanidade e a solidariedade no seu centro", garante.

Repartindo a vida entre a sua ilha de Lampedusa e os corredores do Parlamento Europeu em Bruxelas e em Estrasburgo, o «dottore» Bartolo mantém o propósito de há tantos e tantos anos: ajudar os migrantes e pôr fim àquilo que designa "não de tragédias, mas de massacres, matança".

"Ninguém se salva sozinho", remata.

Leia Também: ONG sem mãos a medir em Lampedusa tal o fluxo de chegadas

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