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"Lisboa tem uma boa decadência. É como uma velha sem dentes"

Escritor e eterno viajante, Tiago Salazar é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Lisboa tem uma boa decadência. É como uma velha sem dentes"
Notícias ao Minuto

12/03/18 por Fábio Nunes

Cultura Tiago Salazar

Viajar é um verbo que marca a vida de Tiago Salazar, assim como escrever. São dois lados da mesma moeda que com grande frequência se conjugam. Escritor, jornalista freelancer e viajante, Tiago Salazar já publicou diversos livros de viagens e chegou mesmo a apresentar um programa de televisão sobre o tema, 'Endereço Desconhecido'.

Já percorreu vários países do nosso globo, mas não tem como obsessão conhecer todos. Mais recentemente tem percorrido Lisboa a conduzir um tuk-tuk. Como faz questão de salientar, gosta de dar a conhecer a cidade aos turistas.

Uma experiência que já lhe rendeu diversas histórias, muitas das quais podem ser lidas no 'Moturista Acidental', um livro que relata esta experiência profissional de Tiago, que de resto continua e que o Notícias ao Minuto testemunhou em primeira mão. Sim, é verdade que tivemos oportunidade de andar com o Tiago de tuk-tuk no caminho para o British Bar, no Cais do Sodré, onde decorreu a entrevista, e que não foi escolhido ao acaso como poderá ler a seguir.

Antes de a entrevista começar, o Tiago ligou-nos a dizer que estava com um problema no tuk-tuk. É elétrico e a bateria estava a dar as últimas. "Se calhar vais ter de me ajudar e empurrar um bocado", e assim foi. Não sem que antes andássemos à procura do tuk-tuk do Tiago. Estava a andar a 5 ou 7 km/h, mas não podia parar. Fomos desde o Cais do Sodré até pouco depois da Praça do Comércio à procura do  entrevistado. Lá o encontrámos e demos mesmo um empurrãozinho ao tuk-tuk... durante alguns metros. Ajudou o suficiente. A entrevista, como poderá constatar, foi menos sobressaltada. 

Quando surgiu a paixão pelas viagens? Quando percebeu que podia começar a escrever sobre isso?

Acho que ter crescido ao lado do aeroporto, pode parecer uma coisa pouca, mas ver os aviões ali a aterrar e a descolar a toda a hora gera curiosidade numa criança. Depois ter uma biblioteca em casa com muita literatura de viagens é o passo para a escrita. Respondendo à primeira pergunta, eu diria o aeroporto, a proximidade e a curiosidade de ver onde iam parar os aviões. Agora o aeroporto tem uma vigilância imensa, mas na altura era fácil passar por baixo de uma rede e entrar ali ao pé dos aviões como se fosse África ou Cabo Verde, onde já vi coisas incríveis com as pessoas a irem para perto da pista quando os aviões aterram, como se chegasse um autocarro. Na altura, no final dos anos 70, já sou um bocado velho, para mim era normal ir com os meus amigos da rua apanhar latas para a coleção, latas de várias partes do mundo. Fazer uma coleção de latas acho que também influenciou. Eram latas de vários países. Imagina uma lata do Japão. Para uma criança de 10 anos isso tinha um certo impacto. Ou da União Soviética, isto durante a Guerra Fria. O aeroporto funcionava quase como o meu recreio. Atravessava a rua, descia até à rotunda do Relógio e estava no aeroporto.

Depois, livros de viagens em casa. 'As Aventuras de um Rapaz nas Florestas do Amazonas', 'O Índio Orsovay', 'Robinson Crusoé'. Esta literatura de viagens está ali e é das primeiras com que tenho contacto, mais 'As Viagens de Gulliver'. E depois, claro, há alguma literatura portuguesa que aparece já na escola.

Tudo isto parece que não mas é muito apaixonante para uma criança. A dimensão de um avião para uma criança é uma coisa colossal. Uma espécie de um pássaro raro. Um dia até achei que era possível enfiar-me no trem de aterragem e entrar para dentro do avião. Ainda bem que me viram a fazer aquilo, senão tinha-me transformado em salamandra siberiana.

Visitar os países todos do mundo não é ficar a conhecer os países todos do mundo, para isso uma vida não chega. Por isso prefiro ir conhecendo o melhor possível aqueles que já me apaixonaramQual foi a sua primeira tentativa para começar a escrever sobre viagens?

A escrita também acho que é anterior a tudo o que uma criança possa fazer, tirando se calhar um bebé que brinca com um livro. A minha avó era professora primária e incentivou-me a leitura. Aliás, antes de entrar para a escola já tinha tido acesso à aprendizagem da leitura e aquilo é um mundo novo. É um mistério permanente, que nunca terá solução. São sempre enigmas que vêm da leitura. Quem escreve tenta desvendar, quem lê tenta entrar no espírito de quem escreve para tentar desvendar.

A minha avó Maria José foi fundamental e o meu pai com a sua coleção de livros, não é? E depois o facto de morar num prédio só de jornalistas. Em Lisboa, na altura, construíram vários prédios correspondentes a vários trabalhos. Jornalistas, médicos, arquitetos. Naquele bairro onde morava era assim. Os jornalistas eram os meus vizinhos que me tratavam por sobrinho. Portanto aquilo era uma coisa que interferia com a minha vida diária. O meu quotidiano de aluno era paralelo ao dos jornalistas do meu prédio. Invariavelmente passava o final do dia em casa do Afonso Serra ou do Adelino Alves, ou do Fernando Ávila, que eram os jornalistas daquele prédio e os grandes jornalistas de Portugal daquela altura. Eu tive essa felicidade de estar ali lado a lado. E imagina, além da biblioteca que tinha na minha casa, tinha as dos meus vizinhos jornalistas.

O meu começo no jornalismo vem daí porque o meu vizinho do lado, o Adelino Alves, propõe-me como estagiário do Semanário, isto em 1991. Aterro no Semanário e ao fim de poucas horas estou a ir fazer um trabalho, mas convencido de que vou fazer um trabalho de estafeta. Mas tive de fazer trabalho de jornalista e assim começou aquilo a que se chama de tarimba. Ter de trabalhar todos os dias, primeiro no Semanário e depois no Diário de Notícias e foram vários anos na imprensa, ou em semanários, diários, revistas ou em projetos de televisão. O jornalismo de viagens só aparece como uma atividade de tempo inteiro em 2003, porque há uma revista que aparece com uma proposta de grande repórter de viagens. E fiquei 27 meses a trabalhar nessa revista, praticamente sem parar. A viajar constantemente. Fiz mais de 50 países nesse período. Depois divorciei-me da revista e encetei uma vida de freelancer que conservo e conservarei. Já tinha descoberto, mas não tinha ainda realizado firmemente. Adapto-me bem à vida ao natural, por isso é que gosto da rua.

Em quantos países já esteve?

Isso é impossível de responder porque eu não fiz a contabilidade.

Uma estimativa.

Uma vez no Facebook surgiu-me uma daquelas opções para dizer os países e ia em 94, mas podem ser mais. Houve uma altura em que ainda me entusiasmei com a ideia de fazer os países todos, mas depois desisti porque não é a minha 'praia'. Visitar os países todos do mundo não é ficar a conhecer os países todos do mundo, para isso uma vida não chega. Por isso prefiro ir conhecendo o melhor possível aqueles que já me apaixonaram. O Brasil, a Índia, Sri Lanka, a África do Sul, o Botswana, a Namíbia, Portugal. Eu achava que conhecia Portugal e desde que voltei a Lisboa há dois anos, estive emigrado na Holanda, comecei a viajar em Portugal e estou perfeitamente satisfeito com as minhas viagens no país. Nos últimos dois anos só fiz duas viagens para fora de Portugal. Portanto, um viajante de longo curso também pode parar um pouco. Não são anos sabáticos, são experiências. Para já uma de literatura, de crónicas de viagens e outra que é um romance, 'A Escada de Istambul. Resolvi parar porque também já estou a escrever outro romance. É incompatível viajar com aquilo que a literatura pede. Não gosto de andar a transportar o livro daqui para ali. Estou a escrevê-lo. Durante quanto tempo? Não posso dizer.

Notícias ao MinutoA paixão pelas viagens surgiu quando Tiago Salazar ainda era criança © Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Como prepara as suas viagens? Que objetos são indispensáveis?

Eu não diria para mal dos meus pecados porque não sou católico praticante, mas o iPhone é uma ferramenta de trabalho. Preciso deste dispositivo e aqui tenho tudo o que preciso como jornalista ou como repórter, ou como viajante, que é uma máquina de fotografar, um ditafone e as redes sociais e a internet. É quase um mini-computador e faz-me falta. Isto é prático. Mais romântico... Um livro, algum há-de ir. Pode não ter necessariamente a ver com o país para onde vou. E depois uma mala pequeníssima, onde tento pôr o puramente essencial. Cuecas, poucas porque eu vou lavando. Não é por ser porco. Uma bagagem restrita também é importante.

Lisboa tem uma boa decadência, de quem envelheceu. Não é necessariamente mau. Há velhas aristocráticas que não têm dentes ou têm dentes de ouro ou postiços. Lisboa é como uma velha sem dentesO bloco de notas deve ir sempre também, calculo.

Vai, mas isso não tem marca. Aliás, aqueles antigos da Sebenta são os meus preferidos. Aqueles da Moleskin estão muito caros. E lápis Viarco.

Qual a viagem que mais gostou de fazer ou que mais o marcou?

A Namíbia foi de certeza um dos destinos que mais me marcou, a ponto de ter escrito num livro assim de forma romântica, que "um dia quando morrer levem as minhas cinzas para o Fish River Canyon". Dá um trabalho do caraças! Gostei tanto da Namíbia. Também gostei muito da Índia, que conheci. Não conheço a Índia toda, nem nada que se pareça. No Brasil também há lugares fenomenais. Chapada dos Veadeiros, por exemplo, é dos sítios mais lindos na Terra. Fernando de Noronha também. O Sri Lanka também foi um país que bateu fundo, sem conhecer as Ilhas Andamão, que pertencem à Índia. Foi só o que falhou naquela viagem. Kandy, aquela montanha. O orfanato dos elefantes é uma coisa...Imagina a relação dos tratadores com os elefantes. Tratam-nos como crianças, como bebés desprotegidos. Muito bonito. Adoro Cabo Verde e Portugal, obviamente. Estará sempre no topo. Não digo que é o país que mais gosto no mundo porque não é verdadeiro. Lisboa é a cidade que mais gosto no mundo. Já morei em Londres, Amesterdão. Mas é esta! Tem tudo o que eu gosto. Está perto da praia, tem um bom clima, é pequena o suficiente para não ser uma aldeia. Tem história, tem decadência. Uma boa decadência, de quem envelheceu. Não é necessariamente mau. Há velhas aristocráticas que não têm dentes ou têm dentes de ouro ou postiços. Lisboa é como uma velha sem dentes. Ou então com dentes de ouro de marca chinesa.

O que procura quando viaja para um lugar, o que mais o cativa? São as pessoas, a história?

As pessoas serão sempre mais importantes. Sejam vivas que me mostram a cidade como eu faço aqui e isso é muito importante, sejam as que morreram e deixaram livros, textos, memórias. Os lugares são sempre energia humana. Mesmo quando vais a um lugar aparentemente estéril, só por lá estares, já estás a dar energia ao lugar. Nunca há lugar nenhum da Terra onde tenhas estado que possas dizer que não foi um ser humano que contribuiu ou alguém que, pelo menos, te tenha levado lá. Eu não sou nenhum descobridor, desbravador como os nossos antepassados foram. Eu faço isso à minha maneira. Todos os dias faço isso em Lisboa. Por melhor que conheça a cidade não a conheço toda.

Houve sempre guias extraordinários. Esta atividade de guia atrai-me muito porque acho que é muito importante para quem nos visita. Eu tive experiências fantásticas com guias apaixonantes, que gostavam do que faziam e isso mudou o meu caminho, a minha forma de olhar. Se eu puder fazer isso a alguém que eu passeio cá, tanto melhor. Porque isso é o que está aqui à nossa disposição. É como tu a escreveres. A nossa pequena importância passa por aí. Quando faço alguma coisa, posso estar muito empenhado ou desmotivado. Por exemplo, eu tive um episódio muito triste como entrevistador com o José Rodrigues dos Santos, que me pareceu um verdadeiro idiota, porque ele achava que as perguntas que lhe estava a fazer eram, como ele dizia, 'chapa cinco', ou então aquela é 'chapa três'. Queres coisa mais desagradável!

Imagino que não lhe faltem histórias para contar das suas viagens. Qual a mais rocambolesca? Sei que chegou a correr perigo de vida.

É bastante deplorável que um indivíduo que presta um serviço público, nomeadamente um taxista, te intimide e te tente extorquir dinheiro, e passe da extorsão para a agressão. Mas parece que na Rússia essa era uma das práticas, não deveria ser de todas as companhias de táxis, mas tive azar. Entrei num que não devia ter entrado e podia ter corrido mal. Lá por obra do destino, conseguimos divergir. Eu estava com um fotógrafo. Ele foi para um lado, eu fui para o outro e o gajo ficou na dúvida. Mas foi uma coisa insana porque podíamos ter sido baleados. Ele ameaçou-nos com uma pistola porque não queríamos pagar a quantia que ele nos estava a extorquir, naturalmente não é? Eu não pude chamar a polícia e não tive tempo para nada. Foi um episódio triste. De resto, não acho que tenha corrido risco de vida, mas podia ter levado um tiro e não seria agradável. Risco de vida, não. Já tive situações desagradáveis em aviões, um motor que rebentou, uma tempestade de tal ordem que parecia que o avião ia partir-se ao meio. É assustador. Estás num ambiente vulnerável.

Uma boa e rocambolesca. Andava a fazer o transiberiano com a minha mulher. O comboio vai de Moscovo até Pequim ou Vladivostok. Nós fizemos a viagem até Pequim. Em Irkutsk, saímos numa paragem para almoçar. À hora em que nos tinham dito para voltarmos, o comboio não estava lá. Eu percebi passado um bocado que o fuso horário mudou e que o horário do comboio mudou. O indivíduo disse mal a hora de embarque, mas as pessoas que estavam com ele, voltaram quando ele percebeu isso. O comboio continuou, o homem não teve o cuidado de ver se estávamos no comboio e tivemos de improvisar. Imagina o que é perder um comboio na Sibéria, sem documentos, sem dinheiro. Saímos da estação, os taxistas estavam ali a rondar, viram duas pessoas ali perdidas, largadas no nada. Claro que tentaram ganhar o mês, não era o dia, porque a próxima estação ficava a cinco horas de viagem. O taxista que nos levou foi um anjo. O siberiano salvou-nos de passarmos um mau bocado. Já viste o que é fazer uma hora de táxi, de Lada, tendo chegado com uma hora de atraso, perdemos mais uma hora ali a tentar falar. Eu não sei falar russo e inglês ninguém falava. Dizia três ou quatro palavras em russo e de repente chega aquele taxista, agarra-me no braço, puxa-me. Não sabia bem se era uma coisa boa ou má, até entrar no carro. Mas levou-nos à estação a seguir, reembarcámos e foi uma história inacreditável.

É claro que num lugar que é uma maravilha se for alvo de garimpo para lá do limite, acabou-se a pepitaHá algum país ou viagem que queira muito fazer e que ainda não tenha feito?

Certamente há. Há um lugar que espero visitar em breve que é a ilha da Páscoa. Há pouco tempo ofereceram-me um livro de geografias sagradas, embora possa dizer que para mim qualquer chão possa ser sagrado, nós é que o fazemos sagrado. Mas aquele livro tem entre vários lugares, Stonehenge, a rota Inca no Peru, que fiz, e tem a ilha da Páscoa, que é um dos lugares mais remotos do mundo e despertou-me a curiosidade. Desde que não seja uma coisa que depois chego lá e penso: 'Pronto, já aproveitaram isto para o mau turismo'.

Como surgiu a ideia para o programa 'Endereço Desconhecido'?

O 'Endereço Desconhecido' foi uma ideia minha com o nome de outra pessoa. Um programa que me mostraram com esse nome com outros conteúdos. Eu tinha escrito já três livros de viagens. 'As Viagens Sentimentais', 'A Casa do Mundo' e 'As Rotas do Sonho' e pensei porque não fazer, pelo menos com a 'A Casa do Mundo' que era centrada na Europa, um programa naquela toada que se viu. Aquilo sou eu. O jornalista que, também fui nesse programa, é assim. Sou informal. Gosto de conhecimento e podemos estar a falar de certo assunto e sair algo mais erudito, por outro lado evito que isso seja dito de forma inacessível. Houve dificuldades porque eu nunca tinha feito televisão, a apresentar. Já tinha feito guiões, dramaturgias e textos para televisão avulsos. No 'Endereço Desconhecido' fiz as duas coisas. Acho que no chamado cômputo geral correu bem. Não voltei a fazer porque não houve possibilidades financeiras. Os bons programas de viagens são caros e também foi descontinuado porque a RTP 2 teve um período de alta carência e a terceira série que podia talvez ter acontecido não se concretizou.

E porque escolheu como destino o Brasil para uma das séries e para a outra alguns dos últimos países a entrarem para a União Europeia (UE)?

O primeiro programa foi sobre os últimos 12 países a entrarem para a UE. Em relação ao Brasil foi uma ideia que até saiu espontaneamente numa conversa no 'Só Visto' e depois acabei por cimentá-la. Porque não o Brasil? É um país tão pouco conhecido até dos próprios brasileiros. Os portugueses que acham que por conviverem com as novelas e até com a música brasileira conhecem o Brasil, não podem dizer isso. Eu que fiz essa viagem não posso dizer isso. O Brasil é um esplendor, é um país continente, é uma potência, mal governado, sim, infelizmente. Devassado, sim, cheio de erros, vícios. Mas ainda assim dos países mais criativos, intensos e passionais que já conheci. Próprio da gente. Os brasileiros não são todos iguais. Se visitares o Brasil no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro não encontras os mesmos traços de personalidade.

Notícias ao MinutoTiago tem aproveitado para conhecer mais profundamente Portugal nos últimos anos© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Como vê a massificação do turismo em lugares que antes não tinham sido invadidos pelo turismo e que mantêm a sua beleza natural, intocada, outros que continuam ser belos mas que, entretanto, foram invadidos por turistas?

Essa é provavelmente uma das questões mais importantes no turismo, porque sabes que o turismo para algumas pessoas é pejorativo. Não acho que o turismo seja pejorativo, mas acho que o turismo sem nexo, sem regras e sem critérios vai criar dificuldades ao que se quer conservar. São ultra-necessárias.

Em Lisboa, que subiu enormemente a sua taxa ocupação e de visitação, tudo o que tem aparecido a galope são negócios oportunistas, de tuk-tuks, de passeios turísticos, de alojamento local. E quando digo oportunistas não quero ser pejorativo, é oportunista porque há a oportunidade de o fazer. Se for feito sem qualquer critério e podia falar apenas da animação turística onde se incluem os tuk-tuks, houve um erro crasso que se pode vir a pagar caro. Como é que se consegue agora manter quotas de licenciamento, quando a cidade de repente se tornou pasto para todo o tipo de veículos. Como é que se atribuem licenças, com que critérios? A quem conhece a cidade, a quem presta um serviço impecável? A quem tem conhecimentos históricos, de línguas? Já não vou falar do caráter, estou a falar de competências. O caráter, cada um usa a gravata que quer, a competência não, é sujeita a crivo. Eu tenho a certeza do que vou dizer. Se eu passeasse dentro de 80 ou 90% dos carros que fazem animação turística em Lisboa, iria dizer, sem ser juiz, que aquilo que recebi foi mau, mau serviço. Desconhecimento histórico, desrespeito pelo outro e grosseria. A animação turística é um serviço extremamente importante para uma cidade, em qualquer parte do mundo. Um guia é um embaixador.

Falas de adulteração de lugares, é claro que num lugar que é uma maravilha se for alvo de garimpo para lá do limite, acabou-se a pepita. O ouro também acaba, a jazida acaba. É claro que poderemos discutir aqui várias coisas. Quem é que tem direito a explorar a jazida? O primeiro que chegou, o segundo? 10, 20, 50, 100? Com que critérios? Esta atividade está extremamente desregrada, ultra-liberalizada no pior dos sentidos. Vale tudo. Para mim, que o fiz parcialmente para escrever um livro e que o fiz como eles, nada me deu mais retorno do que um indivíduo sair do meu carro e dizer ‘você mudou a minha ideia deste país e desta cidade, saio daqui apaixonado’. Ouvir isto é a melhor coisa. Não são 100 euros de gorjeta.

Lisboa? Qualquer dia quase que há preços para turistas e preços para residentes. Isto é síndrome de p*** finaComo foi a experiência de conduzir um tuk-tuk por Lisboa?

Fi-lo inicialmente para escrever o livro, o 'Moturista Acidental'. Agora só faço se alguém me pede porque gostam do livro, se querem entrar no espírito do livro, portanto mais pontualmente. Não é o meu trabalho. Mas é uma experiência intensíssima. Estamos a falar de conduzir, de falar línguas, ter conhecimentos sobre a cidade, aguentar a pressão psicológica da rua, as buzinadelas, as agressividades, os insultos, a má educação, a violência. E depois tem a parte bela, estar aqui a falar contigo. Era aqui que o Cardoso Pires vinha regularmente beber o seu whisky, falar com os amigos e escolhi este lugar porque dediquei o livro ao José Cardoso Pires.

Mas também parece ter um certo gosto em servir de guia para as pessoas que entram no tuk-tuk.

Servir. A palavra é essa. Eu faço isto e se o fizer é para servir com a justa recompensa. Não é recompensa, é um serviço. Os serviços têm um preço, que não tem de ser necessariamente dinheiro. Há uma psicose e uma neurose com o dinheiro, há os dois fenómenos.

Qual a história mais destaca dessa experiência? Entrou no livro?

As que entraram no livro são as mais marcantes. Escrevi 90 crónicas e só lá estão 45. Há um casal de velhotes que veio cá comemorar as bodas de platina e veio fazer o passeio comigo, foi um presente dos filhos. E viajei com os filhos e com os pais a comemorarem os 75 anos, eram pessoas de 94 e 96 anos, acho eu. No final disseram a chorar que nunca tinham feito um passeio tão bonito e que nunca tinham vindo a Lisboa. Queres história mais preciosa do que esta no Dia dos Namorados?

Foi forçado a emigrar e foi para Amesterdão. Como se vive Portugal fora do país?

Como eu vivi é menos duro porque graças ao low cost conseguia vir com frequência. Portanto nunca senti o desterro e é um país próximo, a Holanda. Nunca posso dizer que fui um emigrante sofrido que não tinha dinheiro para regressar à terra. Não tenho essa experiência de viver fora de Portugal como um desterrado, como um exilado. O que me levou a emigrar foi uma pura defesa legal de escolher um país com melhores condições fiscais do que Portugal, com as responsabilidades que me eram devidas, porque entretanto voltei para Portugal e faço aqui a minha vida. Mas a minha mulher manteve-se lá. E nós fizemos isto como defesa contra um processo muito injusto que nós passámos e eu já falei, até escrevi um livro sobre isto. Não está extinto, estamos a tentar resolvê-lo. É uma situação que pode acontecer a qualquer um, mas é muito chato, é como seres contaminado com o vírus da SIDA se fores hemofílico. Não é fatal, mas é desgastante e que me levou a reinventar-me. Viver fora, fazer trabalhos que jamais esperaria fazer, mas é como se diz, o que não nos mata torna-nos mais fortes.

Como turista não quero ir para um bairro e olhar para outro turista. Não me atraiJá se referiu a Lisboa como uma "p*** fina" a quem a visita pela primeira vez. Porquê?

Está a transformar-se, não está? Qualquer dia quase que há preços para turistas e preços para residentes. Isto é síndrome de p*** fina. Acho que todos têm direito a fazer pela vida, a furar a tentar mas há limites. No que toca à animação turística há vários preçários e eu considero por vezes aviltante que se cobre o mesmo valor a qualquer pessoa, sem sequer se ponderar quem é que está à tua frente. Não é entrar no espírito do marroquino, mas é o mais tenebroso da vida que é maquinalizar as coisas e tirar aquilo que é mais valioso neste trabalho, que é a paixão, o lado humano, o contacto direto, ajudas as pessoas a entrar com o corpo. Hoje pude meter no meu tuk-tuk uma pessoa que não tinha braços. Isto é do mais humano que há. É desprezível virar isto para o negócio, para o lucro, para a faturação.

O alojamento local é uma questão muito polémica atualmente. Não estamos a correr o risco de descaracterizar alguns dos bairros mais históricos de Lisboa ao expulsarmos e despejarmos pessoas e famílias que viveram lá a vida toda, que fazem parte do tecido desses bairros?

É uma questão que já está a ser debatida, já li. Já vi até algumas intervenções pertinentes. Eu como turista não quero ir para um bairro e olhar para outro turista. Não me atrai. É triste que num bairro milenar as pessoas sejam forçadas a sair devido à pressão do alojamento local ou do investimento imobiliário, porque não é só o alojamento local que até é uma coisa que dá de comer a muita gente. Isso é mínimo. É muito mais danosa a massificação dos espaços e grandes construções hoteleiras. Isso é um disparate. É como construir arranha-céus num tecido urbano de dois andares, não faz sentido de todo. Será horrivelmente terrível se a cidade permitir ou os poderes locais permitirem que a cidade se torne num pardieiro de interesses económicos. Um fenómeno que me agrada em Lisboa é à medida que a cidade está a crescer para oriente, por exemplo, assimile os novos bairros e que se possa dispersar na cidade, como em Amesterdão, que tem zonas características, ou Londres. Eu gosto de ir a Alfama por causa do fado, das ruelas, da gente castiça, dos palavrões como no Porto. As pessoas dizem 'vai-te fo***' e é saudável.

Quais as particularidades de ensinar escrita de viagens? A capacidade de observação deve ser ainda mais enfatizada?

Não, a escrita de viagens tem uma variante da escrita criativa, pelo menos nesses cursos que dou, porque é muito situada no território dos livros de viagens, da narrativa de viagens, são textos baseados em factos reais. Estão muito mais próximos do jornalismo, até do jornalismo literário do que da ficção, porque é o território do vivido e do que há ali para contar. Sinto-me muito mais à vontade de fazer isto com os promitentes escritores de viagens, porque é um território onde comecei e porque é algo que me apaixona.

Está a escrever mais um livro, tem mais algumas ideias, mais alguns projetos pensados?

Há uma personagem na minha família que me intriga que foi um corsário. A história da pirataria até é contemporânea, já que só mudou o figurino, andam por aí muitos piratas. Então, como metáfora da vida acho um fenómeno atrativo de entender. Porquê o corso, o saque, a usura, a exploração. Isso está na natureza humana e é triste. Se este livro nascer provavelmente será um romance histórico como foi 'A Escada de Istambul', que foi o meu livro mais feliz. 'As Viagens Sentimentais' é um livro de que gosto muito, mas não é 'A Escada de Istambul'. Neste livro eu joguei tudo, com as minhas limitações, com as minhas capacidades, mas está lá tudo o que possa ter dado de melhor e de mais vivo. Quando viajas na literatura de viagens estás num território que te pode ser familiar, num romance não, embora baseado em factos reais é ficção. Gravita-se num elemento que é inventado e isso é fascinante. São peças que se vão construindo e é preciso dar-lhes densidade.

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