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"Em muitos casos, 'não parar' é que pode ser morrer"

O pediatra Mário Cordeiro é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Em muitos casos, 'não parar' é que pode ser morrer"
Notícias ao Minuto

27/04/18 por Liliana Lopes Monteiro

Lifestyle Mário Cordeiro

Mário Cordeiro, pediatra e autor de mais de 50 livros, fala-nos da sua infância, do pai também médico, da profissão que o escolheu, da sua preocupação para com as gerações mais novas comandadas por forças tecnológicas omnipresentes e do mundo atual, "egocêntrico e hedonista", que está a moldar as crianças e os jovens. Mundo e sociedade deveriam antes ter em mente "os afetos, o amor e a solidariedade para com o outro".

Para lá de pediatra, professor aposentado de pediatria e de saúde pública da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, Mário Cordeiro foi presidente da Secção de Pediatria Social e Comunitária e da European Society for Social Paediatrics e fundador e presidente da Associação para a Promoção da Segurança Infantil, além de autor de vários bestsellers, como 'O Grande Livro do Bebé', 'O Livro da Criança' ou 'O Grande Livro da Adolescente'. 

Escolheu a pediatria pela vontade de se entender a si próprio e também porque o "ambiente médico" sempre envolveu a sua vida. Do pai herdou o nome, a profissão, e sobretudo o sentido do sacrifício, do trabalho e do dever para com aqueles que mais precisam. 

Pai de cinco filhos, envolve-o agora uma certa apreensão e até pessimismo em relação ao futuro, pelo que reitera a importância de viver o momento presente e de aceitarmos a nossa condição mortal, sem subterfúgios e 'muletas' de ecrãs, redes sociais e de outros aparelhos tecnológicos. "Só aceitando que somos mortais é que estaremos aptos para fruir a vida", alerta. 

O seu pai, Mário Cordeiro, foi um pediatra de referência. Também o seu avô e o bisavô eram médicos. Esta realidade influenciou o seu percurso profissional?

De alguma forma sim, mas não no sentido de me forçar a ser médico. Quando digo que me influenciou é porque o ambiente médico envolveu sempre a minha vida. Por outro lado, o sentido de dedicação que vi no meu pai, designadamente com as crianças e suas famílias, foi um enorme modelo teórico e prático, um manancial de exemplos de sacrifício e de sentido do trabalho e do dever, pois ser médico, naquela altura, não era propriamente fácil… um telefone de massa preto e um carro para ir visitar os doentes mais graves… e nem havia serviços de urgência nos hospitais. Para o meu pai não ir sozinho, nós revezávamo-nos para ir com ele, e mesmo que de vez em quando fosse um frete, sabia sempre bem porque era uma oportunidade de estar com ele, para lá do sentido do dever, que creio ser uma das coisas mais importantes que o meu pai me transmitiu.

Entender que um bebé recém-nascido já demonstra características do seu temperamento é fabulosoEntão, o que o fez escolher a pediatria?

Escolhi pediatria porque sempre me interessei por crianças: sou o oitavo de oito irmãos, comecei a ter sobrinhos aos dez anos, o meu pai era pediatra e conhecer as crianças, o desenvolvimento e os seus diversos ecossistemas foi sempre apelativo. Claro que haverá também uma parte quase psicanalítica, de me entender a mim próprio, nas minhas forças e virtudes, mas também nos defeitos e desamparos, mesmo que tenha tido uma infância feliz. Mas os desamparos que sentimos não têm obrigatoriamente de ser desamparos reais ou objetivos! A importância da infância na nossa vida, designadamente dos primeiros anos dos quais nem sequer temos memórias vivas (está tudo no inconsciente), é um dado adquirido e científico, e é fabuloso entender esse mundo quase desconhecido, ou pelo menos muito pouco penetrável. Entender que um bebé recém-nascido já demonstra características do seu temperamento é fabuloso…

Que retrato traça da pediatria em Portugal? O que não precisa de ser mudado e o que ainda faz falta?

Portugal tem dos melhores índices de saúde das crianças e adolescentes, com muitos fatores protetores, mas claro que esta excelente 'floresta' não pode esconder as 'árvores' que ainda existem e que precisam de cuidados especiais (com os correspondentes programas e orçamentos), e além disso, novos desafios surgem, quase diariamente, com as questões relativas às tecnologias, ambiente, novas doenças e ressurgimento ou mudança de algumas antigas, falha de medidas de prevenção, traumatismos e lesões acidentais, correntes anti vacinas, etc.

Agora que ocorreu a morte de um grande percursor, Brazelton, deveríamos pensar no seu legado… e infelizmente a pediatria ainda está muito longe do que este grande homem preconizava. Ele e os que, em Portugal e noutros países, desenvolveram a Pediatria Social nos anos 60: o meu pai, a Profª Maria de Lourdes Levy, a Drª Celsa de Carvalho e tantos outros.

Há algum tempo que diz, em jeito de brincadeira, que é um jornalista falhado. E chegou a criar o seu próprio 'pasquim' quando tinha apenas 10 anos. Arrepende-se de não ter seguido essa carreira?

Não… tenho um filho que, felizmente, seguiu a carreira e é agora editor no Expresso. O meu jornal era 'ligeiramente' mais pequeno e a tiragem reduzida a cinco ou seis fotocópias, coisa que, em 1966, era muito difícil de conseguir. Chamava-se 'Trapalhadas'.

Não sendo jornalista, sempre gostei muito de ler e outro tanto de escrever. Daí escrever muitos livros, artigos, e intervir nos meios de comunicação muito amiúde. Os meus livros para pais e educadores tentam ser algo 'jornalísticos', na medida em que me gabo de ter começado um estilo de livros baseado nos conselhos, etc., em casos reais ou ficcionados, mas descritivos e próximos, o mais possível que consegui da realidade portuguesa e do que vivemos nas nossas casas, incluindo na minha, enquanto pai.

Mas gostava de ter sido jornalista? Porque criou o jornal?

Gostava, sim, sem sombra de dúvidas. Sentir-me-ia muito bem nessa pele, daí intervir sempre que posso. Aliás, para lá das rubricas que tive durante mais de três anos na SIC, tive um programa de ano e meio na Comercial e desde há três anos escrevo semanalmente uma página no jornal i para lá de ter escrito 25 anos na Pais&Filhos, desde o primeiro número, em 1992, até ao último, em dezembro de 2017, quando a revista fechou. Agora tenho um programa semanal na Antena 2, que me dá muito gozo, pelo exercício de escolher temas, desenvolvê-los e adequar músicas ao tema.

Quanto ao 'Trapalhadas', confesso que foi pelo gozo de escrever, e tinha entrevistas, palavras cruzadas, anedotas, contos, romances, adivinhas, trocadilhos e jogos de palavras… a Língua Portuguesa sempre me fascinou, talvez porque lesse avidamente… e até porque nem televisão tínhamos. Brincava com os amigos, lia, brincava sozinho, criava e imaginava jogos, andava de bicicleta… enfim uma vida dividida entre o estudo e o brincar… até muito tarde, até porque só cresci aos 17 anos, já na faculdade. Sempre gostei de aprender línguas, e foi assim que aprendi o inglês e o francês, na escola e despois desenvolvendo em casa, e finalmente castelhano, alemão e italiano. Procuro sempre ler os livros na língua original, bem como revistas. Curiosamente, os institutos onde andei – alemão, durante seis anos, e italiano, durante três – acabaram por me dar a conhecer línguas que uso menos, por falta de oportunidade.

Vivemos num mundo de 'seriozinhos' que, afinal, se pauta muitas vezes por valores de desonestidade e de corrupção e aldrabice, para lá do exibicionismo e show-off mais ferozAprendeu mais como pai ou como médico?

Em ambos os contextos. Um complementa o outro. Melhorei ambos, através dessas duas vertentes. E de outras, também, como a de ser ávido de viver e de contemplar, observar, reparar, dar atenção às pequenas coisas, aos pormenores, sem estar sempre à espera de 'grandes programas'. Com as crianças – seja como pai, seja como médico – tem de ser assim. Se, como se diz, “o diabo se esconde nos pormenores”, também não é mesmo verdade que a magia e o deslumbramento do ser humano, o amor e o sublime estão também lá.

Quantos livros já escreveu e com que frequência escreve?

Com os que vou publicar até ao verão… perto de 50. Escrevo regularmente, e tenho uma enorme ânsia de o fazer, de modo a conseguir transportar para o papel e partilhar as ideias que tenho, seja nos livros mais, digamos, técnicos, para pais e educadores, seja nos romances, poesia ou peças de teatro; estes últimos, géneros a que me dedico cada vez mais.

Ainda dá consultas todos os dias?

Sim, praticamente, mas não sou nem pretendo ser escravo do trabalho. A pouco e pouco creio que é bom, quando se pode, aumentar os espaços e graus de liberdade para ter vida com a família, vida própria e simplesmente 'tempos livres' para ler, escrever, ouvir música, sei lá, como se diz em português, “fazer o que der na real gana”.

Há uma mística e uma espiritualidade nas crianças que os adultos, muitas vezes, subvertem. Só aceitando que somos mortais é que estaremos bem aptos para fruir a vida

O que é que os adultos deviam aprender com as crianças?

A simplicidade, o prazer de brincar, de se contentar com pouco, de imaginar e dar expressão à criatividade, aos sentimentos, sem demasiadas baias e rédeas. Não quero dizer que não tenham de ser ensinadas e de aprenderem, mas a sua espontaneidade deveria ser contagiante, num mundo de 'seriozinhos' que, afinal, se pauta muitas vezes por valores de desonestidade e de corrupção e aldrabice, para lá do exibicionismo e show-off mais feroz.

Há uma mística e uma espiritualidade nas crianças que os adultos, muitas vezes, subvertem, seja para viverem hedonisticamente, seja para venerarem um deus qualquer, apenas por não quererem aceitar que são mortais, que são finitos e que daqui não levarão nada… apenas deixarão o que terão feito. Só aceitando que somos mortais é que estaremos bem aptos para fruir a vida.

Os pais não devem ter medo dos filhos e devem exigir sempre respeito e solidariedade, algo que também têm de darComo é que os pais podem ajudar os adolescentes a transitar para idade adulta?

Sendo coerentes e consistentes, na sua educação, e não indo atrás das modas ou das pressões dos pares. Amar é educar e vice-versa. Podem existir muitos conflitos de interesses entre os jovens e os pais, como é natural e normal de quem tem horizontes amplos. Nem sempre o que um quer pode ter correspondência no outro, e isso não quer dizer que alguém esteja errado ou que a verdade esteja de um só lado… mas há que ter uma visão sistémica das coisas, dos fenómenos e dos contextos, e, se a negociação (que deve ser incrementada desde crianças, com argumentos, lógica, saber escutar e fazer-se escutar) falhar, então quem deve decidir são os pais.

Em muitos casos, 'não parar' é que pode ser morrer

Os pais não devem ter medo dos filhos e devem exigir sempre respeito e solidariedade, algo que também têm de dar. Preparar adolescentes para a vida é mostrar-lhes exemplos de amor, do valor do trabalho, da mais-valia que são os outros, da relativa insignificância dos bens materiais para lá dos que respondem a necessidades irredutíveis. E mostrar que a Natureza, o contemplar, o estar são coisas boas.

O velho ditado de “parar é morrer” está desatualizado. Em muitos casos, 'não parar' é que pode ser morrer, porque é não refletir, não pensar, deixar as coisas andar sem admirar, fruir, gozar. Só pais diversificados e completos podem dar aos adolescentes o que eles precisam neste mundo em que anda tudo cheio de pressa a correr… para lado nenhum. É incrível que desde há quase 50 anos, ou porventura mais, não se produza uma única ideia filosófica, mas apenas teorias económicas e financeiras. A evolução tecnológica sem substrato é um desperdício e é transformarmo-nos em robots, perdendo a mais-valia do que é ser-se humano.

A invasão dos ecrãs é algo que nos deveria arrepiar e preocupar. Os adolescentes estão a tender a deixar de ser livres-pensadoresQuais são as maiores dificuldades que as crianças e os adolescentes enfrentam na sociedade atual?

Os desafios dos ecrãs, o regular e 'domesticar' as tecnologias e o não perder demasiado tempo com 'mais do mesmo'. Outros riscos são o de não encontrar nem desenvolver espaços endorfínicos de estar, sentir, usar todos os sentidos para apreciar os momentos e a Natureza sem ter necessariamente uma outra 'agenda', e cultivar mais as relações interpessoais 'olhos nos olhos'.

Será que é preciso haver ditaduras para haver sangue na guelra e gritos de revolta? Espero que nãoA invasão dos ecrãs é algo que nos deveria arrepiar e preocupar. De alguma forma, também, a atividade física e a alimentação podem ter desvios preocupantes. Mais do que ser fundamentalista de vez em quando ou ir ao ginásio suar durante uma hora duas vezes por semana, importa andar a pé todos os dias e ter uma alimentação cuidada. Por outro lado, preocupa-me a perda da individualidade face à pressão dos pares – o argumento de que 'toda a gente tem' ou 'toda a gente faz' é muito redutor. Os adolescentes estão a tender a deixar de ser livres-pensadores, para lerem pouco, interessarem-se pouco pelas questões filosóficas e não saberem resistir à pressão de autoproclamados líderes, com a sua corte de admiradores… isto é muito mau. Será que é preciso haver ditaduras para haver sangue na guelra e gritos de revolta? Espero que não, que a democracia seja, até, muito mais apelativa à criatividade e à participação!

O que é ser um bom pai?

Como escreveu Winnicot, um psicólogo infantil, não interessa ser mãe ou pai perfeitos, mas apenas 'suficientemente bons'. Não há um 'paizómetro' que meça o que é um pai. À partida, somos os melhores pais que os nossos filhos podem ter. Confiemos nisso e não nos deixemos esmorecer ou abater. Sobretudo, sejamos coerentes, consistentes, sem medo de amar mas sem medo de educar e aconselhar, sem medo de sermos adultos e eles crianças. Mais: poderemos fazer grandes sermões, mas o exemplo e o modelo é que ficarão na mente dos nossos filhos. Palavras leva-as o vento…

Nos dias de hoje, o que significa dar uma boa educação aos filhos?

Hoje, como sempre, é encaminhá-los no seu percurso de vida, dando-lhes ferramentas para tal, de modo a que tenham mais hipóteses de se realizarem e terem mais momentos de felicidade, para eles e para os outros. No fundo, é educar para a paz, no sentido do respeito e da ética, da distinção clara entre o certo e o errado, da empatia e do valor do trabalho e da solidariedade social. E também dos sentimentos, afetos, a expressão dos mesmos e o amor.

Não pensemos que os filhos têm de ser o que queremos ou o que fomos e gostámos ou não fomos e gostaríamos de ter sido. Eles são eles, seres autónomos que precisam dos outros para se complementarem, mas que têm a sua maneira de ser, a sua liberdade e o respeito pela Natureza, pelas pessoas e pelos seres vivos. Educar para a arte, para a contemplação e para o ser-se sensível ao belo, bem como à exercitação da relação entre o corpo e o ambiente, tornou-se uma obrigação e uma urgência… infelizmente, a escola ainda está muito longe deste objetivo, e o sistema educativo precisaria de uma volta muito grande.

É a favor de uma educação mais liberal ou acredita na superproteção?

A superproteção é errada. Basta a proteção, que liberta em termos graduais de autonomia. Por outro lado, o liberalismo excessivo conduz à desresponsabilização e à falta de rigor. No meio é que está a virtude, e prezando a liberdade e tentando entender o que vai na cabeça das crianças e o que as pode motivar para este ou aquele comportamento, cabe-nos não ter medo delas, sermos assertivos e não esquecermos que somos os seus modelos… e que um bom exemplo vale mais do que mil sermões.

Ceder a todas as chantagens com medo de sermos 'maus pais' dá asneira. As crianças são manipuladoras e não se coíbem de fazer chantagemQuais são os maiores erros dos pais?

Confundirem papéis, terem medo de ser pais, quererem ser pais perfeitos… fantasias que não conduzem a nada. Temos de mostrar firmeza educativa, educar com amor e amar com educação, ensinar, aprender também continuamente com os nossos filhos, e rever e repensar a maneira como somos pais, o que tem a ver com os filhos, connosco e com o período de vida que atravessamos, mas também com os fatores externos, do quotidiano.

Ceder a todas as chantagens com medo de sermos 'maus pais' dá asneira. As crianças são manipuladoras e não se coíbem de fazer chantagem – atacam como todas as 'armas' e fazem-no muito bem… no fundo, estão a fazer o seu jogo. Nós, adultos, é que não podemos deixar de fazer o nosso: elogiar ou 'rosnar' quando for necessário e adequado. Por outro lado, um erro grande é colocar uma prioridade nas coisas materiais, esquecendo a Natureza, a frugalidade, a humildade e a contenção. O exibicionismo feroz que vemos, numa contínua demonstração de show-off e de megalomania leva a maus resultados, dando às crianças a ideia de que tudo está conquistado, de que têm direito a tudo, já, apenas por 'elas serem elas'. Muito do narcisismo reinante é motivado por estilos educativos errados, mesmo que carregados de boas intenções.

Quando é suposto falarmos com os nossos filhos sobre droga, por exemplo?

Não há um momento preciso – vai-se falando a par e passo, à medida que surgem pretextos ou factos, à medida que eles próprios vão fazendo perguntas, para lá de incrementar os factos protetores que farão com que eles, em face da exposição à droga, não precisem dela: uma boa autoestima, redes de amigos, confiança nos pais, hobbies, esforço, projetos no percurso de vida, no fundo, gosto pela vida e não estar sempre e a desejar outra realidade… tudo isto leva a que as crianças se tornem mais imunes à droga.

A família tradicional já não é o que era. Famílias monoparentais ou até de conjugues do mesmo sexo são uma realidade cada vez mais presente. Considera que esta 'mudança' influencia de algum modo os mais novos?

Chamar 'família tradicional' à família nuclear de 'pai-mãe-filhos' é errado. Foi uma 'tradição' que durou nem meia dúzia de décadas. A família tradicional seria a do neolítico, tribal, de famílias alargadas e de convivência de múltiplas gerações.

As mudanças que se observam mostram quanto uma família é uma entidade dinâmica, positiva, com capacidade de regeneração e de, atualmente com maior facilidade, vencer preconceitos, tabus e situações hipócritas e de sofrimento. As crianças adaptam-se, desde que se sintam amadas, desejadas, não se vejam no meio de conflitos que não lhes dizem respeito e continuem a sentir que têm pai, têm mãe e têm família alargada, amigos, escola e outros ecossistemas de pertença.

Como se explica o divórcio aos mais novos?

Os pais não têm de dar explicações sobre a sua vida íntima Há que separar a relação conjugal, entre o homem e a mulher, da relação parental, que já envolve, essa sim, os filhos. Os pais devem falar ambos com a criança, antes de comunicarem a outras pessoas, para evitar 'fugas de informação', e assegurar que 'se tudo mudou, nada mudou', ou seja, mesmo que o quotidiano passe a ter algumas coordenadas diferentes, a estabilidade emocional, educativa e o amor mantêm-se, bem como o resto das coisas, dos avós à escola, do local onde compra cromos até àquele onde corta o cabelo.

E a morte?

Depende da idade. Antes da idade simbólica, em que a criança está ainda muito agarrada ao concreto, é bom falar da 'estrelinha' e manter a pessoa viva no sentido da presença, de que a está a ver e a gostar (ou não) dos seus comportamentos, de que gostava e gosta dela. É importante ressalvar que a pessoa que morreu não sofre, não tem fome nem frio, ou seja, está bem no que são as necessidades básicas que a criança também sente. Finalmente, falar da pessoa normalmente, com virtudes e defeitos, e ter fotografias no quarto ou nas outras divisões e, sem ser obsessivo, falar-se dos mortos como se fala dos vivos: com naturalidade.

Noutras idades mais velhas, as coisas serão obviamente diferentes – sempre sem mentira, mas com a verdade adocicada e apenas a necessária e suficiente.

Tendo em conta as redes sociais e a revolução tecnológica, que influência está a ter nos mais jovens?

A revolução tecnológica não começou com os computadores… porventura a contagem do tempo, com os relógios, e a invenção da eletricidade foram igualmente determinantes. Os computadores, televisão, telemóveis, Internet, redes sociais, etc., têm tudo o que os grandes fenómenos têm: coisas maravilhosas e coisas péssimas. Tudo depende do uso que o utilizador dá, mas também – e isso tem-se visto ser cada vez mais importante – de quem está por detrás delas faz, designadamente os objetivos manipuladores e de distorção da democracia.

Um dos grandes riscos é serem tão apelativos e fáceis que se tornam viciantes, já sem falar em alguns conteúdos. E quando se está a fazer uma coisa não se faz outra, porque nenhuma tecnologia consegue estender o dia para lá das 24 horas… Além disso, o excesso de ritmos adrenalínicos e de informação vazia e sem consequência, e sem transformação em conhecimento ou sabedoria, desequilibra a pessoa, dando cabo da sua componente endorfínica, de que tanto precisamos, aniquilando a contemplação, a reflexão, o estarmos connosco próprios.

Acha que os media promovem uma sexualização infantil, nomeadamente das raparigas?

De alguma forma, embora sempre o tenham feito. Porventura, agora, de um modo mais explícito e universal. São fenómenos e realidades que não podemos negar, mas podemos tentar regular e, sobretudo, desenvolver nas crianças fatores protetores… mas quando as próprias mães querem ser 'forever young', se 'produzem' e estilizam, será difícil dizer às crianças uma mensagem contrária…

Nunca vivemos tempos de tanto narcisismo, de tanto egocentrismo, de tanto hedonismo

Considera que há uma obsessão com o 'Eu'?

Sim. Definitivamente sim. Nunca vivemos tempos de tanto narcisismo, de tanto egocentrismo, de tanto hedonismo. É o resultado do 'quero tudo, já' e da possibilidade de o ter, e resultado também de cada vez mais coisas serem efémeras, de curta duração, sem profundidade ou reflexão, em que o que conta é o 'agora', pelo que o passado não interessa e o futuro também não. É um dos maiores problemas sociais que enfrentamos hoje.

Esta coisa de viver à conta da 'herança do papá' vai contra o que aprendi e contra as minhas convicções…Pessoalmente, cometeu alguns erros na educação dos seus filhos?

Certamente que terei cometido, ou não seria humano. Nem pai. Ralhei por vezes quando não devia e porventura de forma exagerada, mas – eles dirão se é verdade ou não – foram raridades. Tentei e tento sempre ser justo e compreensivo, mas não deixando passar malcriações ou insolências. Tento dar-lhes exemplos, para lá de valores. Respeito contudo que sigam o caminho de vida que desejarem, porque o percurso de vida deles é deles. Tenho para mim que, na educação deles, não teria alterado muitas coisas. Houve muitas alturas em que, além de pai, também tive de ser mãe. Fi-lo, com muito esforço, mas com o sentido de que, para eles era determinante. Não me arrependo. Espero ter-lhes transmitido sentido ético, a diferença ente o Bem e o Mal, o valor do trabalho, dos outros, da solidariedade, da sociedade, o empenhamento em intervir no espaço privado e público, de não pensar que se tem o direito a tudo – é por isso que sou contra a obrigatoriedade das heranças (salvo quando temos alguém dependente) porque pode levar os filhos a pensarem que não precisam de se esforçar ou de trabalhar para conseguirem ter um nível de vida elevado. Depois de ter uma formação profissional e arranjarem emprego, a vida é deles, para o bem e para o menos bom… esta coisa de viver à conta da 'herança do papá' vai contra o que aprendi e contra as minhas convicções…

Mas voltando à sua pergunta, os melhores juízes serão eles, não eu. Eles e a História…

Intervir sem medo, seja de ministros, poderosos ou mais fortes, é um dever de qualquer ser humano, mesmo que se prejudique, como foi o meu caso em várias instânciasQual é o legado que quer deixar?

Apenas a memória de ter sido alguém que, errando certamente muitas vezes, nunca o terá feito por desonestidade, malvadez ou premeditadamente, ou seja, procurei respeitar os outros. Gostava de deixar a ideia de que ser frugal e defender os valores civilizacionais e éticos é um imperativo… e que intervir sem medo, seja de ministros, poderosos ou mais fortes, é um dever de qualquer ser humano, mesmo que se prejudique, como foi o meu caso em várias instâncias.

A defesa dos direitos das crianças, e das pessoas em geral, bem como dos animais e da Natureza, são uma ideia que considero essencial, à luz dos Direitos do Homem da Revolução Francesa, ou do pensamento de Emanuel Kant. Quero que os meus filhos se sintam livres para fazer o que entenderem das suas vidas, mas que, em momentos de decisão, considerem o que o pai faria, nesse momento.

Quero também ser recordado como uma pessoa que viveu a vida com paixão e a paixão com vida. E que, depois de desilusões amorosas, há sempre a hipótese de reconstruir, encontrar, amar… porque o amor está intrinsecamente dentro de nós. Ficarão, em termos físicos, os livros, as fotografias, os textos, a arte (especialmente a música, mas também a pintura e a arquitetura), que é, afinal, o que de mais sublime e transcendente tem a Humanidade.

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