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"O assédio sexual é uma realidade em todo o lado. Na televisão também"

O voluntariado, a defesa dos direitos humanos, o assédio sexual, a vida e carreira. Catarina Furtado é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

"O assédio sexual é uma realidade em todo o lado. Na televisão também"
Notícias ao Minuto

07/02/18 por Rita Alves Correia

Fama Catarina Furtado

Formou-se em dança no Conservatório Nacional de Lisboa e estava longe de imaginar fazer carreira na televisão. Atualmente, Catarina Furtado é dos rostos mais emblemáticos da apresentação em Portugal, com uma carreira repleta de êxitos.

O estatuto de figura pública causa-lhe alguma estranheza, mas aproveitou a amplitude do seu nome para realizar aquele que considera ser o seu maior feito: a luta pelos direitos humanos. Embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas e Presidente da associação Corações com Coroa, aos 45 anos, Catarina conta com um longo percurso de intervenção em causas solidárias e humanitárias.

Por muitos considerada a 'namoradinha de Portugal', foi com paixão que nos falou da sua vida e carreira, marcadas por um profundo sentido de família e de justiça. O voluntariado, a defesa dos direitos humanos e o assédio sexual em Portugal, são alguns dos assuntos abordados por Catarina Furtado nesta entrevista.

Começou por querer ser bailarina, chegou mesmo a ter aulas de dança no Conservatório. Ainda guarda esse sonho?

Se ainda guardo esse sonho, não. Tenho noção de que há um tempo para agarrar os sonhos. As pessoas costumam dizer: ‘Nunca é tarde para cumprir os sonhos’. Mas há determinadas características, condicionamentos e contextos que não permitem. Não posso ser bailarina agora. Mas ainda sonho poder vir a coreografar um dia. Isso sim. Imagino-me muito a fazer uma coreografia. Até juntando várias artes - pelo facto de ser atriz -, acho que o sonho da coreografia ainda posso concretizar por uma noite, não para a vida.

Em que momento percebeu que queria construir uma carreira na televisão?

Foi tudo acaso. Nunca tive o sonho de ser apresentadora, nem nunca tive o sonho de ser conhecida. Aconteceu por acaso a minha ida para a televisão. Queria ser coreógrafa, mas como tive uma lesão lombar num ensaio geral de um espetáculo fui para jornalismo. E do jornalismo houve a possibilidade de realizar um estágio e comecei a ser jornalista, meramente jornalista. Tudo o que um jornalista faz numa redação, eu fazia na Correio da Manhã Rádio. Depois houve um dia em que a Margarida Pinto Correia ia fazer um casting para um programa de televisão e não pôde fazer esse programa, então desafiou-me a fazer o casting. Fiquei como apresentadora do ‘Top Mais’, mas não gostei de aparecer. Depois do primeiro programa, olhei para a televisão e disse que nunca mais queria fazer aquilo.

Entretanto, à conta disso, estava a abrir a SIC e, na altura, uma das diretoras, a Maria Luísa, desafiou-me a ser a cara da MTV em Portugal. Então aceitei ir para a  SIC, entrei para os quadros e pensei que ainda podia vir a ser jornalista. Tirei um curso na SIC - era um curso para pivots, onde estava o José Alberto Carvalho, o Rodrigo Guedes de Carvalho, todos os grandes jornalistas. Mas entretanto, a SIC voltou a desafiar-me para mais coisas, como o ‘Chuva de Estrelas’ (1993) e o ‘Caça ao Tesouro’ (1994). E a certa altura tudo aquilo começou a ultrapassar-me porque os projetos eram desafiantes. Todos aqueles que não eram desafiantes eu ia dizendo que não. Foi uma coisa maravilhosa porque nunca tive medo. Eu sei que hoje em dia é muito difícil, sobretudo para os jovens. Mas acho que o ter medo é altamente limitativo. Acho que temos de ter coragem. Ganhamos muita sabedoria com os ‘nãos’ que dizemos. Muita sabedoria por termos uma certa independência com as dificuldades que isso possa acarretar.

Quando fiz o ‘Chuva de Estrelas’ - que foi o sucesso que foi -, aí pensei que ia ser sempre daquela maneira e não me queria limitar a ser só apresentadora. Queria ir aprender, saber mais coisas. Foi aí que fui dizer à SIC que não queria continuar a trabalhar e queria ir estudar para Londres. E fui. Tirei dois cursos durante três anos e voltei para Portugal. Voltei com outra bagagem, não só enquanto atriz, mas enquanto pessoa, enquanto mulher, enquanto profissional…

Enquanto estudei nunca disse aos meus colegas que trabalhava em televisão. Todos os meus colegas eram estudantes normais e eu já tinha experiência mas nunca disse a ninguém.

É muito reconfortante olhar para trás - com quase 28 anos de carreira - e pensar: 'Nunca fiz nada que não gostasse de fazer. Nunca'

Não havia redes sociais na altura…

É incrível, não é? É incrível. É muito interessante. Como é que eu hoje era capaz de lá estar e guardar esse segredinho que para mim foi ótimo? Porque olharam para mim de uma forma perfeitamente normal e eu estive par a par com eles. Para mim foi ótimo, para a confiança, para os meus desafios, limitações…

E quando voltei, voltei com outra bagagem. Fui eu que paguei o meu curso. Isso é muito bom, é uma sensação muito boa. E comecei do zero. É muito reconfortante olhar para trás - com quase 28 anos de carreira - e pensar: 'Nunca fiz nada que não gostasse de fazer. Nunca' E se for olhar para o meu currículo, não faço ideia de quantos programas fiz, mas nunca me arrependi de nenhum. Portanto, fui crescendo e evoluindo e tentando sempre ser melhor, trabalhando sempre imenso com as equipas, dando sempre valor a todas as pessoas de cada equipa. Cada pessoa, que faça o que quer que seja, está a contribuir para o programa tenha sucesso.

É frequentemente elogiada pela beleza. Foi difícil provar que era mais do que uma ‘cara bonita’?

Sim e acho que hoje isso ainda acontece.

Sente que, atualmente, a televisão ainda é um meio difícil para as mulheres?

Para mim, não. Mas o meio em si ainda é desigual para as mulheres. Evidente que é. O mundo, em geral, é completamente desigual em termos de oportunidades para as mulheres e para os homens. Quem mais sofre são de facto as mulheres.

A verdade é que o assédio sexual é uma realidade em todo o lado, em todas as áreas. Na minha área, que é a televisão, também acontece

Como tem reagido à onda de denúncias de abusos e de assédio sexual em Hollywood?

Com estes casos de assédio, há evidentemente muitos homens, instruídos, que acham: ‘Ah, agora são todas [vítimas]’. Isto quer dizer que o tema não está a ser bem tratado, que os homens não se estão a rever. Está a haver uma vulgarização e isso tem muito a ver com a forma como o assunto é tratado nos meios de comunicação social e nas redes sociais. Porque se banaliza. A verdade é que o assédio sexual é uma realidade em todo o lado, em todas as áreas. Na minha área, que é a televisão, também acontece E não acontece só com mulheres aparentemente mais vistosas, mais bonitas, acontece em geral. O que eu acho é que é sempre mais difícil para uma mulher bonita provar que é mais do que isso. Há sempre um preconceito. Ainda existe e é absurdo. Porque é que uma mulher não consegue preocupar-se com a sua beleza, o seu exterior, e ser uma excelente profissional? Está provado que conseguimos. Está provado que conseguimos fazer até mais coisas do que os homens. Não sei se está provado cientificamente, mas pelos exemplos que temos à nossa volta não há dúvida de que somos uma espécie de canivete suíço, que conseguimos fazer muito mais coisas.

E o assédio existe e agora estamos a perante uma oportunidade que tem duas frentes. Por um lado, libertar as mulheres que se habituaram ao longo dos anos a não valorizar exteriormente esses assédios, ou seja, a engolirem, a arranjarem estratagemas de contorno das situações que assistem e que são vítimas. Porque as mulheres têm o dobro do trabalho para mostrar a sua eficiência. As mulheres têm, intrinsecamente, uma enorme necessidade de mostrar que trabalham bem, de uma maneira geral. A mulher sabe que a sociedade perdoa mais facilmente uma falha de um homem que de uma mulher. Esta é uma fase de libertação. As mulheres podem conseguir perceber se o que ouvem é um piropo - quem não tem mal nenhum, é um jogo de sedução para homens e mulheres - ou é mais do que isso.

Outra das frentes que podemos ver com esta aprendizagem é a situação dos próprios homens. Esta é uma oportunidade para que os próprios homens - que se sentem com o dedo apontado e que às vezes também é injusto - tenham oportunidade - e estou a ser sincera e nada irónica, porque acredito mesmo nisto - de eles próprios reverem os comportamentos que a sociedade tem aceitado. E acho que não devem haver radicalismos e não se devem confundir vários conceitos. O conceito da delicadeza, da boa educação, não devem ser confundidos. 

Eu sou um poço de contradições numa base de grande coerência

Em 1994 apresentou o ‘Caça ao Tesouro’. Foi aí que descobriu um gosto especial por situações mais aliciantes?

Eu sempre fui aquela criança que quando os pais olhavam para o lado já não estava lá. Embora fosse muito tímida, o que é contraditório. Eu sou um poço de contradições numa base de grande coerência Acho que isso faz uma certa agitação dentro de mim. Sempre fui muito tímida mas com uma vontade muito grande de testar limites. Era tímida, mas não medrosa. E o ‘Caça ao Tesouro’ veio que nem uma luva para a minha personalidade porque basicamente a minha formação é a da utilização do corpo, não da voz. Formei-me a expressar-me através do meu corpo. Por isso é que, além de acreditar profundamente no poder curativo dos afetos, sou realmente muito física. E queriam, no início, tirar-me esta forma de me mexer. A certa altura desistiram [risos].

O corpo é qualquer coisa de que não tenho qualquer tipo de pudor. Acho que o corpo não é um bicho de sete cabeças. É preciso ter respeito por ele, mas não é ao nível do proibido. O ‘Caça ao Tesouro’ foi para mim - tirando os ‘Príncipes do Nada’ porque são ‘meus’ - o programa que mais me desafiou no ponto de vista da comunicação porque eu tinha de improvisar sempre. Não sabia para onde ia nem o que ia fazer e isso criava-me uma vontade de ser cada vez melhor.

Era a Catarina no seu estado mais ‘puro’?

Aquela era a Catarina. Era eu completamente e isso foi a base de tudo. Depois nunca me formatei em mais nada, apenas me mascaro - a parte física - com as roupas, os batons… Com todo o lado glamouroso que a televisão exige e que eu adoro. Mas é tudo por fora, a essência está lá exatamente a mesma.

[A essência] está intocável?

Acho que não mudei muito. Estou um bocadinho mais consciente de que o mundo não é tão cor de rosa como eu sempre achei. Durante muitos anos achei, tenho essa perspectiva positiva da vida. Adoro viver, adoro pessoas. Adoro todas as pessoas e só depois é que começo a fazer a triagem. Ao contrário de muita gente que é de ‘pé a trás’, eu sou ao contrário, estou sempre de braços abertos e depois começam a desiludir-me e pronto. Mas continuo a adorar andar cá e a viver as coisas intensamente.  Tenho visto muito do mundo, as viagens que tenho feito, em sítios e em lugares muito tristes, mudaram-me um bocadinho, mas não me tiraram a esperança…

Nem o otimismo…

Nem o otimismo. Colocaram-me um bocadinho mais no centro da realidade. Achava que era mais fácil mudar o mundo e agora sei que é mais fácil mudar um bocadinho do mundo porque assisti a muita coisa. São 18 anos a assistir a muita coisa e em países completamente diferentes de nós (o Sudão do Sul, o Haiti…). Fui a muitos países e por isso tenho uma noção mais clara do mundo.

Foi no voluntariado, nesta minha vertente, que eu encontrei a minha maior missão - tirando ser mãe, que essa está à parte de tudo Desde cedo que se associou a causas humanitárias… É embaixadora da Boa Vontade da ONU e presidente da associação Corações com Coroa. Foi no voluntariado que encontrou a sua maior virtude?

Não lhe chamaria virtude. Virtude é algo que só uma pessoa de fora pode dizer. Com toda a modéstia, não consigo olhar para isto como uma virtude. O que consigo é dizer que foi no voluntariado, nesta minha vertente, que eu encontrei a minha maior missão - tirando ser mãe, que essa está à parte de tudo. Agora virtude os outros é que hão-de ver. Porque até no voluntariado é preciso ter talento. Quando digo talento é no sentido em que não é voluntário quem quer, tem de ser voluntário quem pode.

Mais uma vez, uma das coisas que fui aprendendo é que o voluntariado é uma coisa meio romântica, mas, na verdade, é um exercício muito sério. O voluntariado para ser chamado de voluntariado tem de ser profissionalizado. Por isso é que na Corações com Coroa damos cursos de voluntariado gratuitos durante duas ou três semanas, muito bem apetrechados de bons formadores e conteúdos. O voluntariado está um bocadinho banalizado - ainda que seja muito importante que se fale disso e que as pessoas tenham esse sentido nas vidas, se assim o entenderem -, mas não podem pensar que qualquer pessoa pode fazer voluntariado, de todo. É preciso formação e eu bato-me imenso por isso. E o voluntariado não pode ser algo, essencialmente, para nos preencher a nós. Também eu sou a prova disso. O voluntariado tem-me dado tanto que não posso ser hipócrita a esse ponto. Mas o propósito é ao contrário, é de dentro para fora.

E se é a minha missão, é. Comecei a fazer voluntariado muito cedo, tinha nove anos. Há vários porquês para as pessoas fazerem voluntariado. No meu caso, acho que vem desde sempre. Quando me desafiaram a escrever o livro ‘O que vejo e não escrevo’ (2015), eu disse que não queria escrever um livro. E o editor, o Francisco Amaro, para me convencer disse uma coisa muito importante: ‘Tu dizes que está tudo nos documentários [‘Príncipes do Nada’], mas nos documentários só está aquilo que podes mostrar’. E eu tenho uma espécie de barómetro ético permanente, está sempre alerta. Há coisas que queria mostrar, para que as pessoas ficassem chocadas, mas em primeiro lugar está a dignidade da pessoa que está à minha frente. E pensei: ‘Então vou fazer uma autoanálise’. Estou sempre ocupada, não tenho tempo para ir para a psicanálise nem psiquiatras nem psicólogos, então vou [risos].

Esta minha necessidade de me pôr ao serviço dos outros - que é assim que eu entendo a minha condição de figura pública - vem desde sempreE foi muito interessante porque fui eu que fiz esse trabalho. Então o que está na primeira parte do livro são vários casos da minha infância e adolescência que me marcaram em relação às desigualdades, sejam elas quais forem: Ou um amigo meu homossexual que foi mal tratado ou uma prostituta que levou tareia dos polícias e fez-me imensa impressão. Eu vi e aquilo marcou-me sem eu saber. Percebo que esta minha necessidade de me pôr ao serviço dos outros - que é assim que eu entendo a minha condição de figura pública - vem desde sempre.  Não sendo figura pública e não trabalhando em televisão, estaria a fazer algo relacionado com o apoiar os outros, tenho a certeza absoluta.

A Corações com Coroa foi criada à sua imagem? É o projeto concreto do que é a Catarina Furtado?

Claro, a Corações com Coroa veio exatamente no seguimento de tudo aquilo que tenho visto e aprendido enquanto embaixadora nas Nações Unidas. Os embaixadores têm a missão voluntária de trabalhar para os países em desenvolvimento. Tendo eu esta experiência já tão grande achei que fazia sentido, no nosso país, atuar nas mesmas áreas com diferenças colossais.

Há muita coisa que é preciso fazer na área da igualdade de oportunidade e de género, e na área da violência. Portanto, há dez anos decidi lançar o repto a duas amigas minhas de criar a associação e temos vários projetos, nomeadamente já demos 14 bolsas de estudo a jovens que não iam estudar se não fôssemos nós e é maravilhoso ver o desempenho delas, é altamente comovente. Além disso, todos os dias temos atendimento gratuito nas áreas da psicologia, assistência social, jurídica. Temos um projeto contra a violência no namoro - que é agreste em Portugal. Está a crescer e é verdadeiramente preocupante. Os conceitos estão completamente baralhados. Os jovens misturam amor com paixão, com ciúmes, com controlo. Eu vou a várias escolas, privadas e públicas, e é uma realidade. Os jovens tratam-se mal hoje em dia

A Corações com Coroa é feita à imagem daquilo que é a minha experiência no terreno. Eu sou uma curiosa da matéria, tento estudar, mas esta não é a minha profissão, é a minha missão. Portanto, tentamos fazer colaborações com pessoas que têm, de facto, esta experiência, desde psicólogas a assistentes sociais.

Casamento de menores, mutilação genital, gravidez na adolescência, violência doméstica, racismo, homofobia… O que lhe dizem estes temas? Alguma vez receou abordá-los em Portugal?

Não. Comecei a falar da mutilação genital feminina há 11 anos e lembro-me das pessoas ficarem assim: ‘O que é isso? É uma coisa ‘lá deles’”. Esta coisa do ‘lá deles’ a mim transcende-me porque a cho mesmo que não existem fronteiras. Na altura, as pessoas ficavam um bocado desconfortáveis, mas eu pensei: ‘Isto é um caminho, eu não me vou calar’. Tenho sempre essa noção, de que é preciso falar. Quando há uma violação dos direitos humanos, é preciso falar Não há que ter medo, a lei é clara. A lei dos países instruídos é clara. Temos de ter respeito pela cultura dos outros, temos de aceitar, mas temos, obviamente, de perceber onde está a fronteira entre uma violação dos direitos humanos ou não. Eu vi as meninas a serem mutiladas, não há nenhuma cultura que possa aceitar isso. Quando isto é explicado, trabalhado com respeito, com instrumentos que possam formar as pessoas - quer aqueles que vão até às tabancas falar com as comunidades, quer os próprios governantes -, quando isto é assim os resultados veem-se.

Esta dança dos egos resulta numa profunda insegurança para algumas pessoas. Olho para isto tudo e relativizo muita coisa O percurso que tem feito em causas solidárias tem sido marcado por experiências muito duras. Que momentos foram mais difíceis de ultrapassar?

Acho que as mortes evitáveis são situações a que eu assisti e que nunca mais vou esquecer. Quando estamos perante pessoas que morreram porque lhes faltaram condições básicas que no nosso país nunca faltariam, portanto sobreviveriam, essa realidade nunca mais se esquece. Despedir-me dessas mulheres ou crianças não se esquece. São pessoas saudáveis. Uma mãe que dá à luz e morre porque lhe falta eletricidade é de uma violência... Essas são provavelmente as que me marcam mais. Mas há outras coisas que me vão marcando e me vão formando.

Depois olho para este nosso meio cheio de egos - e não estou a pôr-me como uma santinha porque não sou, não sou mesmo. Mas de facto esta dança dos egos resulta numa profunda insegurança para algumas pessoas. Olho para isto tudo e relativizo muita coisa, porque às vezes o que mais conta não é o que é mais valorizado. 

Por exemplo, uma jovem que olha para mim, está casada com um homem mais velho, e o olhar dela não tem nada, não há sonhos, não há desejos, não há nada. Como é possível? Esta coisa de nasceres aqui ou nasceres acolá influencia a vida toda e podia ter sido eu. Penso nisso, todos os dias faço esse exercício de me pôr no lugar dos outros e acho que toda a gente devia fazer.

Uma mulher associada a causas tão fortes guarda que medos?

O da morte, é só esse. É mesmo o único e é grande. Esse ainda não o resolvi. Por acaso até há alguns ensinamentos bons, há muita coisa que tenho aprendido, mas ainda não cheguei lá. Ainda estou num processo difícil, ocidental, para lidar com a morte.

Deixo sempre um caderninho onde explico onde é que vou, porque é que vou, o que vou tentar fazer 

Para a família, é fácil lidar com as idas e chegadas de realidades tão contrastantes?

Acho que se foram habituando. Eu também não falo muito, digo só qual é o país para onde vou. Vou sempre com o meu realizador e produtor, que é um grande amigo, o Ricardo Freitas, e com o repórter de imagem, que é o Hugo. Estamos juntos há dez anos a viajar pelo mundo inteiro. Por isso, não digo necessariamente tudo, digo só para onde vou. A família sabe que é uma necessidade minha. Eles sabem que é assim e que não há nada a fazer. Deixo sempre um caderninho onde explico onde é que vou, porque é que vou, o que vou tentar fazer. Desde a primeira viagem que faço isso e depois, quando regresso, faço uma espécie de resumo, adaptado a cada idade. Mas há muita coisa que não conto, não se consegue, nem mesmo no livro. Eu volto sempre para o meu conforto, sou uma privilegiada. E sempre que volto penso: ‘Tenho de voltar a ir’.

Foi recentemente anunciada como uma das apresentadoras da Eurovisão. Como recebeu esse convite?

Achei simpático, fiquei muito contente. Fiquei muito contente, sobretudo, porque é algo histórico. É bom estar em momentos muito importantes. Fico muito contente por estar com as minhas colegas também, acho muita graça à ideia de ser um ‘girl power’. E acho também que vou, necessariamente, aprender com quem está no terreno porque, além de uma equipa maravilhosa da RTP, vamos estar com os profissionais que vêm implementar a Eurovisão e são pessoas que fazem isto todos os anos, por isso têm um ‘know how’ muito grande.

É fã da Eurovisão? Como viveu a vitória de Salvador Sobral no ano passado?

Adorei. Não sou uma adepta da Eurovisão. Acho que houve uma coisa extraordinária de Portugal ao levar outro tipo de intérpretes e outro tipo de compositores que recuperaram uma espécie de febre que no nosso país já não havia. Enquanto o s nórdicos são absolutamente doidos pela Eurovisão, nós perdemos um bocadinho essa febre e voltámos a ter. E é muito bom sentir que eu estou nesse processo. Eu própria estou outra vez apaixonada pelo festival.

Filha de um jornalista e de uma professora de ensino especial, que memórias marcaram a infância?

Muitas. O meu pai tem uma coisa ótima que é o facto de que muitas das reportagens que fez terem sido fora de Portugal por isso trouxe-me muito mundo, muitas histórias e algumas delas também foram muito importantes para a minha visão real do mundo. Não era que tivesse muito tempo porque trabalhava em televisão e em rádio, mas o tempo que tinha era sempre para boas conversas. E tenho imensas memórias dos meus avós, de quem tenho muitas saudades. Acho que o estatuto dos avós devia ser medalhado todos os dias - os bons claro, também existem maus avós, como existem maus pais.

O seio familiar é a base de tudo?

Para mim, é a base de tudo. Não sei cozinhar, mas é o refogado para tudo ficar com mais sabor. Se tivermos uma base muito sólida, depois tudo o que se vai conquistando tem muito mais sabor. Se não se tiver essa base, consegue-se à mesma, afastando fantasmas. Infelizmente nem todas as pessoas tiveram uma família e uma infância felizes.

Os meus filhos têm privilégios mas ao mesmo tempo sabem que o mundo não é assim para todos os miúdos

O que é que os seus filhos têm de si?

Fisicamente o meu filho é mais parecido comigo, os traços, a cor. Mas depois a minha filha tem muitas coisas parecidas: É muito organizada, é uma miúda com alegria de viver. Ele é muito sensível, tem muita preocupação em relação aos outros, é sempre muito atento a quem sofre. E eu acho que eles estão muito bem enquadrados neste formato que é: têm privilégios, nomeadamente na educação, mas ao mesmo tempo sabem que o mundo não é assim para todos os miúdos. E eu espero que continuem com essas duas balanças.

Preserva muito a vida privada e familiar. Ao ser casada com um ator, foi fácil manter a discrição ao longo dos anos?

Fácil, fácil não foi porque a partir do momento em que começo a ser uma figura pública há esta natural curiosidade em relação às coisas, em relação à vida privada. O que eu posso dizer é que a forma como eu fui gerindo foi - e foi com o tempo, não foi logo ao início - oferecendo uma credibilidade e um respeito que sinto por parte da imprensa, nomeadamente da imprensa cor de rosa. Não foi logo ao início, tive um episódio menos bom que chegou a ir a tribunal, mas a verdade é que me sinto quase um oásis no meio disto tudo. E isso tem a ver com a coerência. A verdade é que eu nunca mostrei, não mudei de um dia para o outro: ‘Ah, agora apetece-me mostrar para ter mais audiências, ou para mais likes ou mais dinheiro. E agora não me dá jeito’. Mesmo a gestão das minhas redes sociais é comedida, de vez em quando meto uma foto com o João porque somos os dois figuras públicas e recebemos tantas mensagens de carinho e a quererem que tudo corra bem na nossa vida.

Alguém que se preocupa tanto com os outros tem tempo para se mimar?

Tenho. Acho fundamental de vez em quando fazer uma massagem e depois cuido-me ‘qb’. Não sou obsessiva com a imagem, mas sou cuidadora.

O que é que o público ainda não sabe sobre a Catarina Furtado?

O que eu própria ainda não sei e vou descobrir provavelmente. Sou muito transparente e, por isso, há coisas que ainda não sei e vou descobrir em conjunto com o público.

Qual o seu maior desejo para o futuro?

Agora será a Eurovisão. O ‘The Voice’ começa uma nova edição em setembro. Provavelmente, no verão, terei as ‘Sete Maravilhas’. Por isso vai ser um ano muito preenchido.

Podemos esperar um regresso aos palcos?

Este ano talvez não, mas estou a preparar para o ano que vem. Tive de recusar um convite, que adoraria fazer, mas não foi compatível com a Eurovisão.

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