"A música cabo-verdiana tem um sentimento doloroso. Porquê? Porque é nas nossas músicas que exprimimos o que a boca não diz, o que a mão não escreve. A ira muda, o asco mudo, o desespero mudo, as palavras de fé que nunca foram ditas e as confissões que morrem na garganta", escrevia Djunga di Biluca, fundador da Morabeza Records, que morreu em 2023.
As palavras surgem na contra-capa do primeiro disco que lançaria, em 1965, intitulado 'Caboverdianos na Holanda', onde figuravam, entre outros, Franque Cavaquinho e Tazinho.
A Morabeza, que começou por chamar-se Casa Silva, foi criada por Djunga di Biluca, que integrou um primeiro grupo de dez trabalhadores marítimos cabo-verdianos chegados nos anos 1950 a Roterdão, onde criaria raízes.
Seriam os primeiros de uma comunidade que cresceria, com o homem da Morabeza a ajudar quem chegasse a Roterdão a arranjar trabalho, além de ser o representante do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo-Verde), cujo líder, Amílcar Cabral, lhe atribuiu a tarefa de criar a editora.
"A Morabeza era um projeto político. Cheguei a falar com o Djunga di Biluca e ele disse-me que a editora foi uma sugestão do próprio Amílcar Cabral", disse à Lusa o sociólogo e estudioso da música cabo-verdiana César Monteiro, recordando que o líder do PAIGC tinha "a consciência de que a música seria um instrumento de resistência".
Para César Monteiro, a editora foi "a expressão das reivindicações identitárias do povo cabo-verdiano", cujo projeto político e cultural era muito superior a qualquer intuito comercial ou lucrativo.
Apesar de quase não estarem presentes na discografia da Morabeza discos com músicas abertamente contestatárias, havia a documentação e promoção de música cabo-verdiana sem a interferência de terceiros, em contraponto com a visão do regime colonial português, que atirava qualquer expressão artística das colónias para a categoria de folclore.
"Muitas das músicas não eram cantadas, eram dedilhadas na viola, mas essas músicas faziam parte da nossa identidade. Naquelas músicas, há um sentimento evocador de uma saudade, da tal nostalgia que caracteriza qualquer cabo-verdiano", vincou César Monteiro.
É graças à criação da Morabeza que Bana, que já tinha um clube em Dacar, no Senegal, segue para a Holanda.
A convite de Franque de Cavaquinho, leva consigo aquilo que seria o embrião da Voz de Cabo Verde, projeto que teve diferentes formações e configurações em quase 20 anos de atividade, seja como banda em nome próprio, ou de suporte a muitos dos grandes nomes da música cabo-verdiana.
Segundo o sociólogo, Djunga di Biluca, além da editora, estabelecia também a ligação entre os cabo-verdianos que ali chegavam e a mobilização para a luta, em Conacri, onde o PAIGC estava sediado e coordenava a guerra de libertação.
Quando Emanuel Varela preparou o seu exílio a partir de Portugal, através do PCP, esteve 15 dias a decorar "uns 100 números de telefone" de casas em França, Bélgica e Holanda. Um deles era de Djunga di Biluca, conta à Lusa o próprio, recordando um homem que ajudava todos os cabo-verdianos que chegavam a Roterdão.
A viagem era para o levar depois para a luta em Conacri, mas acabou por ficar em Roterdão, como exilado, recordando que só o símbolo da Morabeza poderia criar problemas com a PIDE, "que sabia que aquilo era um projeto político".
"O Djunga esteve sempre na linha da frente", afirma o cabo-verdiano de 74 anos.
Já instalado na Holanda, Emanuel Varela recorda-se também da ligação com Bonga, que viria a editar o seu primeiro disco pela Morabeza, "Angola 72".
"Foi numa festa em 1972, no dia antes do Benfica ir jogar com o Feyenoord [de Roterdão]. Vi lá o Barceló de Carvalho [Bonga], o desportista, a tocar. Ele disse-me que queria ficar na Holanda e perguntou-me como fazia para ser exilado. Expliquei-lhe e ele já não regressa a Portugal com a comitiva. Nessa noite, ficou no meu quarto", recorda.
Percebendo que Bonga cantava "e encantava", deu-lhe a conhecer Djunga di Biluca e a Morabeza.
Com o músico angolano Mário Rui Silva e o cabo-verdiano Humbertona, sairia ainda nesse ano o disco de estreia de uma das maiores figuras da música angolana.
Por essa altura, pela chancela da Morabeza, já tinham sido editados nomes como Luís Morais, Bana, Djosinha ou uma na altura desconhecida Cesária Évora, com um single, quarenta anos antes de projetar a música cabo-verdiana no mundo.
Entre os discos gravados, estão também as edições de dois vinis de 'Protesto e Luta' - um centrado em música e outro em poesia nacionalista cabo-verdiana.
César Monteiro aponta essas duas obras como "dos discos que mais marcam aquele período".
António Lima, diplomata reformado cabo-verdiano que foi estudar para França em meados dos anos 1960, recorda-se dos discos da Morabeza como "um motivo de orgulho e de coragem para a diáspora".
"Ouvir a voz do Bana e as mornas e coladeiras dele e dos outros trazia um sentimento de afirmação, de orgulho. Era a nossa música e era uma coisa linda, linda, linda", afirma à Lusa António Lima, que em França ganha consciência política e cria com familiares e amigos o grupo Kaoguiamo, que viria a editar um álbum com a chancela do PAIGC ainda antes da independência.
Nele, figura a música 'Amílcar Cabral', que não é morna, nem coladeira nem funaná.
"É mais um grito", diz.
Segundo António Lima, a música surgiu-lhe depois da morte de Cabral, enquanto trabalhava como porteiro num prédio de Paris.
À pergunta de Lenine "O que fazer?", António Lima decidiu escrever a canção que diz que Amílcar Cabral morreu "cedo demais", numa altura em que pensava que a luta iria esmorecer com a morte do líder do PAIGC.
Após o 25 de Abril, César Monteiro recorda-se que esse disco de Kaoguiamo mobilizaria os jovens para os muitos comícios que antecederam o 05 de julho de 1975, o dia da independência.
Mas a liberdade, conta, também se fez ao som das cordas da viola de Humbertona, editado pela Morabeza, que invadia as rádios após a queda do Estado Novo.
António Lima lembra-se bem desse primeiro disco de Humbertona, 'Lágrimas e Dor', de 1967.
"Sabe, a beleza também inspira a revolta. Uma pessoa perguntava-se porque é que uma música tão extraordinariamente bela não podia ser ouvida? Porque é que tinha de ser silenciada? Então, aquela música trazia interrogações, trazia lágrimas e saudade", diz.
Num documentário de uma televisão holandesa, Djunga di Biluca dizia que a Morabeza mostrava que os cabo-verdianos tinham uma cultura própria e que a editora servia para preservar e manter essa mesma cultura e identidade.
"Sem cultura e sem identidade, és nada", disse.
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