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"O Cristiano Ronaldo é que é o Nuno Vitorino do futebol"

Aos 18 anos, Nuno Vitorino sofreu um acidente com uma arma de fogo, que o deixou tetraplégico. Porém, isso não o impediu de encarar a vida com um sorriso e de se tornar campeão europeu de surf adaptado.

"O Cristiano Ronaldo é que é o Nuno Vitorino do futebol"

Nesta quarta-feira, dia 28 de abril, o Desporto ao Minuto volta a apitar para um 'Jogo sem Regras', e, sem recurso a cartões ou expulsões, exploramos sem guião o entrevistado, que acabará por ser o 'GPS' desta conversa.

Sem 'lugar cativo', mas merecedor de todos os holofotes, abrimos a porta a Nuno Vitorino, campeão nacional, campeão europeu e número 4 da hierarquia mundial do surf adaptado.

Aos 18 anos, ficou tetraplégico, após um amigo, de forma acidental, lhe acertar com uma arma de fogo. A cadeira de rodas leva-o a encarar a vida com "maior adrenalina". Nenhuma limitação física o impede de ir para o mar dia após dia, sempre com o intuito de ganhar.

A ambição é ser o melhor do mundo. Um objetivo que já tem data traçada. Sobre o amigo que o alvejou? "Não há nada a perdoar. Voltámos a falar quase 20 anos depois e o que lhe disse foi: ‘O que já lá vai, já foi. Agora, o que tens a fazer é, quando a pandemia acabar, ir comprar um fato e surfar comigo’".

O ano de 1995 tornou-se para o Nuno Vitorino um ‘certificado de óbito’ às suas aspirações como desportista ou num processo de ‘reencarnação’?

Muito honestamente, acho que não se tratou de um ‘certificado de óbito’. O ano de 1995 não foi para esquecer, mas para aprender que não devemos brincar com o fogo. Porém, todos nós fazemos coisas erradas. Quem é que nunca andou a mais de 120km/hora na auto-estrada? Quem é que nunca cometeu algum excesso? Aqui, tratou-se de um excesso de dois jovens, que resultou numa tetraplegia do meu corpo. Porém, a minha ‘reencarnação’ surgiu depois. Considero que me foi dada uma oportunidade, pelo menos foi assim que encarei. Mentalizei-me que, a partir daquele momento, tinha de fazer algo de útil, e senti que tinha voltado a nascer. Em 1995, não me deram um vaticínio de que ia ser autónomo, mas eu quis sempre provar que era possível.

Mas, acredito que, com apenas 18 anos, deve ter sido difícil processar tanta informação em simultâneo e perceber que a sua via ia mudar de uma forma tão radical…

Nunca pensei em deficiência, nem nessa altura, nem agora. Prefiro pensar em perfil funcional e em tudo o que meu corpo é capaz de me oferecer, não só a nível físico - porque, obviamente, contra outra pessoa, na plenitude das suas aptidões físicas, fico a perder - mas, se fomos avaliar o perfil funcional, se calhar, não fico assim tanto a perder. Não quero aqui retirar nenhum pingo de humildade, mas há coisas muito mais significativas do que correr, subir escadas ou chegar a um sítio x ou y num determinado período de tempo. Claro que viver numa cadeira de rodas é bastante limitativo, mas eu tenho algo que me transforma, que é a capacidade de pensar, de analisar as coisas e encontrar, dentro da deficiência, pequenos mecanismos que me levam a atingir determinadas funcionalidades físicas. Quando olhamos para uma pessoa deficiente, só observamos a parte negativa, mas a pessoa tem muito mais para oferecer. Vejamos o caso do Stephen Hawking, em que vemos uma pessoa com uma limitação gigante, mas depois é o que é, porque tem um perfil funcional bastante eficaz. 

Não basta estar no sofá a reivindicar. Se não gostam dos nossos políticos, então estudem para um dia lá chegarAlém de ter ficado paraplégico aos 18 anos, o Nuno também partiu várias vezes a cabeça na adolescência. Nos últimos tempos voltou a ter a sua vida em risco?

Ainda acontece no presente. Eu pratico surf, enfrento ondas gigantes e há quem me pergunte: ‘Qual é o tetraplégico que se mete no mar a enfrentar ondas de dois ou três metros, ou um bocadinho maiores?’. Não existe. Pelo menos em Portugal, não há muitos casos assim. Das pessoas que conheço, há três pessoas com a mesma patologia e que enfrentam o mar como eu. Mas o que eu digo é que, se na altura não tinha a consciência de que estava a brincar com o fogo, agora tenho essa consciência. E isso leva-me a treinar mais e mais.

E nunca temeu a morte?

Eu tenho medo de morrer, isso eu tenho. Agora, se isso me leva a inibir em alguma coisa que possa fazer? Isso nunca. Isto também não é uma só questão de coragem, mas igualmente ter consciência do que se está a fazer. Se perguntar a outra surfista das ondas grandes, ao McNamara ou ao António Silva, eles também têm medo de morrer. Era inconsciente dizer que não, mas isso não nos limita. As coisas não acontecem por acaso, e isto não é uma questão de sorte. O mar não distingue se estou ou não numa cadeira de rodas, e ele não me vai perdoar um erro. Por isso é que temos de treinar muito para evitar que depois aconteça o mais grave.

Mas tendo em conta a sua condição, não considera que o risco é maior para si?

Respondendo de uma forma simples? Sim. O que é preciso é termos consciência das nossas limitações e treinarmos mais do que os outros. Eu não faço treinos, nem vou para o mar dentro de uma cadeira de rodas. O mar só mata e assusta quem não tem conhecimento do mar. Ele é nosso amigo quando o conhecemos bem, e, para mim, surfar é um vício.

E o mar nunca o traiu?

O mar nunca me traiu, e, se alguma vez isso sucedeu, foi porque me distraí (risos). Eu faço treinos de apneia desde que me lembro que faço surf e desde que estou numa cadeira de rodas. Faço treinos de ginásio para reforço muscular, e faço isto para cada vez puxar mais pelo corpo, apesar de a idade ir sendo cada vez maior. E, enquanto não chegar àquela parte vida em que a força começa a decair, vou continuar a treinar para surfar ondas ainda maiores.

Para quem não conhece tão bem o surf adaptado, quais são as diferenças que existem em relação a alguém que pratica a modalidade sem qualquer limitação física?

O surf é adaptado tendo em conta a nossa condição, mas às vezes não é preciso falarmos em deficiência para nos referirmos a surf adaptado. Por exemplo, uma pessoa com 1,80 fará surf de uma forma, mas outra que tenha 1,60m e seja gorda já terá de praticar o surf de uma forma, lá está, adaptada a esse perfil. No meu caso, adapto a prancha, que não tem o tamanho standard, até porque é feita com base no nosso peso e estilo de surf. A minha, comparativamente, às outras, é um pouco mais grossa e tem duas pegas à frentes, de resto é tudo igual.

E como o mar não se adapta a quem tem uma condição física diferente, ele acabará por servir o mesmo ‘prato’ a todos… 

Exatamente. Um bom surfista é o que ganha, porque aqui não há a questão da participação. Afinal, a este nível, não se parte com objetivo de participar, mas sim de ganhar. É o que aponta sempre a ser primeiro. 

Notícias ao Minuto         Nuno Vitorino em ação dentro do mar© D.R.  

E nunca sentiu que podia ter ido ainda mais longe se o corpo lhe permitisse? Não lhe surge, algumas vezes, aquela sensação de raiva? 

Não, porque eu faço o que quero. Agora, se me dá alguma raiva não andar autonomamente e não poder vestir o meu fato de surf, sem esperar pela ajuda de alguém, claro, isso dá-me bastante raiva. Esta é a limitação dentro da deficiência, mas dentro de água não há deficiência. E, honestamente, eu tenho de agradecer a quem me ajuda, porque quem me ajuda também é um atleta que está bem preparado para nós. Isto funciona como uma equipa. Não te basta ser bom, é preciso quem te acompanha também o ser. E, em Portugal, nós temos a sorte de ter bons atletas, que nos ajudam nos desportos paralímpicos a ser ainda melhores. Imagina só isto: um atleta cego que corre os 100 metros e faça esse trajeto em 10 ou 11 segundos, isso também obriga que o atleta-guia tenha de correr muito. Por isso, quem nos auxilia também tem de estar muito bem preparado.

Antes do surf, o Nuno estava na natação. O que o levou a esta mudança?

Fiz bodyboard dos 12 aos 18 anos, altura em que sofri o acidente. Depois, estive 10 anos parado e sem surf, até porque nessa altura não se sabia que uma pessoa com deficiência podia ir para dentro do mar surfar. De 1998 até 2006, fui atleta paralímpico de natação, onde estive presente em Campeonatos da Europa e Jogos Paralímpicos. Em 2006, decidi abandonar a alta competição, e, em 2009, recordo-me de estar em Carcavelos, a comer um hamburger, e a ver os outros a surfar e comecei a sentir algo estranho no corpo. Nem sei bem se é o mesmo tipo de chamamento que os padres sentem quando sabem que têm de seguir por esse caminho, mas senti qualquer coisa a dizer-me: ‘Tenho de voltar à água’. Liguei a uns amigos e disse: ‘Nadar sei, morrer também acho que não devo morrer. Ponham-me lá na onda e depois logo se vê’. A primeira experiência não correu bem, e realmente o bodyboard não era o caminho, até que depois fomos para casa e começámos a pensar o que não estava a correr tão bem e por que estava sempre a cair. Percebemos que era necessário uma prancha estável, em que o corpo estivesse todo lá em cima. Recordo-me depois de irmos para a Costa da Caparica, alugar uma prancha por 10 euros - e nunca mais me esqueci do valor - e irmos para dentro da água. A partir do momento em que começo a empurrar a onda, só pensei: ‘O caminho é por aqui’. Depois, o plano passou por reduzir o tamanho da prancha, para ganhar mais mobilidade e começar a surfar como antigamente. E foi isso que sucedeu. Sei que o caminho parece simples, mas depois ficou tudo mais complexo quando os meus amigos começaram a chamar mais pessoas com deficiência para este caminho, e posso dizer que, até hoje, já surfaram mais de 3.500 pessoas com deficiência.

 Isto acaba por ser ótimo, porque nos dá uma adrenalina em descobrir, a cada dia que passa, uma coisa nova que podemos fazerAcredito que sinta uma enorme gratificação por isso. Por ter dito aos outros que estão em situações similares à sua: ‘Sim, é possível’.

Honestamente não me sinto honrado por isso, nem me dá nenhum tipo de gratificação. Sinto-me é aliviado, porque a mãe do Nuno e a mãe dos outros Nunos têm uma oportunidade de ver os seus filhos felizes. E nós provámos que é possível. E o que me dá alegria é ver famílias felizes, mais do que ver uma pessoa com deficiência ir para dentro de água.

E acredito que a sua mãe já teve o coração nas mãos por várias vezes….

Acho que a minha mãe aprendeu a sofrer (risos).

Mais do que o filho, se calhar…

Posso contar-lhe uma história muito engraçada que sucedeu em Peniche. Quando ela me viu dentro de água, só dizia: ‘Mas por que é que o levam para tão longe?’. E dizia isto repetidamente. E ela foi aprendendo também com a minha vida dentro de água a ficar mais tranquila e a familiarizar-se com as pessoas que me levavam para dentro de água.

Sente que Portugal lhe deu o suficiente para o muito que alcançou até aos dias de hoje?

Nós muitas vezes dizemos que Portugal é um país pequeno e que não dá oportunidades, mas se também estivesse à espera que me dessem uma oportunidade, ainda estava à espera. Nós temos de as criar, e já provámos que somos dos melhores países em atletas com deficiência. Nós, no nosso dia-a-dia, já passamos por várias barreiras, e todos os dias nós levamos ‘pauladas’ nas costas. Quando vou à rua e não consigo andar na calçada portuguesa, porque é muito gira, mas não é funcional, quando vou a um restaurante e tenho de pensar se tem estacionamento perto ou não, se tem casa de banho adaptada ou não. Portanto, as oportunidades não são para todos, mas também se podem criar. Não basta estar no sofá a reivindicar. Não gostam dos nossos políticos, então estudem para um dia lá chegar. Nós agora temos uma secretária de Estado cega [Ana Sofia Antunes]. Não podemos apenas dizer que nada está certo, quando não nos esforçamos minimamente para mudar a situação.

O Nuno Vitorino já foi campeão nacional, campeão europeu e atualmente é o 4.º melhor do mundo no surf adaptado…

E só não sou o primeiro por causa da pandemia, mas garanto-lhe que, da próxima vez que entrar dentro de água, vou ser o primeiro. Em março de 2020, estávamos na Califórnia, e não cheguei a acabar o campeonato, uma vez que o Trump fechou o espaço aéreo quando foi declarada a pandemia. Mas, em 2022, quero ser o primeiro, e não tenho a mínima dúvida de que vou ganhar. Quando vou para um campeonato, vou sempre com o foco de ganhar e só depois em divertir-me.

O Nuno considera-se o Cristiano Ronaldo das ondas?

Agora vou responder de uma forma um pouco mais arrogante, mas considero que o Ronaldo é que é o Nuno Vitorino do futebol. Ele é que se devia sentir assim. E não tenho dúvida nenhuma no que estou a dizer. Esta parte mais arrogante de dizer que sou o melhor digo-a porque, efetivamente, sou o melhor e trabalho para ser o melhor. Todos os dias trabalho mentalmente e fisicamente para esse objetivo.

O Nuno já tem 44 anos. Qual é o seu limite?

Ainda me quero dedicar a outras coisas, como ao freesurf e largar a parte mais competitiva, mas ainda me falta ser campeão do mundo. E acredito que, da próxima vez, vou ser, ou seja, no Mundial de 2022. Aos 45 anos, posso então desligar-me um pouco e começar a divertir-me dentro de água, para aí sim largar as medalhas e os troféus.

E que legado é que gostava de deixar?

Gostava de ser recordado um dia mais tarde, e gostava que fosse o mais tarde possível, como alguém que nunca se deixou limitar por uma cadeira de rodas e que foi sempre um exemplo de respeito, de entrega ao desporto, de treino, de nunca saber o que é um limite. O meu limite não tem barreiras. Nós não nos devemos limitar pelo que nos dizem, porque, se assim fosse, eu estava agarrado a uma série de limitações que me disseram que ia ter, e a uma pensão de 300 euros que o Estado me dá. Isto acaba por ser ótimo, porque nos dá uma adrenalina em descobrir a cada dia que passa uma coisa nova que podemos fazer. Se a vida me dá uma chapada, eu levanto-me com uma força ainda maior. Eu tenho fome de títulos, de vitórias, uma fome de competir que é diária.

Antes de terminar esta entrevista gostaria de voltar ao início da nossa conversa e ao dia que mudou a sua vida. O Nuno perdoou o seu amigo pelo que sucedeu?

Ainda hoje falei com esse meu amigo. Isso foi um acidente para os dois, até porque, para ele, esta experiência também foi traumática. Na altura, nós éramos muito jovens e a vida acabou por nos separar, mas a separação não se deveu ao acidente. Seguimos caminhos diferentes, só isso. Há uns tempos, no programa da Cristina (Ferreira), até disse que gostaria de voltar a reencontrar esse meu amigo, até porque não haveria problema nenhum da minha parte, e isso depois viria a suceder. Ele contactou-me através de uns amigos que tínhamos em comum, e nem sequer houve perdão, porque não havia nada a perdoar. Claro que a confiança foi sendo conquistada, passo a passo, mas não há nenhum tipo de problema. Voltámos a falar quase 20 anos depois e o que lhe disse foi: ‘O que já lá vai, já foi. Agora o que tens a fazer é, quando a pandemia acabar, ir comprar um fato e surfar comigo’.

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