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Samanta Schweblin faz do quotidiano um lugar de medo e de inquietação

A escritora argentina Samanta Schweblin explora nas suas obras a tensão e o medo, para tentar entender os seus próprios medos, e questiona a "normalidade", fazendo nascer o horror do quotidiano banal, onde se escondem os verdadeiros monstros.

Samanta Schweblin faz do quotidiano um lugar de medo e de inquietação

© Getty Images

Lusa
19/10/2025 23:37 ‧ há 9 horas por Lusa

Cultura

Literatura

Nascida em Buenos Aires, em 1978, e a viver em Berlim desde 2012, Samanta Schweblin é uma das novas vozes literárias da América Latina, autora de quatro livros de contos e dois romances, todos eles marcados pela tensão constante, pela violência latente, por um certo terror psicológico, que suscitam incómodo, estranhamento e desconforto no leitor.

 

A autora esteve no Fólio Festival, em Óbidos, para participar numa sessão a propósito do seu mais recente livro de contos, 'O bom mal', publicado este ano em Portugal.

À semelhança do que acontece nas suas outras obras, também nestes contos Samanta Schweblin reinventa o conceito de normalidade, dando lugar a que o estranho e o bizarro apareçam como normal.

"A normalidade é uma construção social, política e económica, que tem a ver com poder e que serve para excluir o que é diferente, para nos fazer crer que há um modo certo de viver, de sentir, de estar no mundo", disse a autora em entrevista à agência Lusa, de passagem por Lisboa.

Samanta Schweblin explora o estranho no quotidiano, criando suspense a partir de situações aparentemente normais, como a descrita num conto de "O bom mal", em que uma visita inesperada se instala em casa de uma mulher e não sai.

"Tentamos viver na normalidade por medo de perder o controlo, por isso, aquilo que foge um bocado desses parâmetros, consideramos anormal, mas o que consideramos normal pode ser na verdade estranho, ou esconder um detalhe que faz ruir o quotidiano. Da mesma forma, o que se convencionou ser anormal pode ser mais natural do que pensamos. Eu gosto de ultrapassar essas barreiras".

Uma das ferramentas que a escritora usa para ultrapassar essas barreiras e questionar as perceções de "normalidade" é o seu fascínio pelo medo e a tensão narrativa que consegue criar.

"Ponho no papel os meus medos, as minhas angústias, procurando ir ao encontro do outro, e encontrar as respostas para mim mesma. Começo por algo que me inquieta, que não entendo, e escrevo para tentar compreender, para descobrir por que aquilo me perturba. Por exemplo, eu sou feliz mas também sou infeliz, e pergunto-me se todas as pessoas são assim, se sentem o mesmo que eu. São perguntas impossíveis de responder, porque nunca saberemos exatamente como é que o outro sente. Se conseguíssemos saber isso, talvez nos sentíssemos menos sozinhos", explica.

Por outro lado, o medo é um estado que exige atenção absoluta do leitor, e a escritora procura criar uma tensão que envolva o leitor de forma profunda, porque é também isso que procura enquanto leitora.

Samanta Schweblin parte do real e introduz uma pequena distorção, suficiente para que tudo se torne inquietante. As suas histórias mantêm uma aparente normalidade --- uma família, um casal, uma casa, uma viagem --- que se fragmenta discretamente, revelando algo estranho, absurdo ou sinistro e, a partir daí, já não é possível saber o que é normal.

A casa, em particular, é um tema que lhe é caro, pois além de vários dos seus contos se ambientarem nesse espaço, Samanta Schweblin explorou o suspense doméstico e o desequilíbrio psicológico numa coleção perturbadora de contos intitulada 'Sete casas vazias', em que este "lugar de segurança" se torna um lugar perigoso ou assustador.

"É dentro de casa que acontecem 80% dos feminicídios na América Latina. A casa é uma parte de nós, é uma parte do nosso corpo. Nós somos um corpo quando saímos -- à rua, com amigos, para o trabalho - e outro quando estamos em casa, no nosso quarto, na casa de banho, na garagem. Podemos estar mais seguras e confortáveis, mas também mais vulneráveis e eu gosto de explorar isso".

Esta relação de tensão que estabelece faz parte de um diálogo que mantém com o leitor, provocando-lhe uma resposta emocional e intelectual, pois entende a literatura como um evento a dois.

"O livro, em si, não tem vida, é um objeto. Precisa de um leitor que o abra e faça sair aquele mundo de ficção, que o entenda e o sinta à sua maneira. Só assim ganha vida. Então, eu acho que o livro só existe quando há um escritor e um leitor. É uma dança a dois. Eu não gosto de dançar sozinha".

A autora enfatiza também o papel de "mediador" que o escritor desempenha entre a ficção que escreve e o leitor, afirmando que tem sempre presente a necessidade de gerir emoções e sentimentos, de jogar com a tensão do leitor, para o manter preso até ao final.

"Tenho de me acalmar, não me posso deixar entusiasmar muito e pôr logo tudo. O leitor termina o conto comigo, eu deixo espaços de silêncio e mistério, para que ele participe. Se eu explicar tudo, o texto morre."

O livro 'O bom mal' começou como um conto com esse nome, mas quando percebeu que "tudo pode ser bem e mal", Schweblin estendeu o tema a todo o livro, e deu-lhe esse título.

Na opinião da escritora, há um diálogo aberto entre o bem e o mal, também nas histórias que se contam sobre esses conceitos, mas as suas histórias exploram forças que desafiam a previsibilidade da vida quotidiana e capacidade de controlar o que mais valorizamos, pondo a nu a fragilidade de um bem e mal absolutos.

"Por vezes fazemos coisas más que acabam por ter um desfecho bom, porventura melhor do que a situação anterior. Da mesma forma que quando tentamos fazer o bem, por exemplo, educar bem os filhos, com cuidado, com equilibro, acabamos por vezes a fazer o mal, e a criar pessoas com descuidado, pessoas desequilibradas", afirmou.

Samanta Schweblin faz parte de uma geração de jovens escritoras latino-americanas que romperam com o 'boom' do realismo mágico e se afirmaram com um estilo narrativo diferente, mais perto do fantástico e do incómodo, mas rejeita a ideia de uma "moda".

Segundo a autora, esta geração nasceu de um movimento de mulheres que "rompeu com o império de autores homens", pela constatação de que "a literatura escrita por mulheres é a outra metade da literatura da humanidade, e foi posta em segundo plano durante muito tempo".

"A certa altura apercebemo-nos de que só líamos autores homens e começámos a procurar. Claro que o que interessa é ler bons autores, sejam homens ou mulheres, mas na busca por essas autoras que estavam escondidas, descobrimos que há muitas escritoras boas. Então, esse espaço que conquistaram, não foi por serem mulheres, mas porque têm uma qualidade maravilhosa".

"E esse movimento de rutura, de romper com uma sociedade ancorada nos homens, é muito importante, em particular nos tempos que vivemos, com o avanço da extrema-direita por todo o lado, com o feminismo a ser combatido e as tentativas de acabar com essas conquistas, quando ainda há tanto para fazer: ainda hoje, a América Latina continua a ter uma das mais altas taxas de feminicídio do mundo", acrescentou.

A escritora revelou que atualmente está a trabalhar num livro de contos -- "estou sempre a escrever contos" -- e num romance, e que publicará aquele que estiver pronto primeiro.

Sobre o género literário em que mais se sente à vontade, diz não ter preferência, mas lamenta que o conto seja, na generalidade, encarado com um estilo menor, associado às fábulas ou às histórias para crianças.

"Um conto é como um portal, permite entrar num outro mundo, fantástico. Bem, isto também acontece no romance, mas implica um aprofundamento, enquanto no conto é mais rápido e muito mais intenso", afirmou.

Além dos contos 'O bom mal' e 'Sete casas vazias', Samanta Schweblin tem ainda publicados em Portugal o livro de contos 'Pássaros na boca' e os romances 'Distância de segurança' e 'Kentukis', todos editados pela Elsinore.

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