Setembro é o Mês Internacional de Sensibilização para o Cancro Pediátrico, uma altura que nos convida a refletir sobre uma realidade ainda pouco falada: cerca de 400 crianças e jovens recebem em Portugal um diagnóstico de cancro, mantendo-se esta doença na liderança como a principal causa de morte não acidental em idade infantojuvenil.
Apesar dos avanços da medicina e de 80% dos casos terem cura, dois terços das crianças e jovens sobreviventes vivem com sequelas físicas e emocionais que os acompanham ao longo da vida.
Para as famílias, o impacto pode ser devastador. Entre a dor e a incerteza, os pais são chamados a tomar decisões difíceis e a participar ativamente nos cuidados. Ter informação clara, rigorosa e acessível faz toda a diferença, uma vez que os ajuda a compreender a doença, a acompanhar os tratamentos e a transformar medo em ação.
É precisamente este o papel do PIPOP 3.0, o Portal de Informação Português de Oncologia Pediátrica, criado pela Fundação Rui Osório de Castro e recentemente renovado.
Por seu turno, a Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS) também tem desempenhado um papel inovador e estrutural na promoção da literacia em saúde em Portugal, não apenas na investigação e produção científica, mas também no apoio direto às organizações de saúde e no trabalho junto dos cidadãos.
"O objetivo é claro: garantir que todos tenham acesso a informação clara, compreensível e útil, de modo a reforçar a tomada de decisões conscientes, o empoderamento individual e a equidade no acesso aos cuidados de saúde", começou por explicar Cristina Vaz de Almeida, Presidente e fundadora da SPLS, ao Lifestyle ao Minuto.
No âmbito do PIPOP 3.0, a SPLS colaborou ativamente na tradução de informação técnica complexa para 'plain language' (linguagem simples, em tradução livre), assegurando que pais, cuidadores, crianças e jovens encontrem um portal digital que combina rigor científico com clareza comunicacional.
Em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, que pode ler abaixo, Cristina Vaz de Almeida apresentou alguns dos principais desafios e soluções no contexto da oncologia pediátrica, e explicou-nos como funcionam as novidades do PIPOP.
Cristina Vaz de Almeida© Presidente e fundadora da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde
Como define a literacia em saúde e qual a sua importância específica no contexto da oncologia pediátrica?
A literacia em saúde é a capacidade de aceder, compreender, avaliar e aplicar informação em saúde para tomar decisões informadas ao longo da vida (Sørensen et al., 2012). No contexto da oncologia pediátrica, esta competência é ainda mais crítica, pois os pais e cuidadores enfrentam decisões complexas e situações emocionalmente exigentes. A SPLS defende um conceito de literacia em saúde que vai além da leitura da informação: inclui pensamento crítico, empoderamento e participação cívica (Vaz de Almeida & Fragoeiro, 2022), aspetos que foram integrados no PIPOP.
Que desafios enfrentam as famílias quando recebem um diagnóstico de cancro infantil?
As famílias enfrentam três grandes desafios: sobrecarga emocional, que limita a capacidade de processar informação; complexidade técnica da linguagem médica, que gera barreiras de compreensão; e desigualdades educativas e digitais, que dificultam o acesso a recursos. É por isso que portais como o PIPOP, adaptados para diferentes níveis de literacia, são tão importantes.
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A baixa literacia em saúde pode afetar o sucesso do tratamento e a qualidade de vida das crianças e famílias?
Sim. Estudos demonstram que níveis baixos de literacia em saúde estão associados a pior adesão terapêutica, maior ansiedade e menor qualidade de vida (Paasche-Orlow & Wolf, 2007). No cancro pediátrico, compreender instruções sobre efeitos secundários, medicação ou acompanhamento é essencial para a eficácia terapêutica e para o bem-estar das famílias.
O novo PIPOP 3.0 foi lançado com uma imagem renovada e mais conteúdos. O que o distingue de outros portais?
O PIPOP 3.0 destaca-se por ter conteúdos em linguagem clara, resultado da intervenção da SPLS, rigor científico e validação multidisciplinar, com especialistas clínicos, centros de referência e associações profissionais. É uma estrutura centrada no utilizador, com áreas dedicadas a pais, jovens e profissionais, e que tem acessibilidade digital reforçada. A SPLS desempenhou um papel determinante na tradução do jargão técnico em informação compreensível, preservando o rigor científico e facilitando o acesso das famílias
De que forma o PIPOP contribui para empoderar pais e cuidadores?
O portal disponibiliza informação clara e validada, reduzindo a dependência exclusiva do discurso médico. Traz ainda ferramentas práticas, como perguntas-chave para consultas, testemunhos de famílias e conteúdos multimédia que ajudam a tomada de decisão partilhada.
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Como foram adaptados os conteúdos para diferentes níveis de literacia?
Foram aplicadas técnicas de 'plain language', ou seja, frases curtas e termos simples; infografias, vídeos e listas; revisão de usabilidade com famílias; validação pela matriz de avaliação de literacia da SPLS (2025). Além disso, foram criados 'focus groups' com famílias e jovens adolescentes para confirmar se estávamos a seguir o caminho mais certo e útil para estes destinatários, o que viemos a confirmar.
A informação clara pode transformar medo em ação. Como comunicar sem gerar ansiedade?
Seguindo o Modelo ACP (Assertividade, Clareza, Positividade); desenvolvendo uma comunicação empática e transparente; permitindo uma informação gradual, respeitando o ritmo das famílias; e usar vídeos, imagens, testemunhos e metáforas adequadas e um foco nas soluções disponíveis e na melhor navegabilidade no sistema de saúde.
Que estratégias considera eficazes para comunicar com crianças e jovens sobre a sua doença?
Usar linguagem visual, adaptar conteúdos à idade, promover diálogo aberto e dar espaço para a criança ou jovem participar no seu cuidado, quando possível. E perguntar-lhes o que é importante para eles. As crianças e os jovens devem ter voz na sua doença e saúde.
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A literacia em saúde também é importante no pós-tratamento?
Sem dúvida. Dois terços dos sobreviventes apresentam sequelas tardias. A literacia em saúde ajuda a reconhecer sinais, aderir a follow-up e adotar hábitos saudáveis para uma vida autónoma e de qualidade. Devem ser desenvolvidas também competências parentais.
Que papel pode ter o PIPOP no acompanhamento pós-tratamento?
Oferece informação muito credível - o que combate a desinformação - promove comunidades de apoio, integra recursos digitais de monitorização, e mantém as famílias ligadas a redes psicossociais.
Como avalia a evolução da literacia em saúde em Portugal na pediatria oncológica?
Há avanços claros, como o PIPOP, mas persistem desafios: assimetria digital, formação em comunicação dos profissionais, e integração da literacia em políticas públicas. A SPLS tem tido um papel muito relevante na intervenção junto das comunidades e baseada na ciência.
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Que medidas faltam implementar para garantir acesso universal à informação em saúde?
Destaco quatro medidas:
1. Literacia em saúde nas escolas;
2. Formação contínua em comunicação clara para profissionais;
3. Portais inclusivos, adaptados a pessoas com baixa literacia e deficiência e a multiculturalidade. Destaco o trabalho que estamos a fazer num projeto Horizon EU CIP para a criação de um portal europeu de informação sobre o cancro para pessoas com cancro e cuidadores. A SPLS está a criar os critérios de qualidade;
4. Maior articulação entre Estado, associações e sociedade civil.
Setembro é o Mês Internacional de Sensibilização para o Cancro Pediátrico. Qual a importância desta data?
Aumenta a consciencialização, dá voz às famílias, reforça o papel da literacia em saúde e mobiliza decisores e sociedade para ações conjuntas. É um momento de educação pública, solidariedade e reforço da esperança.