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"Que pai deixa filho ser árbitro para ganhar 50 euros e levar porrada?"

Em entrevista ao Desporto ao Minuto, Luciano Gonçalves, presidente da APAF, pede "coragem política e desportiva" para colocar um ponto final na onda de agressões a árbitros que tem assolado o país.

"Que pai deixa filho ser árbitro para ganhar 50 euros e levar porrada?"
Notícias ao Minuto

06/04/17 por Andreia Brites Dias com Carlos Pereira Fernandes

Desporto Luciano Gonçalves

A arbitragem portuguesa atravessa um dos momentos mais delicados de que há memória, após a agressão de Marco Gonçalves, jogador do Canelas, a José Rodrigues, durante a partida entre o Canelas 2010 e o Rio Tinto.

O episódio foi a gota de água que fez transbordar o copo, e que levou a Federação Portuguesa de Futebol a anunciar que todos os jogos de júniores e seniores terão policiamento até final da temporada.

Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, Luciano Gonçalves, presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol, aplaude a medida, mas alerta que é preciso (muito) mais para colocar um ponto final nos chocantes episódios que têm assolado o futebol português.

Vimos uma agressão a um árbitro que o poderia ter matado 

Que balanço faz da reunião com a FPF?

No cômputo geral, gostei da abertura no sentido de querer resolver este problema. Para nós, tudo o que seja para resolver o problema, é interessante. Mais do que o resultado da reunião, ficou o compromisso da Federação em, nos jogos em que existem problemas, existir policiamento obrigatório. É óbvio que não é só isso que queremos.

O que queremos é evitar que os problemas existam. Mas tudo o que seja conseguido é importante. Só o facto de terem sensibilidade para o problema já nos deixa satisfeitos. Houve um compromisso da Federação em rever e alterar o regulamento disciplinar no próximo ano, para que haja penas mais pesadas. Isso deixa-nos satisfeitos, apesar de querermos mais.

Hermínio Loureiro falou em policiamento obrigatório em jogos de equipas com historial de violência. Pouco depois, Fernando Gomes disse que será em todos os jogos. O que aconteceu entretanto?

Certamente analisaram o problema, viram que é grave. A Federação tem consciência de que o problema é grave. Nunca tive dúvidas disso, acompanhou-o desde início. Mas é óbvio que não poderia ser naquela reunião, em tão curto espaço de tempo, que o dr. Hermínio Loureiro daria outra coisa que não dependesse dele. O que o dr. Fernando Gomes vem dizer, e muito bem, é que é um trabalho que tem de ser feito com algum tempo. 

As medidas anunciadas duram até ao final da época. Como será na próxima?

Não queremos empurrar o problema com a barriga. Queremos é tentar resolvê-lo. Sabendo que temos policiamento até final da época, os nossos árbitros já ficam mais descansados. Depois de conseguirmos garantir isso, vamos ter tempo para trabalhar até fim da época no sentido de melhorar e alterar algumas coisas para que a próxima época comece de forma diferente.

Ainda assim, reconhece que as medidas deveriam ter sido mais proativas do que reativas?

Sim, proativas não foram de forma nenhuma. Temos de começar pelos pais. É um problema de cultura, que não pode ser resolvido em meia dúzia de meses. Temos, de uma vez por todas, com coragem política e desportiva, assumir que, se tivermos de chegar ao ponto de proibir um pai de entrar num campo de futebol para ver o seu filho jogar, temos de o fazer.

Cá fora, há situações que apontam para aquilo que possa vir a ser um foco de perigo. Não pode existir qualquer problema com a força policial tirar aquela pessoa do campo. Acontecendo uma vez, duas vezes, obrigando as pessoas a ter despesas... As coisas vão assumindo um sentido inverso. Agora temos uma imagem de que um agressor de um árbitro fica impune. Se acontecer algo, começa a sentir-se o inverso. Temos de começar nas coisas pequenas, não podemos esperar para atuar apenas quando há uma agressão.

Foi a isso que Hermínio Loureiro se referiu quando falou em "tolerância zero"?

Exatamente. As pessoas pensam 'se calhar não foi assim tão grave'. Pensaram isso quando, há alguns meses, vimos atitudes deploráveis de jogadores que não foram punidas. Agora, vimos uma agressão a um árbitro que o podia ter matado... É disto que estou a falar. Se calhar, quando o problema ainda é pequeno, é aí que temos de atuar.

Que medidas falta tomar?

Falta as Associações Distritais pegarem neste bom exemplo da Federação e, cada uma, aplicá-lo no seu distrito. Ou seja, tornar o policiamento obrigatório nos seus jogos, não só nos seniores e nos juniores A, como fez a Federação, como também nos juniores B e C. A nível distrital também tem de existir policiamento e deve ser assegurado pelos presidentes das Associações de Futebol. No mínimo, até ao final da época.

Será a Federação a arcar com os custos do policiamento?

Essa é uma parte que nós, arbitragem, não temos de falar. Quem tem de pagar, qual é o suporte... Queremos e defendemos que isto, não sendo apenas um problema desportivo, terá também de contar com a ajuda do Governo. É um problema público, que ultrapassa completamente a esfera desportiva. Tem a ver com princípios e outros fatores.

Retirar o policiamento obrigatório foi um erro governamental?

Não posso considerar que seja um erro governamental. Claramente, no meu entender, foi uma decisão precipitada. Não posso dizer que acho bem ou bonito que, especialmente na formação, onde temos de incentivar a prática desportiva e promover valores, aqueles jogos tenham de ter policiamento. Alguma coisa está mal. Acredito que foi precipitado. Devia ter-se feito um trabalho de mudança de mentalidades, começando pelas bases, para que não acontecesse isto. Naturalmente, teríamos de fazer um trabalho com os pais. Nos últimos 10, 15 anos, começou a jogar-se futebol mais cedo, desde os 3, 4 anos.

Os pais acompanham os miúdos em massa e isso é um problema que nos leva a outras coisas. Os pais pensam todos que têm um Cristiano Ronaldo em casa, a pressão sobre os miúdos aumentou imenso, a chegada das academias criou falsas ilusões na cabeça dos pais... Começaram a ver os miúdos a jogar futebol como um caso de vida ou de morte. Isto, em conjunto com os problemas que a sociedade atravessa, resulta numa panela de pressão.

Número de agressões tem-me tirado dias de sono 

Já se registaram 43 agressões esta época...

44. Houve uma nova agressão no domingo, em Aveiro.

O que é que aconteceu?

Um assistente, num jogo de seniores sem polícia, foi agredido por um espectador.

Acredito que se sinta em choque ao ver este número aumentar.

Digo isto com a maior sinceridade. Isto tem-me tirado dias de sono. É um problema grave. Torna-se corriqueiro dizer que, qualquer dia, aparece um árbitro morto. Está a criar um mal-estar na arbitragem que as pessoas ainda não perceberam. Isto condiciona o crescimento da arbitragem, a quantidade de miúdos que querem vir para a arbitragem, e é a partir daí que temos de alimentar a arbitragem. Temos a mania de pensar que o problema está em cima, mas é ao contrário. Porque é que andamos a criticar que haja árbitros tão novos na I Liga?

E qual é a resposta?

Se calhar não fomos alimentando a base como deve ser... Ao fazermos isto, estamos a matar a base. As percentagens de retenção de jovens árbitros é quase nula. Quem é o pai que quer deixar o filho tirar o curso de árbitro, para ganhar 50 euros por mês? Ter de se levantar ao domingo de manhã para ir fazer um jogo de iniciados para, nalguns distritos, ganhar cinco euros e meio, sujeitar-se a levar porrada e, ao fim do ano, o pai ainda tem de meter 200 euros, que foi o que o filho ganhou, no IRS. Sujeita-se o pai a subir de escalão ou o miúdo a perder uma bolsa escolar.

Estes problemas não trazem nada de bom para a arbitragem. Quando se fala em arbitragem, só se fala em quem vai apitar o Benfica, o Sporting, o FC Porto e companhia. Até lá chegar acima, há quatro mil nas bases a quem não ligamos de forma nenhuma. O Artur Soares Dias, que é o árbitro em melhores condições para apitar no Mundial, começou nos distritais. O Pedro Proença, que foi considerado o melhor árbitro português, também. Ninguém é árbitro de primeira categoria sem começar cá em baixo.

Na sua opinião, de onde surgiu escalada de violência?

Não podemos fugir àquilo que é factual. Se olharmos para 2012, quando se retirou o policiamento, não tivemos uma diferença imediata. É como tudo na vida, temos é de nos ir ajustando às evidências. O problema é que a sociedade e o futebol foram mudando. Em 2012, não havia tanto programa desportivo como hoje em dia, não se falava da arbitragem como se fala hoje. Criticava-se a arbitragem? Claro, mas não desta forma.

Não passávamos 35 horas por semana a falar de um árbitro. E isto está a acontecer e, por mais que tentemos fugir, tem influência nas bases. O facto de denegrirmos o papel e a imagem do árbitro no topo, naturalmente que, cá em baixo, faz com que se olhe para o árbitro com banalidade. Se o pai diz que o árbitro é corrupto, o filho segue o exemplo. Vamos criando esta imagem negativa ao longo dos anos. Não é a questão da saída do policiamento que provou a escalada na agressividade. A sociedade é que foi alimentando outros vícios que não foram abatidos.

O que é que a APAF pode fazer para reverter esse processo?

Foi por isso que disse que isto me tem tirado dias de sono. Não tenho qualquer problema em dizer que já tudo me passou pela cabeça. O que é que eu, o que é que nós, estamos a fazer? Sentimo-nos impotentes. Não podemos fazer nada se não tivermos ajuda de quem manda. Não vale a pena andarmos com ilusões. OK, paramos os campeonatos. OK, não apitamos amanhã. Isso não resolve o problema. Os árbitros estão no futebol porque gostam. Ao fazermos uma greve aos jogos, não vamos resolver nada. É óbvio que, a qualquer momento, se tivermos de o fazer, vamos fazê-lo. Mas não queremos ser o problema, queremos é que se olhe para isto como uma resolução.

Sentimo-nos impotentes. A única coisa que podemos fazer é chamar a atenção e pedir às instituições que nos ajudem a alterar isto. Não posso ficar indiferente a ligarem árbitros todos os fins de semana. 'Olhe, presidente, vou a sair do campo, um pai estava à espera de nós, mandou um murro e partiu-me o vidro do carro'. Há um árbitro que me diz que faltavam três minutos para acabar um jogo de miúdos de dez anos e apercebe-se de que um pai, que passou o jogo todo a chamar-lhe nomes, foi ao carro, trouxe um bastão extensível e ia dar-lhe com ele. Isto não pode acontecer. Não se trata só de arbitragem, trata-se da sociedade, de princípios…

Qualquer pessoa que pense em ser árbitro deve ser considerado um super-herói 

Com tudo o que se passa, por que é que alguém ainda pensa em ser árbitro?

Qualquer pessoa que pense em ser árbitro deve ser considerado um super-herói à nascença [risos]. É difícil responder a essa pergunta. Como é que um jovem ainda pensa em tirar o curso de árbitro depois de tudo isto... É difícil. Para mim, é fácil dizer aos jovens que a arbitragem é muito mais do que isto. A arbitragem é um mundo espetacular. Arranjamos amigos fantásticos, temos excelente formação. Pode dar-nos várias novas experiências, e essa é a parte boa.

O que é difícil é passar essa ideia a quem não esteja inserido na arbitragem. As pessoas dizem que a arbitragem é muito fechada, que este é filho de um árbitro e aquele também... É natural que assim seja, porque quem vive aquilo de dentro fá-lo com paixão. Eu sou um exemplo disso. Fui para a arbitragem quase que por obrigação e, depois de cá estar, é diferente. Árbitro uma vez, árbitro para sempre. Mas hoje em dia não é fácil transmitir isto.

Se soubesse que iria ter de lidar com tudo isto, teria avançado para a liderança da APAF?

É uma boa questão. Fiz uma equipa com pessoas ligadas às bases com o objetivo de fazer algo de diferente para credibilizar a arbitragem. Jamais pensei que teria de perder tanto tempo à volta de assuntos que, para mim, não deveriam ser assuntos. A minha equipa tinha de estar focada em outros projetos. Temos o projeto Arbitragem no Bairro, queríamos dar mais tempo e espaço aos jovens árbitros, queríamos trabalhar com as bases... Mas isto tem-nos tirado espaço, tem-nos desgastado.

Naturalmente que, se soubesse, teria pensado duas vezes. Certamente iria dizer que sim, porque gosto demais da arbitragem. Por vezes, fica é difícil perceber e dou por mim a pensar: 'Mas o que é que estou aqui a fazer? Não vou conseguir fazer nada'. Esses são aqueles dias difíceis, depois de ouvir situações tão graves e de lutar contra tanta coisa. Mas quero seguir o meu caminho e, juntamente com a minha equipa, desenhar uma estratégia. Queríamos credibilizar a arbitragem, mas nunca pensámos que teria de ser por esta via.

Trabalhou com José Fontelas Gomes na APAF. Agora que ele está no Conselho de Arbitragem, a relação continua a ser boa?

Existe uma boa relação. Trabalhei durante cinco anos com ele, sei perfeitamente a forma de pensar dele, o que quer para a arbitragem... Identificamo-nos nalgumas coisas. Ele está numa função em que gere a arbitragem, enquanto eu represento a arbitragem. Cada um tem o seu papel. Nem eu me posso imiscuir no trabalho dele, como ele não deve tirar o espaço da APAF. Cada um sabe bem o seu espaço e é assim que tem de ser para as coisas funcionarem tranquilamente.

Com tantas polémicas, o Conselho de Arbitragem não se devia já ter feito ouvir?

Como disse, a função do Conselho de Arbitragem é gerir a arbitragem. Cada equipa tem a sua forma de trabalhar e opta por uma estratégia. A estratégia do Conselho de Arbitragem tem sido esta, o que não quer dizer que não tem apoiado os árbitros. Sei perfeitamente que o presidente e os elementos do Conselho de Arbitragem estão em contacto permanente com os árbitros. Sempre que sabem de um problema destes, entram em contacto. Agora, se é público ou não, tem a ver com a estratégia de cada organização.

A greve continua em cima da mesa?

Todos os cenários estão sempre em cima da mesa e, naturalmente, essa questão da greve só surgirá em último caso. Enquanto continuar a acreditar na boa-vontade e na palavra das pessoas que estão à frente das instituições, essa será a última hipótese.

Os árbitros da primeira categoria solidarizam-se com o que se tem passado?

Sim, desde a primeira hora demonstraram essa solidariedade. Fazem-no é internamente, a associação de classes é que tem de os representar.

Chegámos a um ponto em que a arbitragem é um tema tão forte que também se deveria fazer representar nos debates televisivos?

Não será esse o melhor caminho. Uma coisa é utilizarmos ex-árbitros estarem nesses programas de uma forma construtiva. Outra é haver alguns ex-colegas que, de arbitragem, nada percebem atualmente. Estão desligados das leis atuais. Só estão a fazer o reverso da medalha e a alimentar a máquina de descredibilização da arbitragem.

*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.

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