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"A maior parte das vezes não amamos incondicionalmente os nossos filhos"

Como podemos amar incondicionalmente um filho se colocamos a carreira em primeiro lugar ou se queremos que ele seja aquilo que não conseguimos ser? Não se ama. Quem o diz é a psicóloga Cristina Valente, que não hesita em apontar o dedo aos defeitos da educação moderna e apresentar os caminhos a seguir.

"A maior parte das vezes não amamos incondicionalmente os nossos filhos"
Notícias ao Minuto

11:30 - 07/09/17 por Daniela Costa Teixeira

Lifestyle Cristina Valente

A parentalidade nunca foi uma tarefa fácil. E nunca será, muito menos agora, em que o tempo escasseia e faz com que as relações de qualidade nem sequer cheguem a ser construídas. Quem mais sofre com isso é a criança, mas este está longe de ser o único pesadelo infantil dos tempos modernos.

"Podemos preocupar-nos muito em colocar os filhos numa boa escola, em comprar bons manuais, em pô-los a ler desde pequeninos, pôr o miúdo a aprender inglês, francês e mandarim, pôr a criança em atividades extra-curriculares. Posso pensar nisso tudo, mas se eu não tiver tempo para desenvolver a relação, os problemas vão continuar e a verdade é que os problemas dos miúdos estão a adensar-se, estão cada vez maiores, porque a disponibilidade dos pais é cada vez menor, a disponibilidade mental, a disponibilidade financeira e a disponibilidade de tempo".

Em conversa com o Lifestyle ao Minuto, a psicóloga Cristina Valente aponta o dedo aos tempos modernos e à educação atual, que se quer menos digital e mais afetiva. Mas não só: é crítica no que diz respeito aos castigos e às repreensões, à inconsciência de que se deve ser um exemplo, à tendência para criar uma criança dentro de uma 'bolha' e à vontade de querer fazer do filho aquilo que não se conseguiu (ou consegue) ser.

Para a especialista, que realiza consultas ao domicílio e dá ainda palestras de competências parentais, os defeitos da educação dada nos dias de hoje são muitos, assim como os efeitos colaterais, que tendem a ser mais e maiores. Mas no fim, destaca, é tudo uma questão de tempo, tempo de afeto, tempo de conversa, tempo de aprendizagem, tempo de confiança. Tempo que ajuda a construir uma relação, muitas vezes esquecida no seio familiar.

Estas últimas gerações de pais foram as gerações mais, digamos, insultadas da história da humanidade

Como são os pais nos dias de hoje?

São angustiados, apressados, pouco pacientes, mas ao mesmo tempo muito curiosos sobre novas soluções que possam ajudá-los a ter um estilo de vida com mais propósito. Estas últimas gerações de pais foram as gerações mais, digamos, insultadas da história da humanidade. Disseram-nos que estamos demasiado obcecados com a carreira, que pomos a nossa carreira em primeiro lugar e que somos uns pais egoístas, mas a verdade é que, paradoxalmente, somos também neste momento as gerações de pais que mais vontade tem de fazer melhor e mais curiosidade tem em saber mais sobre si, em termos do desenvolvimento pessoal do próprio pai, para conseguir lidar melhor com o outro ser humano que está a moldar e que está a educar. Portanto, temos este paradoxo: somos os mais egoístas, às vezes parece que metemos os miúdos em último lugar, mas ao mesmo tempo também, na história da Humanidade, nunca se falou tanto em educação, em psicologia, em desenvolvimento pessoal, autoconhecimento.

Se eu bato a um filho, ele não se vai sentir bem com isso, vai sentir-se humilhado e ou vai portar-se mal por revolta, ou vai portar-se bem pelas razões erradas, porque tem medo de ser castigado outra vez

Não existe nenhum manual de instruções para ser pai ou mãe, mas os pais tendem, como disse, a informar-se mais sobre o assunto. Corremos o risco de darem mais ouvidos à teoria do que à própria intuição?

É uma pergunta muito interessante. Em primeiro lugar, os miúdos são todos diferentes, mas acreditarmos que não existe um manual de instruções é errado, porque o manual de instruções existe, sim, são padrões de desenvolvimento que passam por todas as crianças que têm um desenvolvimento normal, isto é, a maior parte. Mas embora todas as crianças sejam diferentes e todos os relacionamentos sejam diferentes e todos os pais sejam diferentes, nunca houve dois seres humanos iguais, contudo, os desafios que os pais e os miúdos enfrentam em determinadas idades são os mesmos em todas as famílias, como as birras, a adolescência, o miúdo não querer dormir, comer, fazer lutas de poder connosco e não arrumar o que lhe pedimos, reagir mal à autoridade.

Se os desafios em cada idade são iguais para todas as famílias, significa que a resposta para esses problemas não é cada um inventar uma solução porque as crianças são diferentes, significa justamente que existe algo para além dessa individualidade, para além dessa unicidade do ser humano, que são os padrões de desenvolvimento típicos muito expectáveis e também as leis do comportamento humano, que são leis universais, independentemente da cultura, do credo, da cor, do estatuto sócio-económico ou sócio-cultural. Há leis que funcionam em todo o mundo quando dois seres humanos estão em relação. Por exemplo, se eu bato a um filho, ele não se vai sentir bem com isso, vai sentir-se humilhado e ou vai portar-se mal por revolta, ou vai portar-se bem pelas razões erradas, porque tem medo de ser castigado outra vez. Ora, isto acontece em Portugal, como acontece também na Polinésia ou Cochinchina. Então, quando os pais sabem o que tem a ver com o temperamento da criança, que isso é uma coisa única e já nasce com a criança, sabe distinguir isso e o que é que são os desafios de cada idade e que tem a ver com a forma como o próprio pai responde a esse comportamento, quando souber isso, quando souber distinguir o que é único na criança, mas também o que são as leis universais do comportamento humano e as fases do desenvolvimento em que ele está, temos o manual de instruções e, portanto, temos uma série de desafios e angústias que podem ser suavizados e minorados no dia a dia das crianças.

E quanto à teoria?

Relativamente à teoria, sim, a verdade é que hoje há muita informação, até excesso de informação, mas também existe muita dificuldade dos pais em encontrar aquela que é a informação credível. E informação credível é saber o que é que a ciência diz, quais são as últimas descobertas da neurociência, da ciência do comportamento humano, para, com isso, ter ferramentas para poder lidar melhor com o meu filho. Só que é muito difícil mudarmos o nosso comportamento, não basta lermos livros, posso ler milhões de livros sobre o tema, mas, de facto, aquilo que me vai obrigar a ter um comportamento diferente vai ser um mergulhar no meu passado, no meu inconsciente, nas minhas memórias, algo que nem sempre está ativo no meu consciente e ir buscar essas memórias na minha infância e isso é algo que nunca é dito nos livros que escrevemos para os pais. É preciso ir buscar na infância a razão pela qual reagimos de determinada maneira com os nossos filhos, porque nos foram instalados programas mentais quando éramos crianças e adolescentes que nós, sem termos consciência, estamos a replicar. Bem, às vezes temos consciência, estamos a fazer algo e pensamos 'o meu pai fazia-me isto e eu detestava'.

Mas não basta só ler livros, precisamos, de facto, de fazer um exercício muito forte e profundo para conseguirmos mudar a forma como respondemos aos miúdos, porque os pais precisam de saber que a resposta que cada um de nós dá aos miúdos é uma resposta inconsciente.

Como assim?

O inconsciente está muito mais presente na nossa forma de reagir ao comportamento dos miúdos, na nossa forma de olhar para os desafios da maternidade e da paternidade, tem muito mais a ver com o inconsciente do que com o consciente. Então, precisamos de fazer um trabalho que, obviamente, não é fácil, não é um trabalho que as pessoas estejam dispostas a fazer porque é doloroso, apesar de tudo, não é fácil irmos ao nosso passado e tentarmos perceber a maneira como reagimos, mas é a maneira mais, digamos, eficaz e produtiva de melhorarmos o relacionamento com os nossos miúdos.

A maior parte dos problemas que os miúdos têm hoje em dia tem a ver com a falta de tempo dos pais e a falta de tempo de qualidade

Há pouco dizia que os pais de agora tendem a dar mais valor à carreira, mas a verdade é que nos dias de hoje a vida familiar resume-se, em muitos casos, a horários e rotinas laborais complexas e a crianças que saem tarde da escola e levam ainda muitos trabalhos de casa para fazer. Chega a haver algum tempo de qualidade entre pais e filhos?

Não, de todo. Nem tempo de qualidade, nem tempo sequer. Discordo totalmente da ideia de que essa é a vida possível e trabalho com o oposto dessa ideia há cinco anos. Agora, concordo que a maior parte das famílias vive nesse registo e o meu trabalho de há cinco anos para cá é mostrar às famílias que existem outras formas de viver, outros estilos de vida que impliquem, em primeiro lugar, termos mais tempo para nós e quando temos mais tempo para nós tudo fica melhor para os miúdos, ou seja, quando eu não tenho tempo para mim, quando não tenho tempo para dormir, quando trabalho num mundo corporativo onde sou obrigada a fazer tarefas que nem sempre apelam aos meus dons e aos meus talentos, quando chego a casa cansada e ainda tenho de ir fazer o segundo turno, que é o jantar, os banhos, os TPC, quando não tenho dinheiro porque acaba na primeira ou segunda semana do mês e o resto do mês vai ser muito complicado, tudo isto também interfere de uma forma incrível na minha saúde física e mental e na minha relação com os outros dentro de casa e também fora de casa. Quando vivo nesse registo não posso ter tempo de qualidade, quando não tenho tempo para mim não posso dar alguma coisa aos meus filhos que eu não tenha.

É verdade que a maior parte dos portugueses não tem tempo de qualidade, não tem sequer qualidade de vida, nem tem um estilo de vida que seja family friendly, isto é, que seja amigo das famílias, que respeite as necessidades das famílias. Também trabalhei no mundo corporativo e em 2012 decidi sair porque percebi que ou ia continuar a viver para uma carreira que nem sequer me dá aquilo que pretendo ou sonho, nem em termos financeiros, nem em termos intelectuais, nem eu tenho qualidade de vida com os meus filhos.

Tomei a decisão de despedir-me e de procurar outras oportunidades, outra forma de vida, porque era impossível não ter outra forma de vida e, portanto, durante estes últimos cinco anos o que estive a fazer foi desenvolver um método de trabalho que respeite as famílias, que não obrigue as famílias a trabalharem numa empresa se elas não quiserem. Uma coisa é alguém estar a trabalhar num sítio que gosta e estar apaixonada pelo que faz, e isso é fantástico, outra coisa é as pessoas que trabalham porque precisam do dinheiro, porque precisam daquele trabalho. O que fiz foi desenvolver uma metodologia, uma filosofia de vida, um estilo de vida que não é novo, mas que eu trouxe para poder passar para outras famílias. Sou empreendedora digital, apoio famílias e pessoas mais jovens a desenvolverem empreendedorismo digital, que é uma nova forma de as pessoas colocarem os seus talentos como forma de rendimento e também de aproveitarem o mundo digital. Hoje, o que não estiver online não funciona.

Que não haja qualquer dúvida quanto a esta questão: A maior parte dos problemas que os miúdos têm hoje em dia tem a ver com a falta de tempo dos pais e a falta de tempo de qualidade, porque são duas coisas diferentes. Podemos-nos preocupar muito em colocar os filhos numa boa escola, em comprar bons manuais, em pô-los a ler desde pequeninos, pôr o miúdo a aprender inglês, francês e mandarim, pôr a criança em atividades extra-curriculares. Posso pensar nisso tudo, mas se eu não tiver tempo para desenvolver a relação, os problemas vão continuar e a verdade é que os problemas dos miúdos estão a adensar, estão cada vez maiores, porque a disponibilidade dos pais é cada vez menor, a disponibilidade mental, a disponibilidade financeira e a disponibilidade de tempo.

E no caso de um adolescente, a falta de tempo dos pais é também assim impactante?

Impacta de uma forma incrível, aliás, a idade dos filhos em que curiosamente mais precisam de acompanhamento é na adolescência. Hoje em dia, a maior parte dos adolescentes tem já uma bagagem de conhecimento e de vida muito maior do que algumas décadas atrás. Olhamos hoje para um adolescente, com tudo aquilo que lhe é permitido fazer, tudo o que tem disponível na sociedade, pensamos que já não precisa de nós, que já não há nada a fazer quando as coisas correm mal, as pessoas desistem muito cedo porque acham que o adolescente é já um adulto, mas a verdade, é que, emocionalmente, a adolescência é a fase que os miúdos mais precisam do acompanhamento dos pais. Eles não sabem dizer isso, eles não dizem isso.

A tendência deles é afastarem-se porque há neles um movimento de independência e de autonomia que faz parte do desenvolvimento e tem de acontecer, no entanto, eu posso dar espaço e liberdade sem que isso signifique não lhe dar limites, não alertá-lo para os desafios de hoje em dia. Hoje, os desafios de um adolescente e dos pais de um adolescente são consideravelmente maiores do que quando foi a minha adolescência. Falando em drogas, havia drogas na altura, mas as de hoje são fatais, há drogas que matam na primeira toma. As opções de álcool e saídas à noite são muito maiores, os perigos de internet são incríveis, há coisas que não passam pela cabeça a ninguém no que diz respeito ao que os jovens têm acesso e aprendem a fazer e o cérebro do adolescente é um cérebro que está muito sedento de aprendizagem, só que se aquilo que lhe dermos para aprender for droga, conduzir a altas velocidades, sair à noite ou vícios na internet, ele vai aprender isso muito rapidamente porque o cérebro não vai distinguir se é uma aprendizagem boa ou má. O adolescente tem um cérebro muito esponja para tudo o que é a capacidade de aprender novas coisas, mas, a nível cerebral, um vício é também uma aprendizagem. A própria sexualidade está hoje muito pervertida, têm uma ideia completamente errada do que é uma sexualidade saudável e baseada em princípios, baseada na confiança, na ternura, nos afetos.

Esses são os desafios que os pais hoje têm de perceber e ao contrário de meterem a cabeça na areia e fingir que não está a acontecer, os pais precisam de se colocar em frente aos filhos e dizer que é perigoso e que não vão permitir. Isso é quase um ato de coragem, sentimos-nos muito impotentes perante o que é as respostas que são muito temperamentais dos adolescentes e que são típicas da idade.

A nossa tendência é afastarmos-nos do adolescente, porque interferimos de uma forma errada, tentamos impor limites da forma errada, tentamos castigar, tentamos retirar privilégios, tentamos julgar, criticar e nada disso funciona com adolescentes, aliás, nada disso funciona com seres humanos, mas na fase da adolescência, se entrarmos com esta abordagem muito agressiva, são eles que se afastam ainda mais e é isso é o que acontece aos pais, em vez de trazerem proximidade na relação, criam distância. Quando criamos distância, é muito comum o adolescente ir para junto dos pares, que é já uma tendência dele, é onde ele recebe ânimo, onde é elogiado e encorajado, até para as coisas erradas. Os colegas e amigos não criticam, não comparam com o outro irmão, não castigam.

Temos de virar esta abordagem do autoritarismo porque isso nunca vai funcionar com os adolescentes do século XXI. Tem de ser uma autoridade baseada na liderança, tenho de seguir o líder por exemplo e não porque sou obrigado. O exercício da parentalidade de hoje em dia tem de ser um exercício de liderança, não de chefe, porque os miúdos hoje não vão responder às ordem.

A própria sexualidade está hoje muito pervertida, têm uma ideia completamente errada do que é uma sexualidade saudável e baseada em princípios

Como disse, os perigos da internet são incríveis, mas as crianças acedem à rede cada vez mais cedo. Como é que os pais podem contornar este fenómeno atual?

Se estivermos muito preocupados com algo externo a nós e na forma como controlá-lo, isso só vai funcionar se estivermos por perto. Uma medida de controlo parentar, pode ser ótima, no entanto, se não houver autocontrolo, se não ensinar a criança a controlar-se sozinha, a verdade é que quando não estiver por perto, e vai ser muito rápido, ele não vai saber tomar conta dele próprio.

Aqui a ideia é que quando eles nascem, e eles são nativos digitais, desde muito cedo que têm as novas tecnologias por perto, quase dentro do berço. Eu daria, a partir dos dois/três anos, enquanto a criança ainda não tem capacidade de se defender, algum controlo e muita supervisão no acesso a um tablet, telemóvel e até mesmo televisão, porque é igualmente estimulante e basta a criança ver o telejornal que vê imagens que têm um carácter angustiante enorme. Recomendaria, desde muito cedo, a dar-lhe algum espaço, pouco a pouco, para ele ir aprendendo a auto-regular-se, mas na primeira década de vida temos de ter muito controlo. O computador nunca deve estar no quarto, deve estar sempre à distância do olhar do adulto num local comum da sala, e a televisão também, e deve haver controlo de tempo, tenho de ser muito rígida nisso. No primeiro ciclo, não estipularia mais de meia hora por dia de televisão e já é bastante. Depois, à medida que vão ganhando espaço, antes de serem confrontados com imagens que causem choque, devemos ensiná-los a protegerem-se de certas imagens ou a pedirem ajuda sempre que algo de estranho aconteça, mas isso é muito mais importante do que uma aplicação de controlo parental, porque isso tem a ver com a relação de confiança que crio com a criança, posso atuar preventivamente. Se não houver essa relação, quando estiver sozinho vai fazer tudo.

A uma determinada altura devemos dizer que há imagens que perturbam, noutra devemos dizer que há pessoas que andam na internet e que são pessoas más e não podemos ter medo de dizer isso, porque, contrariamente do que os pais pensam, quando dizemos isso estamos a dar confiança à criança. Quando contámos a história do Lobo Mau à criança, não estamos a perturbá-la, porque quem a conta é o pai ou mãe que está tranquilo. Se disser que existem pessoas más nas redes sociais, mas que há forma de nos protegermos, não estou a assustar a criança, estou a dar-lhe ferramentas para ela poder proteger-se.

Mas isso significa mudar de mentalidade para muitos pais, pois basta irmos a um restaurante para vermos como o telemóvel serve para acalmar uma birra...

Completamente. Muitas vezes esquecemos que a principal forma de educarmos é pelo exemplo. Quando eu tenho o telemóvel na mesa de jantar e interrompo o tempo de família para atender uma chamada, estou a passar essa ideia às crianças, não posso querer que aprendam uma coisa diferente.

Em primeiro lugar, é uma mudança do nosso próprio comportamento, porque estamos sempre a modelar as nossas crianças, depois, tudo depende da forma como eu uso o telemóvel. Se o uso como um prémio, quando eu não lhe dou o telemóvel, ele vai ver isso como um castigo, mas há outros casos em que se passarmos a mensagem de que o telemóvel e a televisão são ferramentas que usamos para determinados fins, a criança não vai ver como castigo se eu disse 'põe o telemóvel de lado'.

É uma mudança completa de mentalidade. Quando interrompo a birra do meu filho com o telemóvel, isso funciona, mas funciona pelas razões erradas, porque na verdade, a criança tem de aprender a auto-controlar-se, mas não é com uma ajuda externa, com um telemóvel. Entregámos o telemóvel, porque a criança vai entrar em hipnose, fica focada e controlada e não faz barulho ou birras, mas isso é um erro.

E por falar em castigo, os pais devem mudar a forma como castigam as crianças? Se é que os castigos devem fazer parte da educação...

Vamos ser específicos: um castigo é algo que implica humilhação, vergonha ou culpa. Então, como é que eu conscientemente e como ferramenta educativa, utilizo algo que vai provocar dor, culpa, vergonha e humilhação num filho que eu amo? Não entendo os castigos como ferramenta educativa. Os castigos são usados para controlarmos o comportamento e pensamento humano e de outro animal, nós castigamos os animais e damos recompensas quando queremos domá-los, provoco dor quando se porta mal, e prazer quando se porta bem e é isso que fazemos com os nossos miúdos. No fundo estamos a dizer-lhes 'tu não tens córtex pré-frontal, tu não és racional e não tens capacidade para chegar lá por ti próprio, tem de ser através do castigo e do prémio'. Estamos a domesticar as crianças, sou completamente contra os castigos e nunca ninguém me conseguiu explicar em que é que funciona o castigo. Aliás, funciona sim, porque interrompe o comportamento, mas o que a criança aprende é a fazer as coisas às escondidas para não ser castigada.

Aquilo que sugiro para substituir o castigo é a consequência, pois a consequência respeita a criança, é razoável porque tem a ver com a idade e o desenvolvimento dela Se o castigo, por um lado, é mau, a repreensão pode ser uma boa alternativa?

Depende do que o pai entender por repreensão. Se a repreensão for eu criticar a criança e dizer que o irmão é melhor, isto não é algo que se faça por um ser humano pelo qual tenhamos respeito. Aquilo que sugiro para substituir o castigo é a consequência, pois a consequência respeita a criança, é razoável porque tem a ver com a idade e o desenvolvimento dela e, sobretudo, não mancha e não interfere na autoestima, algo que o castigo faz.

A consequência é algo que não interfere com a autoestima da criança, nem com o respeito ou dignidade. Se a criança diz 'hoje não quero jantar', eu posso adverti-la e dizer que vai ficar com fome e que a próxima refeição é o pequeno-almoço, mas se ela insiste que não quer jantar, então não janta. Qual a consequência? Ficar com fome, mas isto não é um castigo, é uma consequência, é a maneira certa de aprendermos com os nossos erros, é a maneira certa de educar.

Este exemplo é polémico, eu sei, mas se a criança não fizer o trabalho de casa, o que é que ela vai ter? Vai ter problemas com a professora quando chegar à escola, mas isso é bom para ela aprender que tem de fazer os trabalhos de casa, é bom para aprender que tem de estudar.

Se tenho alguém a repreender-me aos gritos, não vai ser uma experiência positiva, e só aprendo se a experiência for positiva, isso é ciência pura. Não vou aprender com a experiência de um adulto a dizer-me com um dedo acusador 'tu não fizeste isso bem' e a maior parte de nós fala assim com os filhos.

Voltando ao início da conversa. Se por um lado temos as famílias com pouco tempo para as crianças, temos também famílias que querem colocar a criança numa espécie de 'bolha'. Que implicações isso tem?

Há sim. Em primeiro lugar, essa criança vai crescer a pensar que é o centro do mundo e conheço muitas crianças assim de famílias que atendo, são crianças extremamente manipuladoras. Se eu super-protejo a criança, estou a dizer-lhe 'isto é amor, é eu tomar conta de ti para tudo', quando eu deixo de estar presente e a criança cresce, vai querer alguém para tomar conta de si para tudo, são pessoas que manipulam e que não conseguem lidar com o erro porque vai mexer com a identidade dela, dando a ideia de que já não é perfeita.

Super-proteção resulta em crianças sem sucesso, crianças desapontadas porque não vai haver gente a metê-las numa bolha pela vida fora, não vai ter ferramentas para se defender, vai ser profundamente infeliz porque não está satisfeita, vai ser manipuladora e não vai aprender com os erros.

Há um autor que diz que um perito é uma pessoa que numa determinada área de interesse cometeu todos os erros que havia para cometer. Ou seja, nós aprendemos com o erro, a criança aprendeu a andar porque caiu. Quando crio uma criança numa bolha, não estou a permitir que vá treinando os músculos da frustração, que vá lidando com pontos de vista diferentes, que espere pela vez dele, que lide com injustiça e tenha de seguir em frente com a autoestima intacta. Estou a retirar-lhe todas as oportunidades de viver uma vida plena.

Mas há também os pais que querem que os filhos sobressaiam dos demais, especialmente a nível académico...

Isso causa uma quebra de autoestima, os miúdos estão com uma autoestima muito lapidada. Quando o miúdo sente que o pai está mais preocupado com o seu sucesso cognitivo que ele às vezes não consegue dar, está menos preocupado com o que está a aprender de positivo na vida. Quando pergunta ao filho como correu a escola, a criança sente que o pai e a mãe querem ouvir que se portou bem, que teve a melhor nota da turma... Só que há um melhor da escola, um melhor da turma, há só um, o que quer dizer que a criança sente-se derrotada quando não é o melhor. Se a escola tem 500 alunos e um vencedor, há 499 que se sentem derrotados, porque há 499 pais que queriam que o filho estivesse lá em cima, mas a questão é: uma criança sente-se feliz quando é derrotada? O mais importante é saber o que é que a criança mais gostou no dia, com que professores falou, com que amigo teve a brincadeira mais gira, se teve algum problema... isso é construir uma relação.

Hoje estamos preocupados com o sucesso cognitivo e não percebemos que uma criança que não tenha uma autoestima não tem a ferramenta essencial para ter sucesso na vida, não são as competências técnicas. Conheço gente que é brilhante académica e tecnicamente, mas que não consegue relacionar-se com o irmão, com o pai, com a mãe, com o marido ou com a esposa. Os pais estão a esquecer-se das competências emocionais dos filhos e essas competências desenvolvem-se com tempo e com amor. Amor é tempo. Não posso dizer que amo o meu filho e que ele é a minha prioridade que no final do mês estive duas horas ou três com ele e essas horas foram para obrigá-lo a fazer o TPC ou a ser o melhor da turma, isso não funciona e os pais não estão a perceber isso.

Ainda há aquela ideia de os pais quererem que os filhos sejam o que não conseguiram ou puderam ser ou melhores do que foram?

Sim e não entendo isso. Como lhe disse no início, aquilo com que os pais mais se devem preocupar é com o que foi o seu passado e perceberem quais foram as feridas que ficaram lá e nos impedem de ser melhores pais. Querer que o meu filho seja algo tem a ver com o ego, que é uma coisa negativa. Muitas vezes usamos o ego pelas piores razões, tem a ver com vaidade, narcisismo parental. Sentir-se uma mãe competente porque a filha está em cinco atividades, é sobredotada, é a melhor da classe, usa roupas de marca, tem apenas a ver com o ego e muitas vezes acabamos por querer fazer aquilo que os nossos pais não fizeram connosco, mas com isso estamos a impedir a criança de seguir o seu próprio caminho. Será que gosta mesmo ou finge que gosta para agradar aos pais?

Costumo dizer que a maior parte das vezes não amamos incondicionalmente os nossos filhos, porque amar incondicionalmente alguém é aceitar a pessoa como ela éMas não corremos o risco de os pais ficarem desiludidos com os próprios filhos por não quererem seguir as suas pisadas?

Sim, mas isso não é amor. Costumo dizer que a maior parte das vezes não amamos incondicionalmente os nossos filhos, porque amar incondicionalmente alguém é aceitar a pessoa como ela é, se tem dificuldades na escola, se é metida com ela própria e não brinca tanto com os irmãos, se é mais lírica, introvertida. Em vez de tentar que seja diferente, tenho de aceitá-la como ela é, isso é que é amar incondicionalmente, estar lá para apoiar em tudo para tornar aquele ser humano na melhor pessoa que essa pessoa pode ser e não na melhor pessoa segundo o nosso critério.

Os pais dizem que amam incondicionalmente os seus miúdos, mas depois vamos a ver e não têm tempo para eles ou estão a tentar colocar as expectativas exageradamente altas num ser que às vezes nem tem uma década de vida e que não tem capacidade para interpretar isto tudo de uma forma mais madura e relativizar um pouco essa pressão, que é muito grande.

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