'Do Outro Lado do Tempo' é o novo livro de Ana Markl, uma narrativa baseada nos seus próprios diários da adolescência.
Trata-se de uma verdadeira viagem pelos anos 90, com dores de adolescência, música e humor à mistura.
No livro, Ana Markl traz-nos uma conversa imaginada entre o passado e o presentw, abordando temas, dilemas e questões transversais a todas as gerações.
Estivemos à conversa com a autora que nos falou sobre este projeto.
Como é que surgiu a ideia de escrever este livro?
O desafio era escrever um livro para adolescentes, sabendo como é difícil ter a atenção desse público. Geralmente, quando não sei o que fazer, escolho a verdade: por isso, decidi pegar nos meus diários e tentar perceber o que poderia ainda haver em comum entre uma adolescente dos anos 90 e os adolescentes de hoje.
Escolhi alguns excertos com pensamentos que considero intemporais e pus a Ana do presente a falar com a Ana do passado, para dar um certo consolo à Ana que fui e aos adolescentes que possam estar a passar pelas mesmas dores de crescimento.
Depois, a Christina Casnellie fez mais do que ilustrar estas memórias, acrescentou-lhes camadas, enriqueceu toda a minha história com a sua sensibilidade e talento, até porque se reviu em muitas dessas memórias.
© Penguin Random House
Descobri que, apesar das minhas inseguranças, eu gostava muito de dialogar comigo mesma, por isso via na escrita de diários uma espécie de superpoder de autoanáliseComo foi voltar a ler os seus diários?
Foi incrível. Reconheci-me, percebi que mantenho muitas das minhas características. Descobri que, apesar das minhas inseguranças, eu gostava muito de dialogar comigo mesma, por isso via na escrita de diários uma espécie de superpoder de autoanálise. Podia sofrer um pouco socialmente, mas tinha-me a mim mesma e isso é tudo.
Quais as memórias mais queridas que guarda dos anos 90?
É difícil especificar, mas foram tempos em que vivi mais intensamente a minha paixão pela música: os primeiros concertos, os primeiros festivais, acordar de madrugada para gravar em VHS concertos que passavam na MTV. É muito do que está no livro também, além das primeiras grandes paixões, que também alimentam a narrativa.
A Ana refere que era "demasiado estranha para os normais e demasiado normal para os estranhos". Como assim?
Era já uma espécie de Síndroma do Impostor aplicado à minha identidade, que ainda estava em construção. Eu sentia que era diferente das pessoas mais convencionais (que se vestiam de uma forma mais convencional e que tinham menos preocupações), mas também sentia que não era tão carismática como as pessoas mais "alternativas".
Quais eram os seus maiores dilemas da adolescência?
Esse dilema da identidade era um dos maiores: quem é que eu sou, como é que eu quero que o mundo me veja. Eu queria viver um grande amor, mas quase ninguém à minha volta se entregava a esse tipo de sentimento arrebatador. Durante algum tempo, até encontrar a minha "tribo", vivi entre a pressão dos pares e aquilo em que eu realmente acreditava. Por mais que me sentisse sozinha, vejo agora que muita gente sentia o mesmo que eu, mas tinha medo de se afirmar. Acabei por lutar para contrariar esse medo e fiz-me a pessoa que sou hoje, de quem a jovem Ana certamente se orgulharia.
Os adolescente continuam a ser tratados como se fossem projetos de adultos, em vez de serem tratados como indivíduos, com uma voz própria e necessidades específicas. Encontra semelhanças com os atuais?
Sim. Há novas ameaças e novas formas de convivência, parece-me tudo bastante mais duro e perigoso, mas na origem desses dilemas está sempre essa falta de autoestima provocada por uma sociedade que não aceita formas diferentes de ver e sentir o mundo.
Também continua a haver muita falta de comunicação entre gerações, muita incompreensão e falta de empatia relativamente aos jovens. Continuam a ser tratados como se fossem projetos de adultos, em vez de serem tratados como indivíduos, com uma voz própria e necessidades específicas.
O que mais a assusta quando olha para os adolescentes da atualidade? E o que mais lhe dá esperança?
O que mais me assusta é ver como se refugiam nos ecrãs, sofrendo a pressão da aceitação de uma forma muito mais feroz no meio digital. E depois vão parar ao discurso de ódio, que lhes dá uma ilusão de importância e de pertença que não é real e que não lhes dá qualquer tipo de consolo. Promove apenas a raiva. É muito fácil que a sensação de incompreensão leve à revolta. Mas a revolta pode e deve ser consciente e produtiva, e não destrutiva como aquela que é incitada nos submundo da internet.
Há uma tendência das pessoas mais velhas desvalorizarem os mais novos, sobretudo os adolescentes. Pensa que esta tendência está a mudar? Ou ainda há um longo caminho a percorrer?
Essa tendência manifesta-se de duas formas hoje em dia: ou os adultos ignoram e destratam os jovens ou então são extremamente ansiosos e controladores. Nenhuma dessas atitudes tem em conta os interesses dos jovens, revela muita falta de confiança em nós mesmos, enquanto educadores, e neles enquanto indivíduos.
A chave está no amor, na atenção, na confiança e, como resultado de tudo isto, na autonomia. Não podemos dar a desculpa de que "os jovens de hoje são assim e o mundo está como está". Está nas nossas mãos vê-los tal como são, cada um deles, e acompanhá-los, acreditar neles, promovermos o seu pensamento crítico, sempre com muito amor.
Descreva cinco coisas que aprendeu quando era adolescente.
- Que temos de nos aceitar para que os outros nos aceitem.
- Que temos de dizer a verdade para que os outros nos respeitem.
- Que a casa deve ser mais importante do que a escola.
- Que os nossos pais não são perfeitos mas que, quando fazem o seu melhor, fazem mais do que o suficiente.
- Que não devemos ter pressa.
Se pudesse dar um conselho à Ana - quando era adolescente - qual seria?
Dir-lhe-ia para nunca deixar de ser quem é, para confiar mais no seu próprio corpo, para não desistir das artes e para ser mais aventureira.
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