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"Salazar tinha um certo desprezo pelos portugueses"

A historiadora e autora Irene Pimentel é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

"Salazar tinha um certo desprezo pelos portugueses"
Notícias ao Minuto

06/04/18 por Fábio Nunes

País Irene Pimentel

António de Oliveira Salazar é uma figura incontornável da história portuguesa e que continua a exercer fascínio sobre a população. É um caso semelhante ao de outros ditadores como Adolf Hitler ou Benito Mussolini.

Não é por isso de estranhar o interesse da historiadora Irene Pimentel neste tema. Salazar e a PIDE já deram origem a livros da autora, que volta a debruçar-se sobre o ditador português. Desta vez porém, com um ângulo diferente. 

'Inimigos de Salazar' foi publicado pelo Clube de Autor e lançado no final de março. Este livro de Irene Pimentel destaca os homens das mais diversas áreas da sociedade portuguesa que fizeram frente a Salazar e ao Estado Novo.

O livro deu o mote para esta entrevista de Irene Pimentel ao Notícias ao Minuto, no qual falámos ainda sobre o paralelismo que se pode traçar entre o período do Estado Novo, onde proliferavam várias ditaduras na Europa, e o período que se vive atualmente com o crescimento da extrema-direita e do populismo no Velho Continente.

O percurso de vida de da historiadora e o seu gosto pela política foram outros dos assuntos abordados.

Já escreveu vários livros relacionados com Salazar, o Estado Novo, a PIDE. Porque resolveu agora escolher este ângulo dos inimigos de Salazar, estas várias figuras da vida militar, política, civil?

Eu já tinha dois livros, ou pelo menos dois temas de estudo, que eram por um lado a polícia política do Estado Novo e portanto do regime de Salazar e de Marcelo Caetano, e por outro lado um livro sobre a oposição ao regime desde 1926 até 1974. Mas eram livres bastante académicos. Aquele sobre a PIDE tinha a ver com a minha tese de doutoramento e o outro era bastante volumoso. Vários professores de História perguntaram quando é que fazia um livro mais ágil, por assim dizer, sobre o tema. E resolvi, pegando nesses dois livros e na investigação que fiz para esses dois livros, fazer um livro mais pequeno e mais agilizado sobre os inimigos de Salazar. Portanto é menos sobre as instituições da oposição mas mais sobre as figuras propriamente ditas que se opuseram ao regime.

Este livro acaba por ter esse lado mais pessoal de cada uma dessas figuras.

Exatamente. Embora sejam sempre pequeníssimas biografias, porque houve muitas pessoas, e sejam sobretudo biografias políticas, portanto as opções políticas e de que forma eles atuaram contra o regime ditatorial.

Eu tento dar um pouco uma imagem de todos os representantes dessa luta, muita dela inglória porque muitos nasceram, viveram e morreram em ditadura porque foi de tal maneira longaTemos aqui algumas figuras que a maioria dos portugueses conhece. São os casos de Mário Soares, General Humberto Delgado, Álvaro Cunhal, mas depois temos muitas figuras que não são tão conhecidas.

Muitos deles porque são mais velhos. Muitos deles atuaram já no período quer da República, quer depois da ditadura militar e do salazarismo e muitos até morreram durante o período salazarista e muitos ficaram esquecidos. Há um aspeto muito importante. O facto de ter havido censura, uma censura muito forte, impediu essas pessoas de se expressarem na imprensa ou até publicamente e portanto não temos fontes que nos lembrem quem foram essas figuras.

Eu posso dar o exemplo do Francisco Cunha Leal, que foi claramente uma pessoa que se tornou num inimigo político pessoal de Salazar. Havia um ódio muito grande de Salazar relativamente a ele e é uma inimizade que começa logo na ditadura militar, ali por volta dos anos 30, e que tinha a ver com o facto de Cunha Leal, que era Governador do Banco de Angola, erguer-se contra a política colonial de Salazar. E depois ao longo dos anos foi sempre uma figura que esteve contra Salazar. Muitas vezes ele até era um colonialista, digamos que ele não um crítico da política colonial por si mas da política colonial de Salazar. Mas havia ouras figuras mais jovens, estudantes, trabalhadores mas sobretudo a intelectualidade que ao longo dos anos se foi renovando. Escritores que também foram alvo da ditadura, artistas. Eu tento dar um pouco uma imagem de todos os representantes dessa luta, muita dela inglória porque muitos nasceram, viveram e morreram em ditadura porque foi de tal maneira longa. E sobretudo a censura, a PIDE, eles desapareceram do espaço público e é um pouco fazer o papel da memória.

Notícias ao MinutoO livro 'Inimigos de Salazar' destaca figuras como o General Humberto Delgado ou Mário Soares mas também outros nomes menos conhecidos dos portugueses© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Obviamente a censura teve um papel muito importante porque se calhar muitas pessoas não conhecem a preponderância que essas pessoas tiveram. Desde o 25 de Abril levámos algum tempo a conhecer alguma dessas histórias.

Por exemplo, outra figura que acho que é muito importante e que não se fala muito, ao contrário de Delgado, é o Henrique Galvão. Ele é um figura, que tal com Humberto Delgado, vem de dentro do regime, aliás de tal forma que ele era um dos Tenentes do 28 de Maio e o Estado Novo depois nomeia-o diretor da Emissora Nacional , que era um dos principais meios de propaganda do regime. Ele depois vira-se tanto contra o regime que inclusive inaugura novas modalidades de oposição, como por exemplo a tomada do navio Santa Maria e o desvio do avião da TAP. É um inimigo que depois morre também no exílio.

O Cardoso Pires, e eu cito essa frase no livro, diz que o período mais terrível que foi entre 1965 até 1968, aqueles últimos anos do salazarismo, e lembra-se que a própria censura usava o termo ‘essas figuras desapareceram’. Só para mostrar que havia esse propósito. Era um sinal que dizia à imprensa estes escritores não serão nunca publicados, não haverá entrevistas com eles, nada.

Os Aliados acharam que era preferível Salazar continuar no poder do que uma democracia em que eventualmente o Partido Comunista tivesse mais forçaTemos aqui um leque variado de figuras que foram inimigos de Salazar mas que não conseguiram derrubar esta figura. Mesmo depois de Salazar houve uma continuação do regime. Isso foi algo que aconteceu noutras ditaduras daquele período como na Alemanha nazi ou na União Soviética de Estaline. Porque é que isso acontece? É porque os seus regimes estão muito bem organizados, estruturados que silenciam quase completamente os opositores?

A ditadura portuguesa está bem estruturada e tem um quantidade enorme de ferramentas para não ser derrubada. Para falar só em algumas, as próprias Forças Armadas que Salazar conseguiu domesticar a partir de 1937. E não é por acaso que quando uma parte das Forças Armadas se revolta contra o regime devido à Guerra Colonial e é quando se dá o 25 de Abril. Mas depois tinha as polícias todas. Tinha a polícia política, que servia sobretudo para reprimir e neutralizar uma minoria, que era a minoria que atuava organizadamente, como o Partido Comunista e outras organizações. E mais tarde com o marcelismo, que não é focado no livro, surgem outras organizações de luta armada e da esquerda radical.

A censura é outro dos factores e também outra grande instituição que penso que apoiou muito o regime, que foi a Igreja Católica. A Igreja e o Estado Novo têm uma matriz comum doutrinal e ideológica e aquilo que verificamos é que não só esta matriz é comum ao Estado e à Igreja, como a ditadura é quase sempre apoiada pela hierarquia da Igreja. Não quer dizer que tenha sido apoiada pela Igreja Católica no seu conjunto. A partir dos anos 60 claramente se vê que começam a haver divergências. No caso da hierarquia, há a grande divergência em 58 do bispo do Porto, mas sobretudo depois de católicos, nomeadamente jovens estudantis e operários. E isso também é muito importante.

No entanto, não foram só estas questões. Internacionalmente o Estado Novo pôde manter-se para além da derrota dos fascistas e dos nazis. Em 1945 termina a guerra, são derrotados os fascistas e os nazis pelos aliados ocidentais, e toda a oposição pensou que os Aliados não iriam deixar que o franquismo aqui ao lado e o salazarismo permanecessem. Mas não se aperceberam na altura que estávamos a entrar numa nova fase, noutra guerra, a Guerra Fria. Aí os Aliados tiveram como principal adversário a União Soviética. Em 1949, quando Salazar consegue que Portugal seja um dos primeiros países da NATO, a partir daí ele está praticamente garantido porque os Aliados acharam que era preferível Salazar continuar no poder do que uma democracia em que eventualmente o Partido Comunista tivesse mais força.

O nazismo tem grandes diferenças. Além de ter o mesmo anti-comunismo, o mesmo anti-liberalismo, a anti-democracia, tem uma componente racial que o salazarismo não teve. E por exemplo, quer a Igreja Católica e a Igreja Protestante não têm a preponderância no nacional-socialismo alemão, onde o poder gira todo em torno do Führer. E depois há muitas rivalidades. Eu não diria que o nacional-socialismo fosse um regime unificado. Era um regime que assentava em muitos pequenos poderes, todos com rivalidades uns com os outros, sob a arbitragem de Hitler. A questão do racismo, e sobretudo do racismo anti-semita, vem diferenciar muito o nacional-socialismo alemão do salazarismo português. E depois também há a questão expansionista. Enquanto que a Alemanha e a Itália queriam a expansão, a atitude de Portugal era completamente diferente, era mais conservadora, de manutenção das colónias que já tinham e por outro lado de manutenção da neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial, esperado passar entre os pingos da chuva e realmente conseguiu.

Salazar parece ter conseguido jogar sempre bem. Apesar da relação aos outros regimes fascistas, ele conseguiu manter sempre um distanciamento suficiente ao ponto dos Aliados não acharem necessária a mudança de regime.

Ao ponto dos académicos no estrangeiro, quando começam a analisar o salazarismo, têm tendência para dizer que é um regime autoritário, mas não se referem tanto a ele como a uma ditadura e sobretudo diferenciam-no muito de outros regimes fascistas, e dando quase a entender que era uma democracia musculada, orgânica. Não estou muito de acordo com isso mas essa imagem foi passada por Salazar e teve uma eficácia. Ele refere o nazismo, o fascismo italiano nos ano 30 e 40 em textos e entrevistas, mas diz que o caso português é completamente específico com algumas parecenças mas com muitas diferenças. E isso foi muito eficaz até para com a própria oposição porque no pós-guerra teve dificuldade em analisá-lo concretamente da forma que era e foi um regime terrível para a maioria dos portugueses devido à longevidade. O nacional-socialismo alemão cai ao fim de alguns anos, ao contrário do que se pensava que ia ser o Reich dos mil anos, e este manteve-se até 1974. Muito reforçado pela Guerra Colonial, que depois vai ser a causa do derrube do Estado Novo.

Salazar tinha um certo desprezo pelos portugueses. Chegou a dizer que não eram rigorosos, que tendiam sempre a esperar que as coisas viessem de cimaFoi um regime que de facto manteve-se durante muito tempo e abrangiu várias gerações. Muitas gerações foram influenciadas desde muito cedo. Esse foi um dos fatores que contribuiu para solidificar o regime e para que se mantivesse durante aquele tempo?

É um processo de ciclo vicioso. Eu acho que outra das características de Salazar é que percebia bastante bem de que forma os portugueses eram de uma forma geral. Temos de nos lembrar que a população daquela altura não tinha nada a ver com a população portuguesa atual. Era uma população muito rural, analfabeta, muito influenciada pela Igreja Católica. Salazar tinha um certo desprezo pelos portugueses. Chegou a dizer que não eram rigorosos, que tendiam sempre a esperar que as coisas viessem de cima. Mas ele conseguiu que esse processo continuasse, ou seja transformou-se quase num código genético que podia não estar lá no início mas que ele foi reforçando. Penso que essa tendência de esperar que as decisões venham de cima é algo que ainda se mantém. Qualquer dia já temos tantos anos de pós-ditadura como de ditadura e não podemos estar sempre a culpabilizar o antigo regime pelo que se passa hoje. Mas é verdade que as mentalidades são o que mais demora a mudar. Demoram a fixar-se e depois demoram muito a transformar-se.

Notícias ao MinutoIrene Pimentel considera que a Guerra Colonial "ainda não foi trabalhada na história" portuguesa© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Destes inimigos de Salazar, é possível eleger uma figura que ele temesse mais?

Eu diria que Delgado, a dada altura, é considerado um inimigo principal, tanto que é assassinado pela PIDE. Como eu também refiro no livro, segundo a minha interpretação, a PIDE era um Estado dentro do Estado e Salazar podia não ter sabido o que iria acontecer e sabido apenas posteriormente de que forma é que se lidou com o caso de Delgado, mas havia aquela vontade de neutralizá-lo. Penso que ele é uma dessas figuras mais temidas, e isso pelas eleições de 1958. Mas Salazar também odiava Cunha Leal, por exemplo. É um caso diferente porque Cunha Leal era um conservador, mas era um conservador que Salazar nunca conseguiu levar para o seu lado. Penso que também o Partido Comunista porque ele era profundamente anti-comunista, e aí poderá falar-se de Cunhal, mas também dos dirigentes anteriores, como Bento Gonçalves.

Ditadores? Fascina como é que um ser humano sozinho tem um papel tão preponderanteExiste um certo fascínio por figuras como Salazar, Hitler. Basta ir a uma livraria e vemos na montra livros sobre estas figuras. Porque é que isso acontece?

Porque foram figuras individuais que tiveram uma preponderância tão grande na história, que moldaram não só regimes como tiveram consequências terríveis para as pessoas de um modo geral. Eu própria digo que estou fascinada, não no sentido de gostar das personagens mas sinto-me um pouco fascinada por elas tanto que ando a estudá-las há vários anos. Tentar perceber como é que Estaline, na União Soviética, e o Hitler, na Alemanha nazi, destruíram tantas pessoas. Isso não aconteceu com Salazar, mas também aconteceu com Franco, por exemplo. Fascina como é que um ser humano sozinho tem um papel tão preponderante. Claro que sempre com muitos cúmplices mas politicamente como é que têm o poder que tiveram.

Pode se dizer que se trata de um fascínio pelo próprio poder em si?

É claro. O poder político. A mim fascina-me. É ele que nos governa e é por causa dele que pagamos impostos, que lutamos para que se mantenha ou, pelo contrário, para que seja derrubado. E eu sou de uma geração muito politizada, até porque vivi naquela fase mais crucial da idade adulta ainda jovem do 25 de Abril. Eu tinha 18 anos em 1968.

A Guerra Colonial ainda é um assunto relativamente tabuEm alguns países, como na Alemanha, parece ser desconfortável falar dos períodos em que estes regimes fascistas dominavam. Aqui em Portugal não parecemos sentir-nos tão desconfortáveis em falar da ditadura, abordamos esse tema de forma mais aberta.

Mas há uma coisa em que diria que não estamos com essa postura mais cómoda, que é a questão da Guerra Colonial. Penso que ainda não foi trabalhada na história, na memória de gerações porque foi muito traumática para gerações de pessoas que participaram na guerra e esses normalmente foram silenciosos relativamente aos seus filhos. Mas agora alguns falam mais com os netos. Isso aconteceu porque o 25 de Abril veio alterar, por rutura, de um dia para o outro a realidade. Não foi só a democratização, foi a independência das colónias, a entrada na Europa. Isso provocou um certo silêncio. Muitas das pessoas que participaram na Guerra Colonial de um dia para o outro passaram de heróis a vilões e portanto remeteram-se ao silêncio.

Sei que a Irene já sugeriu a criação de uma Comissão da Verdade para apurar o que se passou nas colónias?

Acho que é uma tarefa dos países independentes porque houve massacres. As guerras coloniais foram muito violentas. Em Portugal, e falo sobre isso no meu livro anterior ‘O Caso da PIDE/DGS’, acho que já passou o tempo da Comissão da Verdade e da justiça. É o tempo da história. Ainda falta fazer o trabalho histórico e do seu relacionamento com a memória. Ainda não está muito estudado. Sobre a repressão da ditadura, há muitas peças de teatro, há muitos filmes, há depoimentos, há memórias de pessoas individuais, há livros de história. A Guerra Colonial ainda é um assunto relativamente tabu. Já devíamos estar a fazê-lo pois já passaram 44 anos, mas se calhar ainda tem de passar mais algum tempo.

A Irene é filha de pai português e de mãe suíça, estudou no Liceu Francês. Comparando com grande parte da população que viveu durante o Estado Novo, de que forma é que ter acesso a uma cultura diferente e estudar num sítio onde havia mais liberdade do que nas outras escolas portuguesas, ajudou a que a Irene tivesse um pensamento diferente?

Penso que isso influenciou. Eu tenho uma tendência para o cosmopolitismo, sou anti-nacionalista. E como a minha mãe é suíça, e sempre tive parte da família na Suíça, sempre convivi com essa família também. Mesmo cá em Portugal também estava num microcosmo. Todos os meus primos andavam nos liceus portugueses e eu lembro-me que havia uma grande diferença. Por outro lado, sempre gostei muito de história porque havia uma grande liberdade de ensinar história no Liceu Francês. Nós podíamos pegar na questão do Marxismo, quando aqui ninguém pegava. Apesar de ser um liceu conservador, era um liceu de uma democracia. Apesar da disciplina, havia mais liberdade. Deu-me um olhar crítico, de interpretação a partir de fora e talvez isso tenha contribuído, sim.

Gerigonça? Acho muito interessante. É um caso completamente contrário ao que se está a passar no resto da EuropaEm que momento é que a Irene percebeu que tinha gosto pela política? Foi ainda antes de 1968?

Eu tinha gosto pela história política. Depois houve algo que me influenciou muito. Eu tinha um diário e fartei-me de escrever coisas contra o racismo logo aos 13 anos. A desigualdade a que assistia em Portugal também era algo que me incomodava. Isto também tem a ver com a minha família. Na Suíça o meu avô era ferroviário, ao passo que o meu avô em Portugal tinha cinemas e laboratórios. No maio de 68 eu estava no meu último ano no Liceu Francês e ia fazer o exame de saída, o célebre Baccalauréat, e sentia-me, culturalmente, muito próxima de França. Seguia o que se passava lá. O maio de 68 influencia-me depois porque ainda faço essa exame, em França não fizeram. Fui estudar para a Suíça e ao fim de um ano e meio fui para Paris. Foi um período que teve muita influência na minha maneira de estar, na minha mentalidade, como também influenciou muitas pessoas da minha geração.

Depois do 25 de Abril teve um corte com a vida política mais ativa. Sentiu-se desiludida?

Senti-me completamente desiludida. Ainda agora quando o Manuel Reis morreu, houve este debate em torno dos anos 80. Eu não vivi nada disso. Nesse período eu estava a ver o refluxo. Eu saí da vida partidária em 1978 e no próprio dia em que saí, disse a uma amiga minha que sabia pela primeira vez o que era a liberdade de pensamento, mas que esse tipo de liberdade era muito duro. De repente senti-me despida só a contar comigo. Esse período seguinte não foi muito feliz para mim. Mas também aconteceu com muitas pessoas. Foram períodos de isolamento porque nós tínhamos uma socialização com os partidos e a vida política, e de repente ficámos sozinhos. Como dizia o Zeca Afonso, ele era o seu “próprio comité central” e que isso às vezes era muito duro. E eu também passei a ter o meu comité central, em vez de obedecer ou seguir os outros.

A sua geração era muito politizada. O que lhe parece a geração atual?

A minha geração é aquela que reage mais contra a autoridade dos pais e dos ascendentes e agora não é bem assim. Não é necessário ter essa luta dessa forma e acho que isso às vezes faz falta. As novas gerações são sempre diferentes, são menos ideologizadas e partidárias, e ainda bem. Eu acho que têm todos à partida o seu próprio comité central e espero que não sejam atreitos aos populismos e a esse tipo de coisas. Depois são gerações que admiro porque estão ligadas a um humanismo que nós não tínhamos naquele período. É também uma geração muito mais sensibilizada para a questão da ecologia e do clima até porque percebe melhor as transformações que aconteceram. E, por exemplo, eu gosto muito do que se está a passar agora nos Estados Unidos em que uma juventude muito nova está a reagir a questões que têm a ver com eles, como é a questão das armas. Irem para a escola e não correrem o risco de serem mortos. Eu que não gosto nada do Trump, acho fabuloso o que se está a passar. Mas na Europa também. Contra o racismo, a xenofobia.

Neste momento temos uma solução política em Portugal diferente do que já se viu no passado. Já passámos mais de metade do mandato. Como é que a Irene está a analisar a Geringonça?

Eu acho interessantíssima. Cá está uma mudança, que não é revolucionária, não é uma mudança através de golpe de Estado e é uma mudança que ninguém esperou. Nunca mais me vou esquecer daquela frase do Jerónimo de Sousa na noite das eleições, a dizer que o PS só não governava se não quisesse. Eu ouvi aquilo e disse ‘Há aqui qualquer coisas que está a gerar uma grande mudança’. Mas não percebi o efeito que isto ia ter, fomos depois percebendo. Acho muito interessante. É um caso completamente contrário ao que se está a passar no resto da Europa. Uma das coisas que eu temo um pouco é esta atitude anti-políticos, que eu não gosto.

A nossa própria ditadura não teve essa componente racial, teve uma imperial. A xenofobia e o racismo são coisas que ainda não são muito bem vistas aqui, ao contrário do que sucede em França já há muitos anos ou na AlemanhaTendo em conta a questão do Brexit, o projeto europeu vai sempre sair mais fragilizado. Mas está condenado?

Espero que não esteja condenado. É um projeto muito interessante. Mas foi dominado pela onda neoliberal, do ponto de vista financeiro e económico. Em vez de caminhar para uma Europa mais social, preocupada com a unidade a nível de impostos. Em cada país, as pessoas estão muito afastadas do projeto europeu e nem sabem muito bem o que representa, o que se discute lá. É necessária mais Europa cultural, social. Mas face ao escândalo da Cambridge Analytica, já se fala na possibilidade de novo referendo do Brexit.

Atualmente temos um paralelo entre aquele período da Segunda Guerra Mundial, com várias ditaduras na Europa, e agora não havendo ditaduras, assistimos a um crescimento da extrema-direita, da intolerância, de xenofobia. Não estamos a aprender com a história?

É sempre aquela velha questão de ‘E para que é que serve a história?’. Eu acho que a história de facto nunca se repete. Se temos parecenças com os anos 30 do século XX, e claramente temos devido à crise do regime liberal, da democracia, a história pode sobretudo indicar para onde não queremos ir. Uma das coisas que a história nos indica é relativamente aos refugiados. Durante a Segunda Guerra Mundial houve muitos refugiados que não encontraram refúgio em muitos países da Europa, vieram a ser apanhados e muitos deles foram chacinados. Nós hoje sabemos isso, vamos maltratar os refugiados que aí vêm? Não os vamos integrar noutras zonas? Amanhã podemos ser nós. A história serve para isso. Mas só se as pessoas a conhecerem e se se interessarem por ela.

Em Portugal, não há partidos de extrema-direita e populistas no Parlamento. Porque é que continuamos a ser uma exceção, quando comparado com muitas realidades europeias?

Acho que tem a ver com o facto do 25 de Abril ser recente. Houve uma diabolização do antigo regime e sobretudo nenhuma organização parlamentar de direita, PSD e CDS, por exemplo, nenhuma delas defende o regime ditatorial. Ninguém defende a PIDE. Depois a nossa própria ditadura não teve essa componente racial, teve uma imperial. A xenofobia e o racismo são coisas que ainda não são muito bem vistas aqui, ao contrário do que sucede em França já há muitos anos ou na Alemanha. Além disso, também somo um país de emigrantes. A tendência é para sermos ou podermos ser alvos da xenofobia lá fora e aqui não sermos assim. Por outro lado, ainda não houve ataques terroristas cá.

Já tem alguma ideia para um futuro livro? Vai continuar a debruçar-se neste tema de Salazar e do Estado Novo?

Eu vou voltar à PIDE. Todas dizem-me ‘Que horror!Livra-te disso!’, mas vou voltar porque interessam-me dois aspetos. Fala-se do Silva Pais, o Rosa Casaco também é falado, o Casemiro Monteiro porque matou o Delgado, ou pelo menos foi condenado por matá-lo. Eu vou pegar nessas figuras mas vou tentar ver de que forma se fabricou um PIDE. E depois por outro lado também interessa-me o relacionamento com agências secretas de países democráticos porque comecei já a estudar a questão da espionagem durante a Segunda Guerra Mundial, mas interessa-me o pós-guerra. O relacionamento com os franceses, com a CIA.

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