"O primeiro contacto com a polícia foi: 'Então, preto, o que roubaste?'"

Foi no passado mês de junho que o rapper Harold lançou o seu mais recente álbum, 'O Último Malmequer', que nos traz uma nova fase do artista luso-moçambicano e que, diz, é um trabalho "verdadeiro e transparente”.

Harold

© Rafaela Ramos

Marina Gonçalves
18/07/2025 08:02 ‧ ontem por Marina Gonçalves

Cultura

Harold

'O Último Malmequer' foi lançado no passado mês de junho, um trabalho onde Harold "tenta falar de sentimentos sem preconceitos, de uma forma vulnerável e aberta". Este disco é composto por 13 temas: 'De Caras'; 'Vento em Popa'; 'RIVAIS'; 'Vivi'; Valorizei; 'Durag' ft. Laylizz; 'MANE'; 'Vidrado'; 'Pés no Chão' ft. YANG; 'Todavez'; 'Furtado'; 'Palavras'; 'Éder'.

 

"Acima de tudo, posso dizer que é um álbum verdadeiro e transparente - na maneira como tento chegar às pessoas e fazer com que percebam o que tenho para dizer, porque há temáticas aqui - por exemplo o racismo - que já abordei com os GROGNation", acrescentou em conversa com o Notícias ao Minuto, referindo a sua banda de Mem Martins que anunciou o fim em 2022.

Este é um álbum que destaca o seu crescimento, não só como artista mas também como pessoa, como o próprio reconheceu, e onde "expõe a sua dor de forma a que o outro consiga entrar nela e ser empático com ela".

"Quase como se estivesse numa zona de proteção, numa zona em que me sinta seguro para expor sem me sentir julgado por ninguém ou sem sentir que vão usar aquilo para atacar-me. O álbum é como se fosse essa zona de segurança e não aquela zona em que estamos a ser agressivos só como forma de proteção ou uma forma de alguma insegurança. Expor as inseguranças, os medos, expor a vulnerabilidade sem sentir medo de ser julgado. Por isso é que considero um álbum transparente, verdadeiro e puro", frisou.

Para já, é a solo que irá continuar a percorrer o caminho no mundo da música nos próximos tempos, não vendo "perspetivas de GROGNation voltarem". No entanto, diz, "a vida às vezes dá muitas voltas" e, por isso, "nunca se sabe".

Este álbum está divido em três partes, mas como fazes essa divisão? 

Faço a divisão nas temáticas das músicas. Na parte do bem-me-quer pensei nas músicas que são de uma mensagem mais positiva ou mais alegre. Quando falo de coisas um bocadinho mais negativas, por exemplo, a primeira metade tem mais músicas de 'heartbreak', e também a música 'Durag' que é mais rap e tem um bocado esta parte do como se estivéssemos a falar com pessoas que estão contra nós, contra a nossa luta, a nossa caminhada. Tem uma vertente um bocadinho mais do 'egotrip', mais do rap, que também está localizado nesta parte do mal-me-quer. As primeiras músicas têm essa carga, apesar de a primeira música do álbum ser a 'De Caras', que tem uma energia um bocadinho mais para cima. Mas enquadra-se nessa questão do mal-me-quer.

Depois muda de energia a meio, que entram músicas como 'Pés no Chão', que é mais dançante, de festejar. Tem de seguida uma sequência de duas 'love songs', que já são mais positivas, é uma fase mais bonita da relação. Depois fecho com o mal-me-quer, com 'Palavras' e 'Éder'.

'Palavras' fala sobre uma questão política e social que aconteceu em Moçambique no ano passado de abuso de poder e violência. 'Éder' é uma música que fala essencialmente da minha história e da adaptação a Portugal - com a questão do racismo e tudo mais.

De facto, neste álbum abordas questões como o racismo, mas também tens as tais 'love songs'. É um disco que aborda o lado sentimental e não só questões sociais…

Sim, sem dúvida. Até acabo por usar mais as 'love songs' como uma forma de exprimir sentimentos meus. Como se o amor fosse uma forma de me conhecer melhor. E quando estou numa fase em que as coisas não correram como esperava, em que houve uma desilusão, acabamos por estar com alguém que nos fez expor certas coisas que nós, se calhar, não estávamos prontos para encarar em algumas fases da nossa vida… Pego nessas situações todas e acabo por não focar a 'love song' só na pessoa, mas focar em mim, nessa recuperação, transformação, nessa viagem de auto-conhecimento. Não são simplesmente 'love songs', são uma maneira de quase te conheceres a ti próprio.

Não sinto que tenha só fundido com o pop, mas fundi com várias coisas. Tenho músicas que vão mais para o afroswing, outras que vão para o R&B, algumas com uma parte mais pop e outras também rap

Divides o álbum em três partes, como explicaste - começando pelo mal-me-quer, passando pelo bem e acabando outra vez no mal. Porquê a escolha de terminar com o 'mal' e não o 'bem'?

Primeiro por causa do nome da flor - Malmequer. E também foi uma maneira de tornar o álbum sem um final feliz. No processo do álbum, no início não pensei muito no nome, foi surgindo, mas para fazer sentido com esta divisão das partes, fazer sentido com o nome do álbum, tinha que haver mais mal-me-quer do que bem-me-quer. 

Foi um processo meu, de amadurecimento como artista. Ter essa vontade de me expor, de me abrir, de arriscar sem estar a ligar muito a certos padrões e rótulos, que senti que dentro do rap mais conservador sempre teve

E fundir o hip hop com o pop era o que querias fazer neste álbum?

Não sinto que tenha só fundido com o pop, mas fundi com várias coisas. Tenho músicas que vão mais para o afroswing, outras que vão para o R&B, algumas com uma parte mais pop e outras também rap.

O meu álbum acaba por ser fruto de tudo que consumo e tudo o que fui construindo como pessoa. Vim de uma base de GROGNation que era muito rap, e cresci a ouvir muito rap. Mas à medida que fui crescendo na carreira, comecei a tomar o gosto de tentar arriscar sonoridades um bocadinho diferentes, que não fossem só o rap cru que fazia em GROGNation.

A partir daí, deste meu arriscar, de tentar usar mais a minha voz, de cantar mais, comecei a arriscar outras sonoridades que já gostava de ouvir e já apreciava. Tentei ao máximo não me limitar. Senti que do tipo de rap que cresci a ouvir, a maneira como hoje abro a vulnerabilidade, os meus medos, a sonoridade de ser mais cantado, de dizer certo tipo de coisas, num rap mais conservador não haveria tanto espaço para isto. Se calhar já íamos considerar outra coisa.

Foi um processo meu, de amadurecimento como artista. Ter essa vontade de me expor, de me abrir, de arriscar sem estar a ligar muito a certos padrões e rótulos, que senti que dentro do rap mais conservador sempre teve.

Por causa das condições, tinham de escolher quem podiam salvar ou não, quem podiam tratar ou não. Ele estava muito abalado com a situação, com o que estava a acontecer. Disse-me que nunca tinha visto nada assim na vida dele

Obviamente que os estilos musicais vão evoluindo, mas tem havido, talvez, um uso diferente do 'autotune'... mais estético. Sentes que a evolução do rap foi um bocadinho por aí, quem sabe, para também ser mais audível e chamativo? 

Acho que foi uma consequência da evolução. Os artistas no geral gostam de experimentar coisas diferentes, e também quando começou a entrar cada vez mais a questão da melodia, ajudou muitos rappers que tinham mais a questão da escrita e de rimar.

Usamos a voz no rap quase como se estivéssemos a falar, e quando começou a entrar esta parte da melodia mais cantada, acabou por ser uma ferramenta que ajudou muitos artistas a suprimir, se calhar, algumas limitações. Dentro disso há artistas que cantam super bem. Durante o meu processo do álbum tive aulas de canto e nunca abdiquei de usar o 'tune' de uma forma estética e de uma forma corretiva. Mas foi um caminho meio que inevitável - o uso do autotune. 

Tinha acabado de fazer a música e ele mandou-me aquele áudio, e encaixou perfeitamente. Achei que era uma maneira perfeita de fechar a música, mas também de fazer com que as pessoas percebessem o que estava a acontecer

Pegando por uma das músicas que compõem este álbum, 'Palavras', queria que partilhasses a construção deste tema que fala do pós-eleições em Moçambique e que termina com um áudio de um familiar teu.

Na altura que isto tudo estava a acontecer, sentia que precisava de absorver um bocado mais e deixar as coisas fluírem de uma forma normal. Numa das sessões que tive, acabei por chegar àquele instrumental. As coisas já estavam a acontecer há algum tempo e, a partir do instrumental, fluiu naturalmente - sem pensar em ir para estúdio de propósito para ir falar sobre aquele tema. 

Depois, comecei a escrever sobre o assunto e a fazer a música. Calhou na altura estar em conversa com o meu primo - que é médico - pelo WhatsApp. Ele disse-me que tinha recebido no hospital onde trabalham cerca de 50 pessoas, que tinham sido baleadas pela polícia nos confrontos. Por causa das condições, tinham de escolher quem podiam salvar ou não, quem podiam tratar ou não. Ele estava muito abalado com a situação, com o que estava a acontecer. Disse-me que nunca tinha visto nada assim na vida dele e que não sabe o caminho que isto vai ter.

Tinha acabado de fazer a música e ele mandou-me aquele áudio, e encaixou perfeitamente. Achei que era uma maneira perfeita de fechar a música, mas também de fazer com que as pessoas percebessem o que estava a acontecer.

Tornar mais real…?

Sim! E para as pessoas que não estavam a par do assunto, através do áudio, conseguissem perceber do que é eu estava a falar. Senti que mesmo em termos de notícias, cá em Portugal, este assunto não foi muito falado ou aprofundado. Acabei por usar o meu lado artista para passar a mensagem.

Era um miúdo, estava a correr para ir para casa, que era relativamente perto, passou um carro da polícia e abordaram-me. A primeira coisa que disseram foi: 'Então, preto, o que é que já roubaste?'

E depois passámos para a música final, 'Éder' que fala sobre a tua mudança de Moçambique para Portugal. Já vives em Portugal há largos anos, mas há questões que se mantêm como o racismo, por exemplo. O que mais destacas neste teu caminho?

Antes de o álbum sair, perguntaram-me numa entrevista se estava a fazer esta música desde 2016, que foi quando foi o golo do Éder. O que sinto é que aquela música é, basicamente, a minha vida toda. Porque falo sobre a minha mudança e da minha família para cá, situações que vivi na escola, com professores, que vivi com colegas, com familiares de namoradas, em situações de trabalho… É uma música que espelha isso tudo, dores que não são só minhas, de pessoas próximas e outras que só vejo através de uma tela.

Acabei por usar a questão do Éder como uma imagem de representatividade. Pegar um bocadinho para além da questão do golo em si. Nessa música está também o facto de o meu pai ter sido um ex-combatente do exército português e ele dizia-me muitas vezes que sofreu racismo em Portugal. Mesmo sendo ex-combatente e tendo estado em zonas de conflito, ter defendido a pátria... Foi para a linha da frente sujeito a morrer por um país e, mesmo assim, sofreu racismo em Portugal.

Quando venho para Portugal, o primeiro contacto que tenho com a polícia é um dia em que, no quinto ou quarto ano, estou a sair da escola a correr porque precisava de ir à casa de banho - era um miúdo. Estava a correr para ir para casa, que era relativamente perto, passou um carro da polícia e abordaram-me. A primeira coisa que disseram foi: 'Então, preto, o que é que já roubaste?'. Continuei a correr, eles dão a volta por outro lado, encontram-me outra vez e dizem: 'Estás mesmo com pressa, o que é que roubaste?'. Não respondi das duas vezes e fui para casa.

A minha música é dessas coisas… Uma coisa que me aconteceu no quarto ou quinto ano e de que me lembro perfeitamente, quase como se fosse ontem. São coisas que nunca saíram da minha memória. E não tive dificuldades que alguns amigos tiveram. Como o meu pai era ex-combatente, não tive dificuldade em ter os meus documentos e a nacionalidade portuguesa. Existem tantos outros que nasceram cá e os pais também e não conseguem ter a nacionalidade portuguesa.

A música 'Éder' é também sobre isso - às vezes parece que para seres aceite numa sociedade, não seres julgado, tens de fazer um grande golo como o Éder, ou jogar à bola. 

Sinto só que há uma maior consciência, que já se fala mais sobre isso, mas há momentos em que parece que estamos a andar para trás

Estando a viver em Portugal desde os sete anos, sentes alguma evolução (positiva) de questões como o racismo? Comparando o momento em que mudaste de país com hoje em dia, como vês Portugal?

Sinto só que há uma maior consciência, que já se fala mais sobre isso, mas há momentos em que parece que estamos a andar para trás. Parecia que havia coisas que já tínhamos ultrapassado - barreiras, conversas e temáticas - mas parece que o ódio ao diferente está a começar a ficar na moda. E acho que essa é a pior parte, porque antigamente ainda podíamos justificar com a pouca informação, ou de não se falar sobre os temas. Continua a haver um caminho muito longo para se fazer.

Cada vez mais sou uma mixórdia de muita coisa que consumo, de filmes, de séries, de música…

No mundo da música, quais são para ti as maiores inspirações? 

As minhas inspirações acabaram por me mudar muito, mas cada vez mais a inspiração para fazer música têm sido as minhas próprias vivências e o meu círculo de pessoas. Sinto que quando cresci eram muitas as minhas referências musicais, principalmente dentro do rap, o Valete, o Sam The Kid… Mas eu próprio, musicalmente, acabei por seguir um caminho só meu, que faz muito mais sentido com o tipo de artista que quero ser e não me prender tanto a uma questão de sonoridade. Prender-me mais à questão de conseguir-me libertar artisticamente - seja em que instrumental for, de que maneira for. Cada vez mais sou uma mixórdia de muita coisa que consumo, de filmes, de séries, de música… Agora já vou muito à música que os meus pais ouviam e que não ouvia tanto antigamente.

Aceitar as diferenças. No final do dia, todos nós só tentamos ter um lugar de paz e de felicidade

A música pode ajudar a salvar casos como o teu - como na dificuldade de ser aceite num país?

Sem dúvida. Conheço vários casos de pessoas que eram muito tímidas, recatadas, que tinham boas ideias e pensamentos e que através da música conseguiram libertar-se, expor-se. Acima de tudo, consciencializar, que é uma coisa que sempre quis fazer com a minha música.

Além de divertir, de fazer passar um bom tempo, é conseguir consciencializar as pessoas sobre os problemas sociais, mas também sobre os problemas internos, de lutas internas que todos possamos ter. Às vezes precisamos só de ouvir alguém com quem nos conseguimos identificar, que nos faça perceber que não estamos sozinhos e há muitos sentimentos que são normais. Simplesmente temos de aprender a lidar com eles e conhecer-nos um bocadinho mais a nós e ao mundo que está à nossa volta. Aceitar as diferenças. No final do dia, todos nós só tentamos ter um lugar de paz e de felicidade.

Leia Também: "Não há nenhuma música pura. O próprio fado tem influências"

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