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"Consegui deixar a realidade na música, sem sequer dar conta disso"

A voz grave e os instrumentais sufocantes são algumas das características que permitem identificar rapidamente a música de Allen Halloween. As realidades que mostra, que muitas vezes gostamos de esconder ou, simplesmente, fingir que não existem, tornaram-no um artista de culto. Próximo álbum deverá sair nos próximos meses.

"Consegui deixar a realidade na música, sem sequer dar conta disso"
Notícias ao Minuto

12:40 - 10/05/18 por Pedro Bastos Reis

Cultura Allen Halloween

Da Guiné-Bissau, passando por Santo António dos Cavaleiros ou Odivelas, onde a música da ‘Bruxa’ deu os seus primeiros passos, Allen Halloween chega ao Coliseu dos Recreios. Não é um passo de gigante, é natural para quem já tem muitos anos de estrada. O próprio género musical transformou-se muito e, hoje, o hip-hop já enche grande salas, inclusive em Portugal.

“Há uns 10 anos, a maioria dos rappers estava numa esquina a dar um freestyle. Hoje, tocar no Coliseu acaba por não ser uma grande cena, porque o hip-hop é dos géneros que traz mais dinheiro e mais público”, diz Allen Pires Sanhá, conhecido como Halloween, a pisar pela primeira vez o palco do Coliseu dos Recreios, num evento de apresentação do EA Live, um festival, que decorre no próximo dia 30 de maio, em que também atuam Mão Morta, Luís Severo, The Legendary Tigerman, Samuel Úria, Linda Martini, You Can´t Win Charlie Brown e um Encore Projet de homenagem aos Heróis do Mar.

Allen Halloween é o único nome de rap no cartaz, o que não intimida ou coloca qualquer tipo de pressão. Em conversa com o Notícias ao Minuto, recorda o concerto “brutal”, como o próprio define, que deu no Vodafone Mexefest do ano passado, num Capitólio cheio. No Coliseu, não é de esperar outra coisa, sem alterações de fundo ao que são os concertos do rapper, com DJ e MCs. “Encher grandes palcos em formas de rap, não alterar a nossa cena para poder tocar num palco dito grande”, garante.

Quando se fala em hip-hop português, é inevitável referir o nome do rapper que começou, ainda nos anos de 1990, a lançar as primeiras músicas. Mas foi em 2006, com o lançamento do álbum ‘Projecto Mary Witch’, que nascia um artista de culto, sobretudo no meio underground, mas não só. A voz grave, cavernosa e densa, os beats e instrumentais quase claustrofóbicos e macabros, qual filme de terror, e o retrato cru da realidade das ruas definia (e define) a música de Allen Halloween.

A sua inspiração é o que vê e vive. “A minha música é muito documental. Se pegarmos numa música de 1996, por exemplo, está lá a realidade daquela altura”. Um retrato cru em que a vida dos subúrbios, sobretudo daqueles que são marginalizados, é descrita sem filtros, muitas vezes com violência. “Xadrez para mim é uma suíte / Paredes com cimento na minha casa não existe, é triste”, canta, em 2006, em ‘Dia de Um Dread de 16 Anos’. “Eu já tinha jantado mas na esquadra serviram-me mais um prato / Comi tanto naquela noite que fiquei enjoado”, canta ainda no mesmo tema.

O relato é cru mas é um veículo para mostrar o que os olhos de Allen Halloween viram (e, em muitos casos, situações que o próprio viveu) por exemplo, na Azinhaga do Barruncho, entre Odivelas e a Póvoa de Santo Adrião. 

Depois de sair de Odivelas, para mais tarde voltar e por lá continuar, Allen viveu, durante algum tempo, no Cais de Sodré. É aí que produz ‘A Árvore Kriminal’, álbum lançado em 2011, um disco com uma evolução em termos de produção, fiel ao seu antecessor, mas que revelava já um crescimento do homem e do músico. “Portugal, um jardim plantado à beira mar / Nasceram morangos e floribelas na campa de Salazar”, anuncia em ‘Um Jardim à Beira Mar’, uma reflexão sobre um Portugal escondido, ou que se gosta de esconder. “Portugal é um erro, como General D disse / Este país nunca me deixou ser mais do que isto”.

Não é redenção, é crescimento 

“Eu perdoei quem me devia / Espero que o meu Pai me perdoe a minha dívida / Tire-me de toda a tirania / E livre-me de cair em tentação / Devolve-me a minha absolvição”. ‘A Árvore Kriminal’ termina com ‘Redenção’, uma ideia que transparece para o álbum seguinte, ‘Híbrido’, lançado em 2015. Allen Halloween, que dá grande importância à religião na sua arte e na sua vida, no entanto, prefere falar em “crescimento” e não em redenção.

“Uma pessoa cresce e, ao fim ao cabo, acaba por ver o mundo com outros olhos, mas sempre da mesma forma. Não veja a coisa na onda da redenção, vejo no sentido de crescimento”, conta Allen Halloween, garantindo, de seguida, que “se fosse jovem, voltava a fazer tudo igual”.

“Quando tínhamos 16 ou 17 anos cantávamos a dizer ‘eu roubo, mato, faço e acontece’, e fomos crescendo e fomos falando de outras coisas, vimos as consequências”, acrescenta, fazendo uma comparação com o filme ‘O Estranho Caso de Benjamin Button’, de David Fincher. “Há muitos rappers que fizeram o percurso inverso e que eu vejo como o Benjamin Button. Os anos iam passando e ele ia ficando mais puto. O nosso caso foi ao contrário”, ri-se. “Quando eram novos” continua, “diziam ‘ah não faças isso, que isso é mau’ e hoje, com 40 anos, dizem que são traficantes de droga, o que é muito feio [risos].” Mas, sentencia, “se calhar falar dessas coisas, hoje, vende mais”.

Em ‘Híbrido', no entanto, os mais jovens são várias vezes visados. O ‘Bandido Velho’ faz questão de deixar conselhos, muitas vezes em vão. “Às vezes digo aos miúdos tudo aquilo que eu vi e sofri / Mas ninguém presta atenção, ninguém ouve, irmão”. As palavras não se tratam de lições de moral, mas de vivências e experiências. “Eu sei, meu filho, eu sei o que é tu queres fazer / Aquilo que tu queres fazer é aquilo que eu estou a tentar esquecer”.

Há ainda o contar de histórias, como em ‘Marmita Boy’, o jovem de 19 anos à procura de um rumo, em que se questiona como é que se consegue, perante a segregação, encontrar esse caminho. “Jovem africano do bairro social / Quais são as tuas chances, mano, em Portugal”? Ou o episódio – que poderia ser real e, quem sabe, talvez até seja - contado em ‘Mr. Bullying’, a história de um filho de mãe psicóloga e pai agente da polícia, desesperado quando o rapaz que o “esfaqueou três vezes” regressa à escola. “Odeio ir à escola, odeio adolescentes / Odeio-me a mim próprio e odeio toda a gente”. Um ódio que depois é usado como discriminação. “Odeio rappers, fogo / Odeio negros / Há gente que nunca devia sair do gueto”. Uma chapada de realidade.

“Apresentar a música da forma mais nua possível”

Três anos depois de um álbum que já é um clássico, o processo de crescimento de Halloween continua. O próximo disco deverá, segundo o próprio rapper, sair “daqui a um ou dois meses”. Será um álbum acústico chamado ‘Unplugueto’, uma forma de “apresentar a música da forma mais nua possível”.

“O ‘Unplugueto’ será um álbum em que a maioria dos sons terá apenas dois ou três instrumentos. Acho que faz falta isso, apresentar a música de forma bastante nua, para as pessoas entenderem como é que a compões. Acho que qualquer artista devia tentar fazer isso”, salienta.

Muitos dos temas já foram divulgados. Há novas versões de clássicos como ‘SOS Mundo’, ‘O Meu Par’ ou ‘Bandido Velho’, músicas que são apresentadas de uma forma mais despida e intimista, ganhando, assim, um novo sentido.

Depois, há novos temas que mostram um Halloween que, se calhar, surpreendeu muita gente. É o caso de ‘O Primeiro Dia’, uma versão do clássico de Sérgio Godinho, ou ‘Cobrador de Impostos’, uma homenagem a José Afonso, de quem Allen é grande fã. “Eu gosto do estilo do Zeca, sobretudo por ser uma coisa muito simples, onde ele não se pode esconder, a letra tem de ser potente, porque ele não tem muita coisa a acompanhá-lo”. As semelhanças com o que o faz neste ‘Unplugueto’ são óbvias.

Ainda nos novos temas, vale muito a pena salientar a música ‘Crescer’, que podia funcionar quase como que uma síntese do que significa o crescimento do jovem que vagueava pela Azinhaga do Barruncho até ao homem que conseguiu, através da música, retratar uma realidade tão crua, violenta em grande parte, mas genuína em toda a sua essência. “Acho que consegui deixar a realidade na música, sem sequer dar conta disso”. A tal música “documental” que sabe fazer como ninguém.

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