'O Salvado' é o título desta nova coreografia - mais de uma década após o solo de 'A Sagração da Primavera' -- e levará ao palco tudo o que a coreógrafa salvou, depois de "limpar" parte do que deixou para trás, nas sete décadas de vida, três em trabalho permanente na companhia em nome próprio.
"Os solos têm acontecido assim, quase de dez em dez anos. É como se tivesse sempre latente dentro de mim essa possibilidade, e eu sinto quando é o momento certo", descreveu a coreógrafa em entrevista à agência Lusa sobre a mais recente coreografia.
Com estreia marcada para 03 de julho no Teatro Carlos Alberto, no Porto, onde ficará em cartaz nos dias 04 e 05, "O Salvado" seguirá a 09 de julho para o Teatro São Luiz, em Lisboa, e continuará em digressão até ao final de novembro, passando por Setúbal, Faro, Aveiro, Ponte de Lima, Famalicão, Lagos, Figueira da Foz e Sintra.
Na peça, classificada pela artista como "a mais íntima" criada até agora, Olga Roriz abriu-se a novos desafios, entre eles aproximar a comunicação com o público, memorizar textos, mostrar o seu corpo e aprender a tocar guitarra elétrica.
"É algo que eu construí que as pessoas nunca viram", resume a artista, apontando que "o público não vai estar à espera de tanta proximidade num solo, devido à grande presença de textos da sua autoria, e acredita que será "muito interessante" essa surpresa.
"Geralmente, em todos os meus solos, tenho uma quarta parede que eu não ultrapasso para o outro lado. Mas desta vez sim, eu falo bastante com o público", disse a coreógrafa, relacionando essa opção com a sua "faceta teatral", o sonho de ser atriz, outra das suas paixões, a par do cinema e da música.
Doze anos depois do solo que criou para 'A Sagração da Primavera', Olga Roriz continua a sentir a necessidade de se renovar, ignorar tabus, recriar algo novo, experimentar a forma como o corpo se apresenta em palco, explorar as várias linguagens artísticas.
"É um momento muito especial, não só pelos aniversários, mas também por ser um solo especial, criado neste momento da minha vida", aponta a coreógrafa que este ano junta três efemérides e marca-as com o arrojo de se reinventar em palco.
Na música, desta vez totalmente da sua escolha, concretiza o sonho de tocar guitarra elétrica: "Nos 20 minutos da entrada de público [na sala] eu estou a tocar uma composição do Vitor Rua que ele chamou 'Salvado Suite'. Eu nunca tinha pegado numa guitarra. Foi uma trabalheira aprender a tocar", diz, sobre esse treino.
A coreógrafa fez seis residências artísticas em 2024, nomeadamente em Aveiro, Lagos, São Miguel, Ourém, Lisboa e Londres, onde concebeu o seu trabalho não só coreográfico, mas também a seleção musical e os textos.
"Muitas vezes uma pessoa esquece-se de palavras, é normal, mas estes exercícios [para o solo] fizeram com que conseguisse memorizar. O texto é outro tipo de memória, diferente do corpo. É difícil, mas bom ao mesmo tempo", recordou, sobre os ensaios em que se confrontava consigo própria, as suas limitações e capacidades, querendo ir sempre mais longe.
Se na coreografia 'Electra' (2010), Olga Roriz chegou a dançar de tronco nu, em 'O Salvado' decidiu ir mais longe na exposição física e despe-se totalmente, num momento "fugaz".
"Esta decisão parece um disparate. Quando o corpo estava naquele ponto em que me sentiria bem mostrar, não o fiz. Mas agora achei que seria o momento de poder brincar com esta questão", disse, sobre o momento em que se despe, sai do palco, e volta com um casaco, dirigindo-se ao público para gracejar com a situação e consigo própria.
Olga Roriz diz que em palco estará "despida literalmente e não literalmente" num solo "intransmissível", como lhe garantiram artistas próximos: "Pelos vistos sou muito eu, e é isso mesmo que eu queria. Nesse sentido estou contente. Não é algo que outra pessoa possa fazer", comentou a autora de um repertório constituído por mais de 90 obras de dança, teatro, ópera e vídeo.
"É um trabalho com exposição mais íntima, embora a minha intimidade esteja em todos os espetáculos, eventualmente de uma forma mais poética. Aqui [em 'O Salvado'], a minha intimidade está mais exposta", assumiu à Lusa a coreógrafa que completa 70 anos a 08 de agosto próximo.
"Não é só pelos 70 anos, também é um 'statement'. O corpo é sempre um sítio de maior fragilidade, ainda mais para uma bailarina do que para uma atriz. Na dança é um pouco mais complicado", lembra a artista nascida em Viana Castelo, doutorada honoris causa pela Universidade de Aveiro por distinção nas Artes em 2017.
A coreógrafa diz que se sente grata por ainda poder dançar, mesmo com todos os problemas físicos: "Eu não sou uma pessoa completamente saudável, tomo medicamentos todos os dias, mas tenho o privilégio de ter um corpo incrível, que está bem aos 70 anos, com uma linguagem, expressividade e energia muito próprias. Isso faz-me muito feliz. Tenho esta vontade e desejo de fazer coisas que o meu corpo me deixa fazer, com mais dor ou menos dor".
Sempre sentiu o desejo de estar em palco, mas ressalva que não o podia fazer, porque tem uma companhia em nome próprio -- este ano a celebrar 30 de existência -- e porque gosta de trabalhar com outras pessoas: "É isso que acrescenta muito à minha vida artística e pessoal", sublinha Roriz, que teve como formação artística na área da dança o curso da Escola de Dança do Teatro Nacional de S. Carlos com Ana Ivanova, e o curso da Escola de Dança do Conservatório Nacional de Lisboa.
Em 1976, a coreógrafa - que na área do cinema realizou quatro filmes, 'Felicitações Madame', 'A Sesta', 'Interiores' e 'A Casa' - entrou para o elenco do Ballet Gulbenkian sob a direção de Jorge Salavisa, onde veio a ser primeira bailarina e coreógrafa principal até 1992, assumindo nesse ano a direção artística da Companhia de Dança de Lisboa.
Após 50 anos de carreira, a coreógrafa volta a sublinhar estar grata pela companhia e poder trabalhar com "artistas excecionais", alguns deles que a acompanham há muitos anos, como é o caso de João Rapozo, que neste novo solo editou o vídeo, e que conta ainda com o trabalho de Eric Costa na cenografia, de Bárbara Felicidade nos figurinos de Bárbara Felicidade, Cristina Piedade no desenho de luz, João Henriques na direção vocal, e o bailarino André de Campos na assistência à criação.
Para Olga Roriz, os solos têm feito "uma clivagem" na sua carreira, como se "tentasse limpar o quadro e começar de novo", e por isso deu ao novo trabalho o título "O Salvado", significando "o que ficou de toda uma vida".
"Nestes momentos do solo vem tudo de dentro, de uma base com muito de mim", descreve a bailarina distinguida com vários galardões, entre os quais o Prémio da Latinidade (2012), concluindo que este espetáculo "é um autorretrato completo".
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