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"O futebol é uma bolha. A vida real não é o que vivemos todos os dias"

Na segunda parte desta entrevista de Manuel Fernandes ao Desporto ao Minuto, o médio português falou sobre as experiências que teve fora do seu país e sobre a vida de um futebolista. O jogador recusa ser treinador depois da carreira dentro do campo, afirmando que quer continuar a jogar, mas ainda não sabe onde.

"O futebol é uma bolha. A vida real não é o que vivemos todos os dias"
Notícias ao Minuto

08:08 - 14/06/22 por Tiago Antunes

Desporto Exclusivo

Manuel Fernandes não é homem de uma casa. Numa carreira que já vai longa, o internacional português passou por vários países e cruzou-se com várias realidades competitivas.

Nem todas foram do seu agrado, mas tem feito uma carreira sem arrependimentos. Joga onde lhe é concedido tempo de jogo e admite que não se coloca acima de qualquer emblema. A figura tranquila e pouco exaltada de Manuel Fernandes não lhe tira a emoção e o gosto pelo futebol, que pretende praticar por muitos mais anos.

No final da carreira de jogador, quer distância da modalidade para viver a 'vida real'. A bolha do futebol não permite tal coisa aos jogadores, mas Manuel Fernandes, em conversa com o Desporto ao Minuto, mostrou zero remorsos. Tem sido uma carreira longa, ocupada e "pragmática".

Havia possibilidade de ficar, mas não me parecia que fizesse muito sentido

De Inglaterra, passou para Espanha. O que achou dessa experiência?

Não correu muito bem e a culpa foi minha. Estou em Inglaterra cerca de 10 dias, a pensar que as coisas iam correr bem [para uma transferência em definitivo para o Everton] e tive de voltar para Portugal. O Valencia, nessa altura, andava atrás do van der Vaart e do Sneijder, os dois do Real Madrid, e a aquilo não se deu e então tentaram contratar-me. Na altura, tinha tudo já decidido na minha cabeça, queria dar seguimento ao processo de evolução em Inglaterra. Quando fui para o Valencia, penso que não fui com o 'mindset' correto. Era um clube que vinha de algumas vitórias no campeonato, na Taça UEFA, na Supertaça Europeia. Era um grupo com um núcleo já antigo e, pela minha postura, não era um grupo fácil de integrar. Por tudo isso, não foi assim tão fácil.

Disse que se sente estrangeiro a jogar há vários anos fora de Portugal. Foi por isso que acabou por aceitar a ida para Espanha.

Não muito. Voltar para o Benfica seria complicado naquela fase. Pelo que tinha acontecido... Havia possibilidade de ficar, mas não me parecia que fizesse muito sentido. Apareceu o Valencia, com uma oportunidade de campeonato espanhol, uma equipa bastante competitiva, estava sempre no top-4 de Espanha. Pensei que fosse um bom sítio para jogar, para evoluir.

Notícias ao Minuto Manuel Fernandes jogou três épocas e meia no Valencia© Getty Images

De Espanha, mudou-se para a Turquia, para jogar no Besiktas. O que é que o convenceu no país e no futebol para lá jogar?

Foi a questão de querer jogar mais. No final da ligação com o Valencia, estava a ter menos minutos de jogo e na altura estava a pensar no Euro'2012. O Besiktas deu-me essa oportunidade de jogar mais e tomei essa decisão.

Foi com alguma ideia formada do futebol turco?

Não tinha a menor ideia, fui sem qualquer expectativa. Foi um bocado um tiro no escuro.

E como correu esse tiro no escuro?

Correu bem. A nível coletivo, ganhámos uma Taça no primeiro ano, ficámos duas vezes em terceiro. O Fenerbahçe e o Galatasaray dominaram nessa altura. Mas correu bastante bem, joguei bastante, o nível foi bastante bom, acredito que foi onde apresentei o meu melhor nível futebolístico. Foi bom para crescer enquanto jogador e isso só acontece jogando.

Falávamos sobre o ambiente do futebol inglês, mas o futebol turco também é bastante vivido. Como é viver um Clássico com estádio cheio na Turquia?

É uma das melhores coisas para um jogador. São os melhores jogos que se pode ter. Os estádios estão sempre cheios, eles vivem o futebol 24 sobre 24 horas, não há outra coisa que não seja o futebol. Em Portugal, damos muita importância ao futebol, mas lá dão ainda mais. Isso traduz-se em multidões nos estádios, na participação em massa em jogos, sejam grandes ou pequenos jogos. Uma vez jogámos contra o Manisaspor, um clube pequeno, e pelo menos dois terços do estádio estavam cheios.

Notícias ao MinutoManuel Fernandes jogou no Besiktas entre 2011 e 2014© Getty Images

Mudou-se para o futebol russo e tem uma época mais goleadora, com 14 golos, apenas quatro de penálti. O que mudou no seu jogo para conseguir estes números?

Quando fui para o Lokomotiv Moscovo joguei muito a falso extremo, poucas pessoas sabem disso. Jogava mais perto da baliza, era mais preponderante, tinha mais ações no último terço. Trabalhava a construção de jogo, mas tinha mais ações de finalização. Fiz mais golos e mais assistências, não jogava tão longe da baliza como no Besiktas. 

E como é que foi sentir o futebol na Rússia?

Para quem sai da Turquia e vai para a Rússia, é quase um choque. Sai-se de um sítio onde se enche um estádio facilmente e vai-se para outro onde não se sente tanto o futebol, não se enchem os estádios, onde até parece que o futebol não é o desporto principal. É uma questão cultural.

Mundial? Foi giro poder conviver com atletas que vêm de outra realidadeFoi quando jogou na Rússia que foi chamado à seleção nacional para jogar o Mundial'2018. O que significa representar o país numa prova de seleções?

É o expoente máximo, melhor que isso só mesmo disputar o Mundial e ganhá-lo. Não há melhor a nível de seleções. O Europeu é porreiro, mas Mundial é Mundial, tem equipas como Brasil, Argentina ou Japão. Temos a hipótese de jogar contra os melhores jogadores do planeta enquanto representamos o nosso país num torneio. Para mim, não há nada que seja melhor que isso.

A experiência do Mundial é jogar, mas também o estar com aqueles que são considerados os melhores jogadores do país, conhecê-los de outra forma. Quão interessante é estagiar na seleção?

Na altura, achei bastante interessante. Havia jogadores mais novos que eu, fui com 32 anos, sou de outra geração, e foi giro poder conviver com atletas que vêm de outra realidade e poder partilhar com eles as minhas experiências. Havia muita malta a jogar no estrangeiro como eu, então a conversa era sempre boa porque fazia parte do processo de aprendizagem.

Notícias ao Minuto Manuel Fernandes foi chamado por Fernando Santos para o Mundial'2018© Getty Images

O Manuel ainda acredita numa última chamada à seleção ou o tempo já passou?

Já passou, já passou. Já foi.

Conseguiu aproveitar a experiência da seleção enquanto pôde?

Aproveitei tanto quanto era possível. Se olhar para jogadores como João Moutinho, Nani, jogadores da minha geração e que têm mais internacionalizações, não vou dizer que podia ter feito os mesmos jogos que eles, mas pelo menos metade. Não aconteceu, mas acredito que dei o melhor e aproveitei.

Regresso ao Sporting? Houve hipóteseÉ por volta dessa altura que o Manuel também é falado para um regresso ao Sporting. Quão perto esteve de acontecer?

Assim de cabeça, lembro-me que houve hipótese quando o presidente era o José Eduardo Bettencourt. Não me recordo bem em que ano foi, mas deve ter sido quando estava no Valencia [entre 2008 e 2011].

Notícias ao Minuto Manuel Fernandes teve conversas para regressar ao Sporting, mas sem acordo© Getty Images

Mas havia vontade de voltar?

Nem foi algo que tivesse sido aprofundado. Noutra altura, quando estava no Besiktas, também houve conversas, mas fui para o Lokomotiv Moscovo. Foi mais uma abordagem do que outra coisa.

O regresso a Portugal para jogar num clube grande agradava-lhe?

Eu sempre disse que gostava de regressar a Portugal, gostava de ter regressado ao Benfica e mantenho essa afirmação.

O Kayserispor queria lançar a notícia de que eu era assim e assado e que estava lesionado. O problema é a imagem com que se ficaDecidiu regressar à Turquia depois de seis anos na Rússia. Na última temporada, esteve em destaque pelos piores motivos quando foi alvo de críticas públicas da direção do Kayserispor, clube que representava. O que aconteceu?

Não fiz assim tanto como eles disseram. Por acaso, há cerca de uma semana ganhei o processo contra o clube, tive de apresentar queixa na FIFA porque estavam a falhar no pagamento, colocaram-me a treinar à parte para arranjarem uma razão para não pagar. Seria a mesma coisa que eu chegar ao clube e dizer que não me apetece treinar. No fundo, temos de respeitar as nossas obrigações, os contratos têm de ser cumpridos por ambas as partes. Eu cheguei, trabalhei, tenho de ser remunerado por tal, se não trabalhar, não sou remunerado. É muito simples. E no Kayserispor achavam que as coisas tinham de ser feitas como eles queriam, os contratos eram como papéis assinados e guardados na gaveta ou deitados fora. Não foi tanto pela questão do dinheiro, mas apresentei o caso. Normalmente, demora algum tempo para se resolver um caso na FIFA, mas, em questão de dois meses, eles conseguiram perceber que quem tinha razão era eu.

Mas isso teve consequências na sua carreira?

Depois o clube queria lançar a notícia de que eu era assim e assado e que estava lesionado. O problema dessa notícia é a imagem com que se fica, já ninguém quer saber se ganhei o caso em tribunal ou não porque aquilo saiu da boca de dirigentes, são vistos como pessoas corretas, honestas e, portanto, dizem sempre a verdade. Mas isto é como tudo, a verdade vem sempre ao de cima, só falta saber se as pessoas querem saber da verdade. Consigo perceber que é mais interessante ler esse tipo de notícias, as pessoas vão clicar e ver em vez de clicarem na que diz que o Manuel Fernandes ganhou um processo contra o Kayserispor. A malta quer é ler as notícias picantes e isto não tem nada de picante. Felizmente, tenho essas provas todas a meu favor e em pouco tempo, como disse, o caso ficou resolvido.

O futebol, por vezes, parece algo encantado e com um mediatismo diferente das restantes áreas. Há quem trabalhe no futebol e o interprete como uma área particular, com uma linha de conduta completamente dissociada daquela usada nas restantes áreas?

Joguei sete anos na Turquia e percebi que o futebol turco, por vezes, nem é futebol, é mais política. Infelizmente, há muitas pessoas quem chegam de outras área e que querem implementar coisas no futebol que não combinam com o futebol. Depois, há pessoas que não têm nada a ver com a imagem do futebol, pessoas de mau carácter, pessoas que não sabem estar, são pessoas que entram na modalidade e não acrescentam nada. Só procuram confusão e mau estar.

Notícias ao Minuto Manuel Fernandes teve um segunda passagem rápida pelo futebol turco, no Kayserispor© Getty Images

O Manuel conseguiu dar a volta por cima e foi jogar nesta temporada na Grécia. Era a paz que precisava depois de lhe apontarem o dedo?

Sinceramente, fui para a Grécia por causa do Bruno Alves. Tinha falado com o Nani, ele falou com o Bruno e isso facilitou a ida para a Grécia. Foi bom porque deram-me a possibilidade de jogar, não joguei tanto porque tive uma pequena lesão, umas duas semanas depois de ter chegado, e tive problemas com a inscrição. O Kayserispor não fez as coisas como deve ser e o processo complicou a inscrição, mais um dado que aponta para a falta de profissionalismo. É importante que as coisas acabem a bem e que cada parte siga o seu caminho. Infelizmente, não aconteceu nessa maneira, mas a ida para a Grécia foi para experienciar algo de diferente e para continuar a competir, que era o mais importante.

O futuro passa pela Grécia?

Não. O campeonato já acabou e o meu contrato vai terminar no dia 30 de junho. O objetivo, agora, será encontrar um sítio onde possa jogar com alguma regularidade, apesar da idade.

Inglaterra, Espanha, Turquia, Rússia e Grécia. Qual é o próximo país?

Boa pergunta, nem eu sei.

Mas gostava de conhecer algum país, alguma realidade, alguma cultura em específico?

Não faço realmente questão. O mais importante, neste momento, é ter a oportunidade de jogar. O resto não será tão relevante.

O futebol é uma bolha. A vida real não é o que vivemos todos os diasArrepende-se de alguma parte do percurso que fez na carreira?

Não, tudo o que foi feito até aqui teve como base os valores que tenho como pessoa. Tudo o que aconteceu de bom e de mau refletiu-se na pessoa que sou hoje, sinto-me confortável com o tipo de homem e de jogador que me tornei. Arrependimentos não tenho, mas há sempre aquele olhar para trás e pensar que podia ter feito as coisas de uma forma diferente, mas isso é quase como tudo na vida. Tem a ver com a maturidade que a certa altura não se tem e acabamos por perceber as coisas mais tarde.

É uma carreira curta demais para demasiadas emoções e há quem não tenha a maturidade para enfrentar problemas em certas alturas dessa carreira.

Mas isso acontece porque nós começamos muito cedo. Não há maturidade porque o futebol é uma bolha, só começamos a viver quando deixarmos o futebol. A vida real não é o que vivemos todos os dias. Ninguém tem um trabalho no qual entra às 10 da manhã, sai às 12h30 e tem o resto do dia livre. Depois, todas as consequências de se ser atleta, figura pública... Quando acontece, temos de saber lidar com isso e, infelizmente, há muitos que não conseguem ter as melhores decisões nesses momentos.

O ser figura pública com a vida praticamente exposta é um dos fatores que mais influencia o jogador dentro do campo?

Claramente que sim. Os que são mais mediáticos são vistos à lupa, as pessoas estão mais interessadas no que eles estão a fazer e não tanto no resto. Mas, hoje em dia, com as redes sociais, fica mais fácil isso acontecer, o mediatismo já não é a nível europeu como antes, é global. Na verdade, só é exposto quem deixa.

Até quando pensa jogar futebol?

Enquanto o corpo o permitir.

Até com 40 anos?

Se alguém me quiser com 40 anos... Isso será mais difícil, mas enquanto o meu corpo me permitir, terei intenção de jogar.

Dizia que não se vive a vida real enquanto se está no futebol. Não tem medo de viver menos dessa vida porque jogou mais tempo?

Não. Acredito que tem de se disfrutar. Eu já jogo há 20 anos e, mesmo assim, é um período muito curto. Sou um privilegiado porque comecei muito cedo, mas, se tudo correr bem, tenho mais uns 40 anos para viver a outra vida.

Notícias ao Minuto Manuel Fernandes disputou a última época no Apollon Smyrnis© Instagram Manuel Fernandes

Depois da carreira de jogador, o futebol fica posto de parte?

Sim. De momento, o intuito é deixar de parte.

O ser treinador, diretor desportivo, nunca lhe chamou a atenção?

Nem por isso. Acho que a posição de treinador é muito complicada, ser jogador é muito mais fácil. Chega-se de manhã, não é preciso preparar treino, não é preciso analisar o adversário, não é preciso ficar mais tempo depois do treino para ver como foi o treino, o que ficou bem e mal feito. Vou para casa e acabou o meu dia do futebol. Não me vejo num papel desses no futuro.

O futebol ainda lhe dá alegrias como dava antigamente?

O facto de poder treinar e jogar já é uma alegria.

Numa palavra, como define a sua carreira?

Pragmática. É o que chega.

Leia aqui a primeira parte da entrevista de Manuel Fernandes ao Desporto ao Minuto. 

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