Borges Coelho, numa entrevista à agência Lusa em 2018, recordou "uma vida muito difícil", "no fio da navalha", no Portugal da ditadura (1926-1974), numa constante luta pela liberdade, que também foi um combate pela verdade, sem gostar de seguir dogmas.
Em 2018, recebeu o Prémio Universidade de Lisboa, onde foi aluno e professor. O júri, ao qual presidiu o então reitor António Cruz Serra, justificou a distinção pelo seu "singular percurso na historiografia portuguesa" e o "trabalho inovador".
Além da "relevância do seu percurso científico, muitas vezes perseguido em circunstâncias adversas", o júri sublinhou a grande erudição e acessibilidade da sua obra, e "o seu comprometimento com a cultura e a língua, evidenciado no modo como integra na narrativa dos acontecimentos a caracterização detalhada de instituições, informações demográficas, e estruturas económicas, sociais e culturais".
De 1974 a 1994, Borges Coelho foi professor no Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo ensinado centenas de alunos "nos quais deixou marcas, pelas suas qualidades humanas e pedagógicas", realçou o júri.
"A História é uma ciência perigosa", disse Borges Coelho em entrevista à agência Lusa, em outubro de 2018. E recordou as palavras do humanista português João de Barros (1496-1570), historiador da Ásia, segundo o qual a História implica muito perigo e exige muito trabalho.
"A História marca sempre, mesmo que o historiador não consiga completamente dominar as suas ideias, isto é, aquilo que ele é. [A História] é um documento que dá uma visão do passado, e que, se for nova e verdadeira, vai ao fundo da verdade, vai criar muitos anticorpos. A História é uma ciência perigosa", declarou.
Borges Coelho pretendia tornar-se escritor, estudou para padre franciscano, por vontade própria, mas foi à luta política pela liberdade de pensamento que dedicou, em exclusivo, anos da sua vida, na oposição à ditadura do Estado Novo (1933-1974), que lhe retirou os direitos.
"A situação era tremenda. Eu não tinha direitos políticos, não conseguia tirar a carta de condução. Para o conseguir tive de mover um processo ao Estado", contou à Lusa, referindo que a PIDE, a polícia política da ditadura, o interrogou e prendeu várias vezes.
"Vim para Lisboa em 1948, para me matricular na universidade, mas numa situação muito difícil. Eu queria era ser escritor, mas pensei: 'O que vai ser a nossa vida, e para a minha geração?' Eu já vinha um pouco revoltado, tinha sido seminarista, nos franciscanos, inicialmente muito devoto. Nos últimos anos não me adaptei, tentei sair e não me deixavam, consideravam um pecado. Até que fui expulso".
Natural de Murça, em Trás-os-Montes, onde nasceu em 07 de outubro de 1928, Borges Coelho testemunhou a vida difícil que viviam as populações, em particular as mais pobres e no espaço rural, à mercê de grandes proprietários e das autoridades.
"Além do ideal da justiça social, era o ideal da liberdade. As pessoas [hoje] não fazem ideia do que era viver naquele tempo. Eu vi as autoridades nomeadas por Lisboa, em Trás-os-Montes, bater, na câmara municipal, com um 'cavalo-marinho' [um chicote em forma de bastão], num assalariado rural, acusado de roubar fruta para comer, porque estava com fome", recordou à Lusa.
No "ambiente irrespirável", que foi o Portugal do Estado Novo de António de Oliveira Salazar, Borges Coelho apenas podia opor-se ao regime.
"A minha grande formação política foi o MUD-Juvenil [Movimento Democrático Unitário Juvenil], que era praticamente autónomo. Apesar de o Partido Comunista ter uma célula lá dentro, não tinha a capacidade de o controlar. O MUD-Juvenil tinha mais de mil quadros em todo o país, era um grupo de peso", recordou à Lusa.
Borges Coelho foi membro do MUD e, durante seis meses, funcionário do Partido Comunista Português, de onde saiu em 1991.
"Foi já como funcionário do PCP que fui preso [em 1957], num almoço. Na altura da detenção gritei como nunca o fiz na vida, e fui levado para o Aljube [prisão em Lisboa], onde estive nas chamadas 'gavetas', e julgado no Porto, tendo estado posteriormente preso em Peniche", onde ficou até 1962, e onde se casou.
O primeiro "esfriamento" com o PCP deu-se em 1956, na sequência do 'Relatório Khrushchov', no XX Congresso do Partido Comunista da então União Soviética. Publicado pelo Diário Popular, o documento provocou-lhe "uma impressão muito funda".
"A ideia de me dedicar inteiramente à luta política desapareceu-me do horizonte. Apesar de ter seguido todos os trâmites, fui julgado no Porto e fui preso, mas o meu horizonte era agora ser escritor".
António Borges Coelho foi o dirigente do MUD-Juvenil que teve a sentença mais pesada. Condenado a dois anos e nove meses, veio a cumprir cinco anos de prisão no Forte de Peniche.
Em 1991, "a descoberta, mais uma vez, de que afinal as coisas não eram o que pareciam [no contexto dos Partidos Comunistas], isto é, que havia violações fundamentais - e se há um direito fundamental, é o direito à vida -", levou Borges Coelho a deixar o PCP.
"De certo modo, senti-me desiludido e escrevi uma carta ao partido onde afirmei: 'Solitário, mas solidário', e mantenho esse meu percurso. Tenho as minhas ideias próprias", contou.
Borges Coelho realçou ainda que, "como historiador, dificilmente podia ser um militante a sério de qualquer partido, porque era muito difícil manter a honestidade completa: ou é ou não é", referindo que nunca se sentiria livre "e completamente honesto" para com o seu ofício de historiador, se filiado num partido político.
António Borges Coelho reconheceu à Lusa que os seus livros causaram polémica.
A obra 'Raízes da Expansão Portuguesa' (1964) chegou a estar proibida. Em 'A Revolução de 1383-85' (1965), propôs uma nova perspetiva sobre o que levou Portugal ao confronto com Castela, na batalha de Aljubarrota, em 1385, defendendo que mais do que uma crise dinástica, aberta com a morte do rei Fernando, foi uma revolução liderada pelas forças populares e burguesas, que se emanciparam face às classes dirigentes, designadamente o clero e a nobreza, e colocaram no trono um rei que escolheram, João I, mestre de Avis.
A Associação dos Jornalista e Homens de Letras do Porto, que distinguiu o historiador em 2022 com o Prémio Rodrigues Sampaio, definiu-o como "um homem de coragem" e uma "personalidade ímpar da cultura e da cidadania, autor de inovadora e vasta obra no domínio da História, mas também poeta luminoso".
Na ocasião, o júri do prémio realçou o seu papel como cidadão na luta pela democracia. "Mesmo nos tempos da dura repressão fascista, jamais traiu a luta por um Portugal de liberdade, livre. Preso, perseguido, ou forçado a mergulhar na clandestinidade, sempre inventou tempo para a bondade e para avivar a voz dos silenciados", afirmou o júri.
Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1967, António Borges Coelho doutorou-se em 1984, na mesma instituição.
O historiador é autor de 'A Inquisição em Évora' (1987), 'Portugal na Espanha Árabe' (1972-1975) e da 'História de Portugal' (2010-2022), em sete volumes, num percurso marcado por dezenas de outros títulos.
'Comunas ou Concelhos?' (1973), 'Fortaleza' (1974), 'No Mar Oceano' (1981), 'Questionar a História' (1983) e 'O 25 de Abril e o Problema da Independência Portuguesa' (1975), estão entre as suas obras, assim como 'Senhores da Navegação da Conquista e do Comércio' (2019), 'História e Oficiais da História' (2021), e 'Espinosa e Leibniz' (2023).
Da sua bibliografia também fazem parte títulos como 'Ruas e Gentes na Lisboa Quinhentista' e 'Os Lusíadas - Antologia Temática e Texto Crítico'.
'Crónicas e Discursos', editado em junho de 2023, foi um dos seus últimos livros publicados, no qual reúne diferentes intervenções públicas ao longo dos anos, desde artigos saídos na imprensa diária a discursos.
Ao nível da literatura, escreveu 'Roseira verde', "'Ponte Submersa', 'Ao Rés da Terra', e destacou à Lusa 'Youkali é o País dos Nossos Desejos' (2005), que relata como vê a luta política no passado, com "muita atualidade".
Este ano publicou a coletânea 'Poemas'.
Em 1999, Borges Coelho foi agraciado com a Ordem de Sant'Iago da Espada e, em 2018, foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
António Borges Coelho considerava-se "um cidadão como qualquer outro". Não gostava de se expor. "Praticamente em todos os livros que publiquei não está lá uma fotografia minha e, os que a têm, foi contra a minha vontade". Por outro lado, os encontros espontâneos com antigos alunos, davam-lhe "um grande prazer e alegria".
"Sinto-me um ser normalíssimo, um cidadão normal", disse à Lusa. "Sou o mesmo que veio de Trás-os-Montes, que, quando criança, andava na instrução primária e, depois das aulas, ia buscar as cabras ao monte".
"Sou professor catedrático, pois sou, 'pá', mas sou um cidadão normal e gosto de me sentir como um cidadão igual aos outros", declarou, afirmando-se alegre com os tributos que recebeu, quando organizados por "amigos e pessoas sinceras".
"Alegra-me quando as pessoas achem que fiz alguma coisa de útil. É salutar, sinto-me saudável com isso".
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