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"Em Portugal parece que estão a ver até quando duram as nossas pilhas"

Um dos principais rostos da Batida de Lisboa, o DJ Marfox é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Em Portugal parece que estão a ver até quando duram as nossas pilhas"
Notícias ao Minuto

06/02/18 por Fábio Nunes

Cultura Marfox

Marlon Silva, mais conhecido como Marfox, tem surgido em vários artigos e reportagens de publicações e sites conhecidos mundialmente como a Rolling Stone, a Pitchfork, a Fader ou o Vice, que elogiam o talento do DJ e querem conhecer as suas origens. Lá fora, o DJ Marfox granjeia sucesso e é um nome popular. Mas curiosamente ainda não é muito conhecido no seu próprio país, Portugal.

O DJ Marfox é considerado uma das principais figuras da Batida de Lisboa, um estilo de música oriunda dos bairros da periferia da capital e que combina sonoridades africanas como o kuduro ou a kizomba com os ritmos eletrónicos de techo ou house. 

O Notícias ao Minuto encontrou-se com Marfox no bairro da Quinta do Mocho, em Loures. É no seu estúdio, outrora o seu quarto, que o artista fala sobre o seu percurso, como foi aprendendo e produzindo a sua música praticamente sozinho, aqui neste mesmo espaço. 

Marfox destaca a importância que a música teve na sua vida, como serviu como forma de inserção. O papel que a Filho Único e a editora Príncipe tiveram na sua carreira e no sucesso que muitos músicos estão a ter, principalmente, além-fronteiras também não foi esquecido nesta conversa. 

Como é que a música surgiu na sua vida?

Eu sempre tive uma ligação com a música. Acho que até na barriga da minha mãe já havia uma ligação. Primeiro porque o meu pai, antes de vir para Portugal, trabalhava como negociante. Os meus pais tiveram a sorte de viajar devido a isso. Iam para o Brasil comprar cabelo, vinham a Portugal comprar vinis, foram à China. Isto ainda antes da independência. Depois, com a guerra, as coisas complicaram-se e eles vieram para Portugal mas o meu pai sempre manteve a ligação com São Tomé. Os músicos santomenses também vieram para cá em busca de condições melhores, faziam aqui gravações de cassetes e davam-nas ao meu pai, visto que ele tinha vindo mais cedo para Portugal. E o meu pai vendia essas cassetes, então eu sempre tive essa ligação com a música.

Mas houve uma pessoa que ainda teve mais importância nesta ligação. Tenho um primo que já era DJ nalgumas discotecas africanas como a Mussulo, Coconuts, casas muito míticas dos anos 90. Ele era pintor mas quando não estava a trabalhar à noite passava sempre música. Eu tinha quatro anos e ficava a vê-lo ali, com aquelas grandes colunas, todos a admirarem-no. Quando havia festas no bairro juntavam-se sempre mais pessoas, por vezes centenas de pessoas. E ele era o DJ, a figura central. Eu comecei a perceber que ele tinha a atenção das pessoas. Geria os tempos, geria as emoções, vontades, desejos, ambições. Eu achava engraçado porque quando ele punha música mais lenta as pessoas dançavam mais lentamente. Quando punha mais rápida as pessoas dançavam mais rapidamente. Quando passava uma kizomba, as pessoas dançavam de uma forma mais romântica. Quando passava um kuduro ou um hip-hop, as pessoas dançavam de forma diferente. Isso foi despertando o meu lado de DJ.

Claro que depois o kuduro, que aparece no fim dos anos 90, também teve um papel importante. O kuduro era diferente de tudo o que eu ouvia. Do funaná, do semba, da kizomba, da puíta e do bulauê. O kuduro era algo novo, alegre. Eu ouvia os meus pais a lamentarem-se com amigos sobre a forma como tinham vindo para Portugal e deixado tudo para trás, como tinham vindo com uma mão à frente e outra atrás. E eu pensava ‘como é que um país que está em guerra faz esta música tão alegre?’. Quando o meu primo passava música e chegava à parte do kuduro, a festa mudava, era totalmente diferente. Todas as pessoas, desde os miúdos aos mais velhos, queriam dançar o kuduro. E isso fez-me pensar ainda mais que queria ser DJ.

Mas qual foi o momento decisivo para seguir este caminho na música?

O momento determinante foi aos meus seis anos. Eu lembro-me de que estava numa aula de Estudo do Meio e o professor estava a dar a matéria e eu estava num dos lugares da frente. E pensava como é que o meu primo conseguia fazer transições com as músicas coladas. No rádio do meu pai eu fazia play nos dois decks das cassetes e não dava. Questionava-me como é que ele fazia isso. E nesse momento imaginei duas músicas diferentes a fazerem uma passagem. Foi aí que decidi que queria ser DJ. Claro que depois isso levou a anos a concretizar-se. O meu primo não me deixava mexer nas mesas de mistura, eu só olhava.

Quando fui para a escola secundária, não tinha computador ainda. Mas na biblioteca tinha computadores e acesso à internet. E lembro-me de que um dia um colega meu disse que tinha saído numa caixa de Chocapic um cd com um programa de DJ. Eu comprei os Chocapic e comecei a usar esse programa nos computadores da biblioteca da escola. Tentei perceber como é que aquilo se processava. Depois quando tinha 11 anos pedi à minha mãe e ela comprou-me um computador. E foi aí que comecei a carburar e a perceber melhor as coisas. Tentei misturar músicas com aquele programa, sempre o kuduro. O programa foi evoluindo e eu fui evoluindo ao utilizar esse programa. Comecei depois a fazer festas em casa. Passava a música mas ainda não produzia.

Um dia fui à praia com uns amigos e tinha posto música e outro grupo perto de nós estava a passar músicas que eu e os outros grupos não tínhamos. Eles disseram-me que essas músicas eram de um produtor amigo deles. E comecei a pensar mais seriamente na produção. Até que me encontrei numa ocasião com o NGA, da Força Suprema, fui ao estúdio dele em Queluz e pela primeira vez vi o Fruity Loops, um programa de produção de música. Ele mostrou-me e isso despertou-me interesse. Instalei no computador mas não percebia nada daquilo, fui aprendendo por tentativa e erro, na altura não havia os tutoriais que encontramos hoje no YouTube. Fiz muitos remixes e fui-me tornando popular por isso. Costumava distribuir os cd’s lá pela escola, mas aquela música ainda não era minha.

Mais tarde conheci o DJ Nervoso aqui numa festa da Quinta do Mocho. Ele estava a passar músicas que eu nunca tinha ouvido e que eram dele. O Nervoso tinha o Fruity Loops, dominava o programa de forma diferente e passava as músicas de que eu gostava. Perguntei-lhe se me podia ensinar e ele aceitou. A partir daí encontrávamo-nos sempre quando ele voltava do trabalho. Ele abria-me um projeto dele e eu percebia como é que se fazia, ele foi-me ensinando. E depois às altas horas da noite eu experimentava fazer o mesmo, mas não tinha a mesma qualidade. Mas continuei a experimentar, sempre por tentativa e erro, até conseguir fazer a minha música.

Se calhar a mobilidade urbana noutras grandes capitais, como Paris, é mais fácil. E os sons que fazem lá têm mais semelhanças. Aqui (em Lisboa) temos de ziguezaguear mais e isso leva a que cada um faça o seu somO kuduro, a kizomba, a tarraxinha, acabaram por ser sonoridades naturais no seu percurso, mas misturadas com techno e house.

Sim, porque a questão é que isso tem a ver com a dureza que cada um passa para o som. Eu nunca vou conseguir fazer um beat de tarraxinha light, vou sempre fazer um beat forte porque é assim que me revejo como produtor. O processo de escolha dos meus samplers tem tudo a ver com as influências que fui sofrendo ao longo da vida, eu ouvia muita música africana mas também ouvia outros estilos de música na rádio e na televisão. A minha base sonora é a música africana e a música eletrónica e esses dois mundos estão sempre lado a lado. E depois há diferenças nos estilos de música. A tarraxinha evoluiu de forma diferente em Portugal do que evoluiu em Angola, o mesmo passou-se com o kuduro e isso tem a ver com as influências que as pessoas sofrem todos os dias.

Quais é que foram as bandas e músicos que mais o influenciaram?

Como produtor, o DJ Znobia porque ele estava sempre à frente dos outros. Os beats dele eram diferentes de tudo o que ouvia na música angolana. Aqui em Portugal, o Nervoso e o DJ N.K, com quem até fundei em 2005 um grupo, os DJs do Gueto. Eu da Portela, o Nervoso de Loures, o Pausas da Margem Sul, o Fofuxo e o Jesse da linha de Sintra e o N.K. da linha de Oeiras. O Nervoso juntou-se mais tarde ao grupo. Ele estava num nível diferente em termos de qualidade sonora. Já tinha uma estrutura montada, sabia o que estava a fazer. Nós melhorámos a nossa qualidade e ele juntou-se uns meses mais tarde.

Notícias ao MinutoÉ no seu estúdio que Marfox passa muitas horas a produzir a música que faz dançar pessoas nas melhores discotecas do mundo© Blas Manuel

O grupo foi importante na sua evolução como DJ?

Aprendemos todos no grupo. Por exemplo, o N.K. tinha um projeto de um minuto e um de nós acabava esse projeto. Isso dava-nos ‘pica’ e queríamos acompanhar, estar à altura daquele projeto de um minuto. Isso fez-nos evoluir e crescer como artistas. E o Nervoso e o N.K. já dominavam o Fruity Loops e nós aprendemos muito com eles.

Nós lançámos o ‘DJs do Gueto Vol.1’ que teve grande impacto na periferia de Lisboa. Todas as pessoas ouviram aquilo, incluindo o pessoal da Filho Único. Esse álbum fez-nos viajar. Fomos a França, ao Luxemburgo, à Holanda, mais precisamente a Roterdão. Mas éramos muitos para viajar e uns de nós tinham mais carisma do que os outros. Por vezes queriam que fossem apenas dois ou três elementos do grupo nessas viagens. Éramos novos. Em 2006 chegarem ao pé de nós e darem-nos 700 euros para tocar em França, quando nos pagavam habitualmente 30 ou 50 euros para atuar em discotecas africanas aqui. Isso pesa. Mas quem não ia não ganhava esse dinheiro e na altura nenhum de nós pensou nas consequências que isso estava a ter dentro do grupo. Oficialmente o grupo nunca acabou mas cada um seguiu o seu caminho.

Como é que foi abordado pela Filho Único?

No ano seguinte conheci o pessoal da Filho Único. Foi num projeto em que nem participei como artista. Eu fiz um instrumental de funaná para um artista que foi lá cantar. Na altura as coisas no grupo estavam paradas, eu apenas atuava nalgumas discotecas africanas. Mas os DJs mais velhos não gostavam muito de mim porque eu era produtor e eles não, eu tinha as minhas coisas. Então comecei a ser posto de parte nessas discotecas. O Nelson e o Pedro Gomes da Filho Único disseram ao artista para quem fiz o instrumental de funaná que tinham gostado do meu trabalho e perguntaram quem tinha feito o instrumental, que era diferente. Ele disse que tinha sido eu e eles quiseram conhecer-me mas eu fiquei de pé atrás, com receio que roubassem o meu trabalho. Era essa a mentalidade que tinha, era uma barreira. Por um lado ambicionava que a minha música saísse do bairro, que crescesse mas por outro havia esta barreira.

Acabei por encontrar-me com eles. Eles queriam que eu continuasse a fazer os beats para o Kota Lume, o artista para quem tinha feito o instrumental de funaná. Eu expliquei-lhes que só tinha feito aquele beat porque ele era meu vizinho, que não fazia aquilo habitualmente, que o meu forte era o kuduro. E na altura estavam lá os Buraka. O João, o Andro e o Kalaf. E eles perguntaram-me se os conhecia. Disse-lhes que eles não faziam muito o meu estilo, porque achava que o que eles faziam era muito processado. Era jovem. Hoje em dia, depois de ter crescido neste meio musical, percebo que não era processado. Os Buraka incutiram foi regras na música e também conseguiram implementar um ‘groove’ com todas as influências eletrónicas que coabitavam na altura na Europa.

Encontrei-me uma segunda vez com o pessoal da Filho Único e disse-lhes que havia centenas de jovens como eu a fazer aquela música. Foi a partir daí que começámos a trabalhar juntos.

Não quero estar a apontar o dedo a nenhuma organização de um festival, mas acho que deviam dar mais oportunidades, não só à minha música, mas à música de muitos músicos talentosos que andam por aíFoi o seu momento de profissionalização na música?

O profissionalismo começou quando as exigências começaram. Na noite africana, não vou dizer que fazia o que queria, mas as pessoas já me conheciam, queriam ouvir-me. Quando comecei a trabalhar com o pessoal da Filho Único e eles puseram-me a tocar numa festa que fizeram na Avenida da Liberdade, eu não era ninguém. Aí é que o profissionalismo começou. Uma coisa é tocares para pessoas que te conhecem, que sabem que és bom, outra coisa é quando ninguém te conhece. Foi aí que tive de mostrar que era bom. Tive de tocar durante uma hora, uma hora e meia. Só eu. Foi a minha primeira grande atuação. Depois toquei no Cabaret Maxime e as pessoas não dançaram e fui aprendendo com isso. Foi como se tivesse subido de divisão. Não se joga na primeira divisão como se joga nos distritais.

A Filho Único teve esse papel importante na minha vida, mostraram-me o outro lado. Eles sempre disseram que acreditavam na minha música e que podia ser tocada, não só nos guetos, mas também nas melhores pistas de dança do mundo. Comecei a perceber onde falhava e como podia melhorar, antes não falava inglês e agora falo um mínimo. O meu sonho era ir ao Japão e já lá fui tocar a minha música. Tocar em Nova Iorque, na China, em África. Tudo isto aconteceu depois de estar com a Filho Único. Anos mais tarde criaram a editora Príncipe e surgiu também as Noites Príncipe. Nos primeiros dois anos toquei quase todas as noites no Musicbox.

E quando é que começou a ir tocar para fora a solo, já depois de ter lançado os EPs?

Eu lancei o ‘Eu Sei Quem Sou’ no mercado nacional no final de 2011, na mesma altura em que foi criada a editora. Em 2012, foi lançado no mercado internacional e comecei a ter mais exposição lá fora. Antes disso tinha sido convidado para tocar lá fora, mas eram cerca de três, cinco concertos por ano. E depois da Príncipe as coisas mudaram.

Quando lancei o meu primeiro EP houve um jornalista, o Phil Sherman, que fez uma crítica muito boa. Eu não sabia quem ele era. E na Filho Único disseram-me que era um dos melhores críticos de música do mundo. Eu respondi-lhes: ‘Isso faz o quê? A minha conta não aumentou’. Mas depois percebi a repercussão dessa crítica, comecei a perceber melhor as coisas e senti uma maior responsabilidade, até no crescimento da Príncipe. Pensei nessa altura que conhecia tantas pessoas que podiam estar ali comigo. Alguns amigos meus disseram-me para pensar mais em mim, deixar passar uns quatro, cinco anos até começar a levar pessoal para a Príncipe. Mas eu sabia que se fosse assim, nessa altura se calhar essas pessoas já não estavam a fazer música. Então comecei a trazer muito pessoal para a Príncipe. Numa das Noites da Príncipe trouxe o Nervoso mas o nosso som era muito parecido. Então decidi trazer uns miúdos novos, que eram os Pequenos DJs do Gueto. O pessoal da editora adorou e eu comecei a trazer o resto das pessoas que conhecia.

Notícias ao MinutoMarfox realça que há centenas de pessoas a produzirem música em bairros como a Quinta do Mocho © Blas Manuel

Mas a própria Príncipe parece ter uma capacidade invulgar de captar talento. Como é que analisa isso?

O essencial baseia-se na identidade. Eu ouvi Nigga Fox, mostrei ao Nervoso e nós achámo-lo muito bom. Mostrei ao pessoal da Príncipe e disse-lhes que ele era o futuro. Disse-lhes que era para editar logo. Ouvi a Nídia durante sete meses e percebi que era muito boa. Antigamente as músicas chegavam até mim, as pessoas faziam questão de me enviar músicas. Hoje em dia as pessoas já enviam mais as músicas para a Príncipe. Mas para mim o potencial da Príncipe não está nesse catálogo, mas noutra coisa mais essencial. Desde que trabalho com eles nunca tive influência direta na escolha de um álbum. Eu faço a ponte entre os músicos e a editora, e depois a editora faz o resto.

Há outra coisa que eu acho que é própria da cidade de Lisboa. O Nigga Fox vive no Lumiar, o Nervoso e o Firmeza vivem aqui na Quinta do Mocho, ou seja aqui no Mocho e perto daqui há para aí oito ou nove miúdos que são da Príncipe mas todos têm um estilo diferente, ninguém tem sons iguais. E isso é bonito de se perceber, cada um tem o seu registo sonoro. Se calhar tem a ver com a difícil mobilidade urbana na cidade. Se quiser ir de carro para o Lumiar é fácil, mas se for de transportes tenho de dar uma grande volta. Acho que isso cria pequenos submundos onde as pessoas ficam um pouco presas. Se calhar a mobilidade urbana noutras grandes capitais, como Paris, é mais fácil. E os sons que fazem lá têm mais semelhanças. Aqui temos que ziguezaguear mais e isso leva a que cada um faça o seu som.

Acaba por ser bom para a música.

É isso. Todos os produtores têm um estilo diferente, mesmo eu e o Nervoso que temos quase os mesmos bpms (batidas por minuto), temos maneiras diferentes de produzir. Parece que cada um destes artistas foi influenciado por algo diferente e transporta isso para o seu som. A Príncipe percebe isso melhor do que ninguém.

Em Portugal parece que não nos levam muito a sério. Parece que estão a ver até quando é que duram as nossas pilhas. Nós vamos continuar aquiQue influência tem tido na tua música as viagens que tem feito?

Têm sempre uma influência. Mas na maior parte das vezes sinto-me perdido quando regresso das viagens. Parece que tenho o ouvido ‘sujo’ e sinto necessidade de ouvir projetos antigos. São muitas viagens, fui pai há pouco tempo e a minha vida mudou muito no espaço de um ano, deu uma volta enorme. Antigamente ia aos Estados Unidos uma vez, agora vou duas ou três vezes. Vou à Ásia e na Europa tenho sempre datas para tocar. Antes tinha intervalos de tempo, agora não. Quando regresso ao estúdio, penso naquilo que ouvi de outros DJ’s. Mas sinto sempre a necessidade de ouvir sons antigos. Sou eu quem pilota o avião, não são outros produtores. As pessoas têm de seguir a minha música.

Quando chego ao estúdio tento sempre implementar coisas novas que ouvi mas nunca fugindo ao meu registo. Essa é a minha base. Por vezes basta pegar em projetos antigos e dar-lhes nova vida. E tudo nos influencia.

Algumas das mais importantes publicações de música já escreveram sobre si. É o caso da Rolling Stone, da Pitchfork e da Fader, por exemplo. O mesmo se passa com outros músicos da Príncipe que estão a fazer sucesso lá fora. Porque é que isso não acontece tanto em Portugal?

Eu antigamente também não percebia, mas agora como viajo tanto já percebo. É uma questão de nicho de mercado. Nós somos um nicho de mercado em Portugal. A diferença é que o nicho de mercado em Nova Iorque são três mil, cinco mil pessoas. Em Londres se calhar são 10 mil pessoas. Em Portugal talvez sejam mil pessoas. Acho que tem a ver com isso, com o mercado. Se o nosso mercado fosse maior tínhamos mais visibilidade, mas é pequeno. E também tem a ver com outra coisa. Eu não quero estar a apontar o dedo a nenhuma organização de um festival, mas acho que deviam dar mais oportunidades, não só à minha música, mas à música de muitos músicos talentosos que andam por aí. Olham muito para os números. Em Portugal têm muito medo dos números. Por isso, deixo um conselho. Não olhem para os números.

O que me faz mais confusão é que nós saímos nessas publicações todas, mas aqui em Portugal parece que não nos levam muito a sério. Parece que estão a ver até quando é que duram as nossas pilhas. Não. Nós vamos continuar aqui. Eu já faço isto há mais de 10 anos, o Nervoso faz isto desde 2001 e há muitos miúdos novos a aparecer. A ideia que dá é que parece que as pessoas queriam que isto se massificasse, que ganhasse uma estrutura. Mas as coisas não têm de ser assim. Por vezes têm de ser ao contrário.

O mercado é como é mas nem me posso queixar. No ano passado toquei de Norte a Sul de Portugal. Fiz alguns festivais, embora gostasse de fazer mais. Mas estou satisfeito com o leque de concertos internacionais que tenho. Agora gostava de tocar mais em Portugal, mas sei que isso tem a ver com números. Está tudo ligado. Rádios, publicidade. A nossa música toca nas rádios, mas não nas generalistas. A minha música não é comercial, não é de aceitação fácil. Em Nova Iorque o nicho de mercado tem interesse na nossa música. Compram os discos, vão aos nossos concertos. Quando sabem que vou a Nova Iorque, a casa está cheia. Antes essa diferença fazia confusão, agora já não.

Se não fizesse a música que faço não sei o que seria hoje da minha vida. Noutros países há outras formas de inserção, aqui em Portugal isso está a acontecer muito através da músicaÉ um motivo de orgulho para si que a música que faz e outros fazem, a chamada Batida de Lisboa, destacando o nome da cidade e do país lá fora?

Eu nasci aqui. Sinto-me português e tenho orgulho de defender esta bandeira. Mas sinto-me feliz por isso, porque quando um australiano vem para assistir a uma das Noites da Príncipe vai ter de ficar num hotel. Está a contribuir para o turismo de Portugal, deixa aqui dinheiro. E isso é importante. E é importante para mim que isso aconteça. Portugal acolheu os meus pais num momento delicado, deu-me a educação que tenho hoje. É um processo subliminar.

Da mesma forma que o Fado faz parte da cultura portuguesa, acha que já se pode dizer o mesmo da Batida de Lisboa?

Tem de fazer porque é aqui que está a nascer uma nova Lisboa. Imigrantes que vieram para cá, que falam português, que fazem uma música diferente. Se calhar se estivessem em África não faziam esta música. É aqui na periferia que está a acontecer, o know-how disto é aqui. Faz todo o sentido dizer que isto faz parte da música portuguesa. A maior parte dos miúdos que estão na Príncipe são portugueses e tem orgulho nisso. Não pensem que porque as coisas estão a correr bem, eles vão dizer que não são portugueses, que apenas têm os documentos. Não. Eles são portugueses e sentem-se bem como portugueses. E esta música também serviu como uma forma de inserção. No meu caso foi assim. Se não fizesse a música que faço não conhecia o Nelson, o Pedro, não sei o que seria hoje da minha vida. Noutros países há outras formas de inserção, aqui em Portugal isso está a acontecer muito através da música.

Quando vejo muitos produtores aqui na Quinta do Mocho e noutros bairros sei que as pessoas fazem esta música porque a sentem. É por amor à camisola, é por terem uma ligação com esta músicaÉ interessante porque quando o Marfox e outros começaram a fazer música, a Batida de Lisboa era algo mais da periferia. Vocês conseguiram levá-la para o centro da cidade e agora já há pessoas do centro de Lisboa que procuram esta música que é feita aqui na periferia. Pode-se falar também numa mudança cultural no gosto das pessoas?

É uma troca. As pessoas que iam ao Musicbox começaram a perceber a grande diversidade de público que ia às Noites da Príncipe. E foi bom isso ter acontecido. É importante ver essa mistura da cidade. Há muitos clubs de noite africana em Lisboa mas só são referidos na comunicação social quando há confusão. A Príncipe conseguiu trazer isso. Levou os artistas para lá e deu-os a conhecer.

Como é que explica que num só bairro, como é o caso da Quinta do Mocho, haja tantas pessoas a produzirem e a fazerem música sozinhas? Começam do nada, aprendem sozinhos. Dá ideia de que neste espaço há muito talento.

Há muito, muito talento. Hoje em dia 90% das pessoas que estão na Príncipe e que fazem este estilo de música usam o Fruity Loops. Tem a ver com a facilidade de usar o programa, isso ajuda. Mas os miúdos querem muito ser como nós. Mas não por uma questão de dinheiro, querem ser como nós porque sentem o que fazemos. É essa humildade que faz com que sejam produtores. Quando olho para os Pequenos DJs do Gueto eu vejo isso. Eles não queriam ser os Pequenos DJs do Gueto porque nós ganhamos muito dinheiro ou porque aparecemos todos os dias na televisão ou na rádio, mas sim porque sentem o nosso som. Quando vejo muitos produtores aqui na Quinta do Mocho e noutros bairros sei isso, que as pessoas fazem esta música porque a sentem. É por amor à camisola, é por terem uma ligação com esta música. E depois há uma troca. Hoje os miúdos aprendem connosco. Mas quando era novo aprendi com o Nervoso.

A música mudou a minha vida. Ou seja, o que eu não via, passei a ver; o que não sentia, passei a sentir. E isso traz confiança, traz ambição. Antes tinha medo do desconhecido, hoje quero é estar sempre no desconhecidoQue projetos tem em mente para o futuro, algum EP a caminho?

Sim, estou a trabalhar no meu próximo EP, que ainda não tem data de lançamento. E estou a trabalhar de forma tranquila, a preparar um Marfox mais maduro.

Sente essa evolução desde que começou?

Existe uma evolução na maneira de pensar, na maneira de estar. A música mudou a minha vida. Ou seja, o que eu não via, passei a ver; o que não sentia, passei a sentir. E isso traz confiança, traz ambição. Eu antes tinha medo do desconhecido, hoje quero é estar sempre no desconhecido. Fez-me alcançar coisas que não pensava ser possível. Mas para isto, primeiro foi preciso trabalhar muito. E digo isso aos miúdos todos. ‘Podes ser muito bom, mas tens de trabalhar mais do que eu. Trabalha com alma, com amor’. No caminho para cá estava a falar com o Nervoso e disse-lhe que ia dar uma entrevista e ele respondeu-me ‘As coisas boas só te acontecem porque tu não paras de trabalhar’.

O trabalho tem de estar acima do talento. Eu já tinha talento mas tive de aprender que era necessário trabalhar mais. Eu estou sempre pronto a carregar no play, a produzir. Às vezes sou tão rápido a preparar um trabalho, que o pessoal da Filho Único fica surpreendido. ‘Deram-te quatro semanas’, dizem-me. E eu já tinha feito tudo numa semana. Quando me dão algo para fazer, quero logo deitar mãos à obra. A estrutura da Filho Único incutiu-me isso também.

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