Meteorologia

  • 19 ABRIL 2024
Tempo
15º
MIN 14º MÁX 21º

"Leitores não conseguem passar a parte do livro das orgias e das drogas"

Falámos com o jovem escritor André Fontes, que se estreou recentemente na profissão e quer abanar os alicerces da literatura nacional.

"Leitores não conseguem passar a parte do livro das orgias e das drogas"
Notícias ao Minuto

16:00 - 28/11/19 por Patrícia Martins Carvalho

Cultura André Fontes

André Fontes tem 27 anos e é licenciado em Filosofia. Já trabalhou num call-center e agora dá explicações. No entanto, como acontece a tantos outros jovens que pertencem à geração millennial, não consegue ter independência financeira para morar sozinho. E tem um sonho: ser professor.

Dito desta forma pode não estar a perceber quem entrevistámos, mas provavelmente vai reconhecer o nome quando lhe dissermos como se chama o livro que escreveu: 'Saturnália'.

É o primeiro livro português que dá foco a esta geração que é a mais qualificada de sempre, mas que, ao mesmo tempo, é aquela que menos oportunidades tem para ser "excecional".

A obra centra-se num jovem, António Fausto, que passa a semana a contar os dias para que chegue o fim de semana, altura em que pode ser ele próprio sem estar fechado num escritório com um trabalho que não o preenche.

Mas, afinal, o que o preenche? Pouca coisa. O António - que é o mesmo que dizer o André - tem muitos sonhos. Quer ser mais. Quer ser melhor. Mas não sabe como chegar ao patamar em que a invisibilidade fica para trás e no horizonte já consegue ver a "glória".

Este fracasso profissional - que é também um fracasso espiritual - leva-o a refugiar-se no seu grupo de amigos que recorre a drogas e orgias para se encontrar em algum lugar da existência.

Em conversa com o Notícias ao Minuto, André Fontes mostrou-se satisfeito com o feedback que tem recebido após o lançamento do livro. Confessou que 'Saturnália' é uma obra "bastante autobiográfica" e que a personagem principal, o António, é na verdade ele próprio, embora um pouco caricaturado.

Com uma linguagem "direta" e crua, o livro passa-se em locais de Lisboa que "a maioria das pessoas acha um pouco esquisitos", e tem como objetivo "revolucionar" a literatura nacional que está muito presa aos autores do passado, como se de uma espécie de "tributo" se tratasse.

Porquê escolher o nome ‘Saturnália’?

Inicialmente li a palavra num caderno do Nietzsche e gostei muito. E quando me surgiu o título para o livro foi só por gostar da palavra e por acaso acho que calhou bem devido a todo o caos mais carnavalesco que está associado à palavra. Sim, calhou bem com o livro, mas foi só uma palavra que achei muito bonita.

A minha ideia era renovar um bocadinho aquilo que me parece ser a fachada da literatura portuguesaQual era o seu objetivo quando decidiu escrever o livro?

A minha ideia era renovar um bocadinho aquilo que me parece ser a fachada da literatura portuguesa. Tudo o que eu lia era demasiado parecido com a literatura francesa ou alemã e vi que havia muita pouca coisa com influências anglo-saxónicas. A minha vontade de escrever o livro – e não contos, como costumava fazer – foi pensar que é possível escrever um romance breve e ir direto ao assunto. Honestamente, nunca esperei que fosse publicado porque achei que não havia mercado para tal, mas pelos vistos estava errado.

A existência deste “mercado” é sinal de que a literatura nacional precisa de um ‘abanão’?

Sim, sem dúvida.

E porquê escrever um livro?

Talvez pelo medo de ser insignificante.

Como é que descreve a literatura portuguesa atualmente?

É uma literatura de tributo aos escritores do passado quase que constantemente. Há um receio em utilizar uma linguagem mais contemporânea, mais imediata. Parece que seguimos uma fórmula que se baseia na quantidade de palavras e de arabescos que conseguimos meter em parágrafos de modo a mostrar que somos bons a escrever e temos uma riqueza linguística. Mas falha-nos a capacidade de irmos diretos ao assunto.

É por isso que o seu livro tem uma linguagem tão crua?

Também é por isso. Mas também porque essa é, de facto, a sensibilidade do protagonista em relação à própria vida.

Espera revolucionar a literatura?

Sim, claro, se possível.

Parece que seguimos uma fórmula que se baseia na quantidade de palavras e de arabescos que conseguimos meter em parágrafos de modo a mostrar que somos bons a escrever e temos uma riqueza linguística. Mas falha-nos a capacidade de irmos diretos ao assunto O António Fausto, o protagonista, foi criado à sua imagem?

Sim, sim. Esta é uma obra bastante autobiográfica.

Porquê colocar-se como a personagem principal? É mais confortável para escrever?

Não é uma questão de conforto. Inicialmente quando escrevi o livro usei o meu nome, o dos meus amigos e os dos locais onde saímos. Depois achei que era mais interessante se desse outros nomes, inclusive a mim próprio.

Porquê?

Para que pudesse haver mais espaço para a ficção e para a criatividade, não mantendo o livro tanto como um relato de coisas que aconteceram e evitando aquela tendência para meramente descrever a realidade, mas poder até mesmo tornar o texto mais narrativo.

Conseguiu distanciar-se para delinear o percurso do António?

Sim. Tive de me caricaturar muito para escrever esta personagem, mas gostei bastante disso, de gozar bastante comigo para a poder criar.

Levantei-me do chão e as vertigens forçaram-me a fechar os olhos. Senti-me a girar com o mundo. Quando voltei a abri-los olhei para a cama: a Tânia gemia de boca aberta graças à Madalena. O Miguel era, por esta altura, uma poça de suor, que se limitava a bater uma punheta para resgatar a tusa. A vida do Miguel parecia uma luta contra a impotência. No chão, o Rui continuou a martelar a Maja. Que circo! Que pocilga. E eu ali: um porco entre os porcos  [excerto da obra 'Saturnália']

A realidade que nos é dada a conhecer no livro é verdadeira? Ou foi exagerada para tornar a narrativa mais interessante?

Na verdade, a realidade até foi bastante suavizada.

Então é assim que os jovens se relacionam hoje em dia?

Sim, pelo menos aqueles que eu conheço sim.

Saturnália’ é uma visão realista ou pessimista da geração millennial?

Eu não diria que o livro é pessimista, na medida em que traça uma condenação a um buraco para onde vamos cair todos. O livro é pessimista, isso sim, para esse personagem que vê a vida com pessimismo, cinismo e azedume. Não diria que isto diz que o mundo está perdido. Acho que não, não vejo isto como um livro pessimista.

Podemos assumir que é então um retrato de uma boa parte dos millennials?

Não. Acho que isso seria atribuir-me um talento para a sociologia que eu não tenho.

Toda a gente foi educada para achar que ia atingir uma glória e protagonismo que, matematicamente, não seria possível

O livro tem subjacente uma crítica ao facto de os millennials serem os mais qualificados de sempre e ao mesmo tempo os que têm menos oportunidades. O que falhou na construção desta geração?

Falhou uma pluralidade de fatores, mas aqueles nos quais me foco são os que dizem respeito à educação que recebemos, que foi muito apontada a uma eficiência que iria dar uma espécie de glória. Toda a gente foi educada para achar que ia atingir uma glória e protagonismo que, matematicamente, não seria possível. A geração dos nossos pais tinha isso assente enquanto estudava e depois quando trabalhava. Mas também há fatores económicos e políticos que contribuíram para isto, mas não me foquei tanto nesses.

Por alguma razão, as pessoas não conseguem passar a parte das orgias e das drogas. Isso ainda chateia algumas pessoas Como é que têm sido as reações ao livro?

Têm sido polarizadas. Posso dizer que é elogiado na medida em que elogiam o estilo e a forma como ele é: cru no relato que faz de um grupo de pessoas de uma geração que não é de todo representada na literatura portuguesa. Mas, por alguma razão, as pessoas não conseguem passar a parte das orgias e das drogas. Isso ainda chateia algumas pessoas.

Portanto, ou se ama ou se odeia o ‘Saturnália’, é isso?

Sim, pelo menos assim espero. Quero que as pessoas digam alguma coisa acerca do livro.

As críticas são feitas pelos leitores ou pelos especialistas literários?

Maioritariamente são feitas pelos leitores quando partilham as suas opiniões comigo e me dizem que não fazem estas coisas. Na verdade, nem sei muito bem o que dizer quando oiço isto... eu não espero que a maior parte das pessoas faça estas coisas.

Mas arrepende-se de o fazer?

Não, de todo. Faz parte da minha vida e de algo que eu ainda faço. Não me arrependo, pelo menos por enquanto.

Os seus pais leram o livro? Qual foi o feedback que recebeu?

Ler leram, mas não sei se até ao fim. O meu pai diz que eu sou um grande maluco, a minha mãe… diz o mesmo mas com alguma retração.

Não teve receio de qual seria a reação deles?

Não, de todo.

Levei-lhe a mão ao queixo e apertei-lhe as bochechas, comprimindo-lhe os lábios carnudos e vermelhos que, assim que tocavam nos meus, me despertavam uma vitalidade robusta e beatífica. Levantei-lhe a saia, afastei-lhe as cuecas e penetrei-a lentamente. Eva... [excerto da obra 'Saturnália']

Já tem um segundo livro em mente?

Sim e já estou a meio. Comecei a escrevê-lo quando acabei o ‘Saturnália’.

Pode levantar a ponta do véu?

Passa-se no mesmo universo que o ‘Saturnália’, mas a personagem principal não é a mesma. Aliás, há mais do que uma. Tenho um tema que tende a ser as várias reações à invisibilidade que cada pessoa sente.

O André sentia-se invísivel?

Sim, diria que sim.

E agora depois de publicado o livro?

Bom, pelo que eu percebi, nos primeiros três meses a seguir ao lançamento de um livro não há nada que vá mudar assim tanto, exceto na forma como a pessoa se sente. ‘Escrevi um livro, trabalhei e alguém o reconheceu’. E agora o mundo espera que, de alguma forma, o façamos outra vez e isso traz-me mais satisfação do que pressão. No que toca à invisibilidade até é bastante útil para alguém que quer escrever sobre a sua própria vida.

Conheço muita gente que vê como uma espécie de injustiça cósmica o facto de não conseguir emancipar-se financeiramente dos pais e é compreensível É isso que quer para a sua vida?

Sim, sem dúvida.

O André tem 27 anos, trabalha e ainda vive com os seus pais. Este livro é um grito de revolta?

É, mas para ser sincero já não sinto grande revolta com isso. Mas conheço muita gente que vê como uma espécie de injustiça cósmica o facto de não conseguir emancipar-se financeiramente dos pais e é compreensível.

Que mensagem gostaria de passar à geração millennial?

Talvez a de que é tudo uma questão de sorte. Vamos imaginar a sorte como uma entidade que está lá em cima: às vezes é generosa e às vezes não é. Isto é um grande fator a ter em conta. Eles [jovens] não são responsáveis por tudo o que lhes acontece na vida, nomeadamente os fracassos. Acho que a maior parte da minha geração acredita, e é educada para acreditar, que aquilo que escolhe e acredita é relevante o suficiente para poder mudar toda a sua vida e trazer-lhe mais sucesso.

E não é?

Acho que não é assim tão relevante. Há muitos fatores externos à vontades deles a fazerem o seu destino.

Como vê o futuro desta geração?

Diria que esta geração vai viver, no geral, uma adolescência muito, muito, muito, muito retardada o que, eventualmente, vai levar a vidas familiares muito tardias que vão trazer uma bagagem que as vidas familiares precoces dos nossos pais não trouxeram. Vai ser uma experiência social interessante.

E geração seguinte?

Terá reflexos desta até porque não vamos educar os nossos filhos da mesma forma que fomos educados. Nós tivemos privilégios que acho que não lhes vamos conceder.

Recomendados para si

;
Campo obrigatório