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António Maio: "Se não fosse o Paulo podia ter ficado a pé no Dakar"

Na sua segunda participação no Dakar, António Maio não só conseguiu terminar pela primeira vez o rali mais duro do mundo, como também foi o melhor português nas motos (27.º lugar). O objetivo do top20 fica adiado para 2021, depois de uma prova dura e que, certamente, nunca mais vai esquecer. Viu partir um amigo e contou na primeira pessoa o sentimento quase "inexplicável" que é lidar com a perda numa prova onde o perigo anda de mãos dadas com a fadiga física e mental.

Notícias ao Minuto

08:00 - 24/01/20 por Ruben Valente

Desporto Dakar

Em 2019, António Maio cumpriu o sonho de participar no Dakar pela primeira vez. Em 2020, e aos 33 anos, cumpriu o sonho de o terminar - e no top 30. O objetivo era tentar chegar aos 20 melhores da prova, mas uma queda e um problema com a moto na 4.ª etapa cortaram-lhe as asas para voar mais alto na Arábia Saudita.

Em entrevista ao Desporto ao Minuto, António Maio, 27.º classificado do Dakar, contou-nos como foi lidar com a exigência do rali mais duro do mundo e com a perda de um companheiro, que "estava sempre pronto a ajudar", como o próprio experienciou.

Paulo Gonçalves, herói do Dakar que morreu na 7.ª etapa da prova, ajudou António Maio a detetar um problema na sua moto e, nas palavras do próprio, se não fosse ele "talvez tivesse acabado a pé" esta prova.

Como foi lidar com a dureza do Dakar ou como foi seguir em frente depois de ver um amigo caído, quando se está longe dos que amamos? Foram respostas dadas por António Maio, que nos relatou na primeira pessoa que uma prova de desporto motorizado pode ser bem mais do que isso  Capitão da Guarda Nacional Republicana e piloto nas horas que lhe sobram, a vida nem sempre é fácil mas é vivida em prol de um sonho.

No ano passado participaste pela primeira vez no Dakar. Acabaste por desistir, e nesta tua segunda participação, ficaste em 27.º num total de 96 participantes. Qual foi o sentimento quando a última etapa terminou?

Foi um misto de sentimentos. De satisfação, de objetivo cumprido, porque o meu objetivo principal era terminar. O meu segundo objetivo era terminar no top20 e, ao saber mais uma vez que era possível, ficou um bocadinho de sabor amargo este 27.º lugar. De qualquer forma, olhando para trás, para a minha 4.ª etapa onde perdi imenso tempo, olhando para o que aconteceu com o Paulo [Gonçalves] naquele dia fatídico, abalou-me bastante para o que restava do rali. Olhando para isso tudo, para tudo o que é também o rali, para os pontos negativos da minha moto, acabei por entender e perceber que o 27.º lugar não foi mau. Mas efetivamente sei que era possível um melhor resultado.

Tinhas dito que era um sonho participar no Dakar em 2019, mas também era um sonho conseguires terminar esta prova…

Nós vamos criando sempre sonhos atrás de sonhos. Também tinha o sonho de terminar e foi para isso que trabalhámos diariamente. Mas continua a ser um sonho fazer um top20, fazer um top 15… Vamos subindo esses patamares, mas foi o realizar de um sonho.

Depois de seres campeão nacional de todo-o-terreno, vencedor de várias Bajas, era este o feito que te faltava?

Tem sido um crescendo de objetivos que temos tentado atingir. Não quero parar por aqui. Isto não é o final, mas sim o início. Tenho muitos objetivos para cumprir. Mas sim, depois de conseguir bons resultados em Portugal, eu propus-me a objetivos muito mais ambiciosos. Até porque já estava a sentir alguma falta de motivação com as provas em Portugal.

Fala-se muito na dificuldade física que se sente ao participar no Dakar. Sentiste isso na pele nesta edição?

Foi uma prova mais de resistência. Tivemos muitos quilómetros de ligação, tivemos muitos quilómetros em cima da moto e foi um teste à nossa concentração e gestão da moto. Senti que o segredo estava na segurança, porque foi uma prova bastante rápida e perigosa. Acabou por ser um esforço mais mental do que físico. Isso e problemas de gestão. Tivemos problemas com autonomias, com a gasolina, muito frio… Tudo isto foi a grande dificuldade do Dakar. Porque com o treino que fiz, senti que estava preparado para a dureza física desta prova.Estava a dois, três metros e percebi que o Paulo estava morto. Nesse momento, a ideia é desistir, acabou. Pensei: ‘não estou mais para isto'Houve algum momento em que pensaste: ‘No que é que me vim meter...’?

Sim, claro. Principalmente naquela etapa péssima, em que aconteceu aquilo ao Paulo. O resto da etapa toda chorei, gritei, perguntei porquê… Parece que estamos ali para nada. Estamos preocupados com os resultados, ganhar um minuto ou dois, e depois chegamos ao fim e não valemos nada. De um momento para o outro podia acontecer a qualquer um. Vale a pena? Ainda para mais penso nisso porque isto não é a minha profissão.

Quando passaste pelo local onde o Paulo Gonçalves estava a receber assistência, apercebeste-te que já não havia nada a fazer?

Quando passei, parei, saí da moto, e os médicos e quem estava ali mandaram-me seguir. Eu percebi que era o Paulo e quando estava a dois, três metros vi que estavam a fazer manobras de reanimação e percebi que ele estava morto. Nesse momento, a ideia é desistir, acabou. Pensei: ‘não estou mais para isto’. Mas depois o dia seguinte, em que a etapa foi cancelada, deu para refletir, para entrarmos em nós outra vez. Acabou depois por ser uma força. Fomos buscar força onde não sabemos que a temos.

O que passa pela cabeça de um piloto ao ver um colega naquele estado, ainda por cima com quem tinhas ligação?

É inexplicável. Sentes-te tão pequeno, tão insignificante… Sentes que não és nada. Isto pode acontecer a qualquer um, mas quando estamos em cima da moto não pensamos que isso pode acontecer. Sabes que podes ter uma queda, partir um braço, a clavícula, qualquer coisa… Agora pensar na morte, pensar que podemos desaparecer faz confusão. É encarar a coisa que mais gostamos de fazer a retirar-nos a vida. Isso é difícil de digerir e de perceber. Ainda por cima já estamos sob o stress de uma prova em que estamos sozinhos, isolados, sem a família, os amigos… Tudo isso torna tudo mais difícil de encarar.

Tens algum episódio em particular com o Paulo Gonçalves que recordes com mais carinho e que queiras partilhar?

Ele acabou por me ajudar imenso neste Dakar. Quando caio na 4.ª etapa, a minha moto partiu a escora da roda e a corrente estava a saltar-me. Caí, entortei o volante, continuei e a corrente saía, encravava no motor. Estive montes de tempo a tirar a corrente dali, a voltar a meter… Depois a corrente saiu mais duas ou três vezes até à neutralização. Após isso, eu paro a moto e há um piloto que está atrás de mim e diz-me: ‘Olha que tens a moto toda torta’. E eu pensei logo: ‘fogo...’. Comecei a dar uns pontapés na roda, a tentar endireitar aquilo, como se fosse um ato de desespero. Entretanto, o Paulo e o Fausto Mota chegam ao pé de mim e perguntam-me logo o que é que me aconteceu. Eu tinha caído mesmo à frente do Paulo, porque ele tinha partido 30 segundos atrás de mim. Quando eu caí, ele parou, mas eu já estava em cima da moto e seguimos. Na neutralização perguntou-me então o que se tinha passado e eu disse-lhe, todo desalentado: ‘Olha para isto, olha o estado da moto, agora a roda está torta e eu aqui aos pontapés’. E ele disse-me logo: ‘Não vale a pena. Olha que tens a escora da roda partida’. Foi ele que detetou que a escora da roda estava partida. Estavam ali 10 pessoas à volta da moto e ninguém tinha reparado naquilo. Depois até discutimos isso no final da etapa: ‘Fod***, se não fosses tu não tinha visto esta m****. Tinha ido assim, não sabia o que era e ainda ficava a pé’. Ele era uma pessoa que estava sempre bem disposta e sempre pronta a ajudar.

Notícias ao MinutoA imagem que António Maio colocou nas redes sociais como homenagem a Paulo Gonçalves© IG António Maio

Voltando à prova que é o Dakar… Pela primeira vez na história realizou-se na Arábia Saudita. O que achaste em relação a 2019, tendo em conta que a prova foi disputada no Peru?

Não esperava que tivesse tanto frio. Sofremos muito nas ligações. Saíamos muito cedo e chegávamos tarde. É um país que parece que o sol não chega a nascer. Amanhece muito tarde, a noite vem cedo. O frio e a temperatura foram um grande obstáculo. Depois eles aumentaram substancialmente os quilómetros e tornaram a prova muito mais rápida. Era rápida ao ponto de estarmos a fazer 40 ou 50 quilómetros com 5.ª a fundo, mesmo. A moto que andasse mais era a moto que conseguia ganhar ali cinco ou dez minutos. Depois, o facto de andarmos sempre de um lado para o outro, senti que o rali pareceu mais longo que o outro. No Peru senti que passou mais rápido e este mais lento. Apanhámos muito pó, muita areia… Pensei é que apanhássemos mais dunas e dunas maiores.

Falamos sempre muito do que acontece em prova, mas por exemplo no bivouac, onde vocês descansam no tempo que têm entre etapas, como é o ambiente entre pilotos, as vossas histórias...

Nós acabamos por ter pouco tempo para conviver entre pilotos. Principalmente eu que estou numa equipa onde não há nenhum português. Estamos sempre muito ocupados. Entregamos a moto ao mecânico, estamos ali um bocadinho a falar, a seguir vamos tomar banho e comer. Depois ia à massagem, e de seguida vamos ver se há 'roadbook' ou não. Se há, é sempre um bom momento para conviver porque estamos todos juntos e vamos todos para o mesmo local. Nós, portugueses, juntávamo-nos muito ali, e estávamos na conversa, também na hora das refeições. Falávamos dos resultados, contávamos histórias, mas é muito pouco. Não dá para estar ali muito tempo porque há que preparar as coisas para o dia seguinte e descansar, acima de tudo. É sempre a correr e não estamos ali relaxados como as pessoas podem pensar. Estamos sempre sob o stress da corrida e a preparar o próximo dia.

E numa prova difícil como o Dakar, já disseste que é duro estar longe de casa, da família e dos amigos. Como é que se tenta superar isso?

Não é fácil. No meu caso tinha um grupo no WhatsApp com a família e amigos mais próximos para partilhar as coisas mais rapidamente. Dou-te um exemplo. Quando estava na neutralização naquela etapa onde caí, estava com muito receio de não chegar ao fim e fiz um vídeo para eles porque não estava a conseguir contactar o mecânico. Fiz um vídeo onde contei o que se estava a passar, porque sei que eles estavam a acompanhar em direto a prova, os tempos, e estavam preocupados com certeza. Expliquei o que se estava a passar, mostrei a moto… Entretanto, a minha amiga que me gere as redes sociais até partilhou o vídeo. Não era para ser partilhado, mas até foi engraçado. É com isto que nos vamos sentido mais próximos, as videochamadas também ajudam bastante. A prova só por si já é difícil, depois quando acontecem estas coisas [morte do Paulo Gonçalves] torna-se 10 mil vezes mais difíceis. Também quando vamos para uma prova destas temos de estar psicologicamente preparados para esta distância.

Notícias ao MinutoAntónio Maio em ação no Dakar'2020© IG António Maio

São 12 dias que normalmente passam rápido, mas para vocês nem tanto...

Este ano o sentimento foi diferente. O ano passado senti mais isso, mas neste senti que demorou muito tempo a passar. Quando caí, o meu objetivo já era só terminar e não tanto o resultado. Quando esse é o objetivo, tu só queres que a prova acabe. E quando assim é, quando queres muito que acabe, o sentimento é que parece que nunca mais acaba.

E quais são os momentos que ficam deste Dakar’2020?

Normalmente, ficam-nos na memória os momentos mais difíceis. Para mim foi, sem dúvida, o dia do falecimento do Paulo. Mas o dia em que caí, em que fiz 400 km com a moto toda partida e com a sensação de que a qualquer momento a escora da roda ia partir, também foi angustiante. Foram 400 km de uma etapa cheia de pedra, estava tudo para correr mal naquele dia. Chegar ao fim daquela etapa foi um sentimento brutal. Foi incrível conseguir terminar. Mas também há bons momentos que ficam. Ter um bom andamento ao pé de pilotos profissionais é algo que marca.

No ano passado não tive um único dia de férias sem ser para corridas. São estes constrangimentos que este sonho tem provocadoCapitão na GNR, piloto de todo-o-terreno… É fácil conciliar tudo?

Eu costumo dizer muitas vezes… Para mim, durante o meu ano, a parte mais fácil é mesmo ir para o Dakar. Acabo por ter longos meses de trabalho durante o ano, na preparação para o Dakar, ir buscar patrocinadores, tratar de tudo. Obter patrocínios é fundamental, não há outra hipótese. Depois, no meu trabalho não tenho grande margem, tenho horários muito rígidos, o que não é fácil. Para além disso, a nível pessoal, como deves calcular, acabo por deixar muito para trás. A minha namorada, os meus amigos… São coisas que acabamos por ter de abdicar em função destes objetivos tão ambiciosos. E a juntar a isto tudo, ainda tenho de treinar. Isto não é pegar num carro ou numa moto e andar. Temos de estar bem fisicamente. Eu já nem me lembro da última vez que fui beber um copo à noite, muito raramente tenho um jantar com amigos daqueles de estarmos até à 1 ou 2 da manhã. São coisas banais, mas que às vezes não consegues ter. É uma vida um bocadinho atribulada e tenho noção de que deixo muitas coisas para trás em prol do meu sonho. É essa a minha motivação e é isso que tento transmitir às pessoas que me rodeiam e que gostam de mim. E também é algo que é agora ou não é. Não posso fazer isto daqui a 10 anos.

E o que podemos esperar do António Maio para 2020 e, já agora, em 2021 voltamos a ver-te no Dakar?

Tenho contratos anuais com todos os meus patrocinadores. Portanto, estamos numa fase de rescaldo e de definir a estratégia para o próximo ano. Estou convencido que com estes resultados posso continuar a contar com eles. Este ano gostaria de fazer tudo aquilo que fosse possível para preparar o Dakar de 2021: Algumas provas do campeonato nacional de todo-o-terreno, com moto de rali preferencialmente, campeonato nacional de navegação, que é interessantíssimo e que nos ajuda a treinar. A nível internacional quero participar no Merzouga, em maio, depois mais duas provas em outubro e novembro, o Pan Africa e o Rali de Marrocos. Isto seria o ideal tendo em conta as minhas limitações todas. Porque é bom referir que para eu ter este tempo todo é com dias de férias do trabalho, 25 dias úteis. São com esses dias que tenho de jogar. O Dakar já me tirou mais de metade das férias que tenho para o ano. No ano passado não tive um único dia de férias sem ser para corridas. São estes constrangimentos que este sonho tem provocado, mas é por uma boa causa.

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