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"O meu dever enquanto cozinheiro é trazer o mundo a Portugal"

Kiko Martins não é protagonista da típica história em que a certeza de que iria ser cozinheiro existiu desde criança. A bem dizer, os “fusíveis” apenas se ligaram quando estava a terminar o curso de Gestão e Marketing. E assim que mergulhou no mundo da culinária mais ninguém o parou.

"O meu dever enquanto cozinheiro é trazer o mundo a Portugal"
Notícias ao Minuto

18/04/17 por Daniela Costa Teixeira

Lifestyle Chef

Podíamos começar este artigo com a frase cliché de que a vida de Kiko Martins dava um livro. Mas já vamos tarde, pois essa foi uma das primeiras aventuras do chef: editar um livro depois de viajar pelo mundo e de se ter sentado à mesa com famílias de 26 países diferentes.

Kiko embarcou nessa aventura lado a lado com Maria Bravo, a sua esposa e mãe dos seus três filhos, mas, antes, já tinham estado os dois em Moçambique numa missão de voluntariado que ajudou a planear aquela que foi uma das experiências mais marcantes para Kiko: o projeto ‘Comer o Mundo’.

A vida do chef não só dava um livro como, na verdade, deu três. O terceiro, editado este mês pela Casa das Letras, espelha a sua missão enquanto cozinheiro: “trazer o mundo a Portugal” e partilhar todo o seu conhecimento (e receitas) sem reservas e sem mistérios.

“Acho que a grande alegria e maravilha da cozinha é quando nós partilhamos e ao partilharmos sejam receitas, sejam experiências tornamos-nos mais ricos”, contou-nos.

O Lifestyle ao Minuto esteve à conversa com o chef Kiko Martins, que não hesitou em defender a importância de dar valor às refeições feitas à mesa, independentemente se a culinária é a do nosso país ou não.

O principal risco que corremos, enquanto humanidade, é perdermos a importância da mesa e a mesa é muito mais importante do que a gastronomia portuguesa, francesa ou italiana

Da licenciatura em Gestão e Marketing passou para algumas das maiores cozinhas mundiais, deu um salto até Moçambique para fazer voluntariado e depois sentou-se à mesa com famílias de 26 países diferentes. Como é que este percurso deu vida ao Chef Kiko de hoje?

Não fazia a mínima ideia de que ia dar em cozinheiro, de que queria ser cozinheiro. Não sou daquelas pessoas que quando eram pequeninas sabiam exatamente aquilo que queriam. Eu só descobri que queria ser cozinheiro bastante mais tarde, mais ou menos com 21 anos. Estava na faculdade, estava a tirar Gestão e não estava propriamente satisfeito com o curso e na altura estava a trabalhar com sem-abrigo na Comunidade Vida e Paz e foi através do contacto com os sem-abrigo que comecei a perceber que gostava de trabalhar numa área que tivesse ligação entre pessoas e comida.

Depois comecei a ligar os fusíveis e a perceber que sempre tinha cozinhado muito quando era pequenino, que sempre tinha ajudado muito – eu venho de uma família com oito irmãos -, que sempre dediquei muito tempo da minha vida na cozinha quando era pequenino e depois comecei a perceber se não seria um caminho a seguir. Perguntei aos meus pais se fazia sentido ser cozinheiro, na altura ainda estava a tirar o curso de Gestão, e eles não concordaram com a ideia, disseram que era mais prudente eu tirar o curso de Gestão e à medida que ia tirando o curso ir trabalhando também em restaurantes para perceber se era uma mera curiosidade minha ou se era mesmo uma vocação. Acabei por fazer o curso superior e no final foi concretizar este sonho que começou a nascer com mais ou menos 21 anos.

Fui formar-me para fora, formei-me em França, fiquei algum tempo a trabalhar por lá, é sempre uma zona muito importante em termos gastronómicos é uma certa capital da gastronomia mundial, se é que podemos dizer assim. Depois voltei para Portugal, penso que em 2003, estive no Eleven, na abertura do restaurante em Lisboa, estive lá cerca de oito meses. Abri o meu primeiro restaurante, que era um restaurante pequenino, assim mais simples e mais descomplexado, chamava-se Masstige, ficava no centro de Lisboa.

Conheci nessa altura a Maria, apaixonei-me e decidimos largar tudo, eu largar o restaurante e ela largar o emprego que tinha, para partirmos como voluntários para Moçambique. Estivemos um ano em Moçambique e nesse ano construímos um projeto que passava por estar nesses 26 países de que falava há pouco com 26 famílias diferentes. Fizemos essa epopeia pelo mundo durante 14 meses e depois voltámos para Portugal e começámos a fazer filhos, já fizemos três e depois fui fazendo o meu trabalho em restaurantes, abri primeiro O Talho, depois A Cevicheria e agora O Asiático.

Todas estas passagens e cruzamentos de culturas – incluindo a brasileira, tendo em conta que o Kiko nasceu lá – têm peso nas suas criações culinárias?

O nosso paladar foi aprendendo e ganhando ao longo dos anos. Nós somos muito fruto daquilo que comemos em nossas casas, das experiências gastronómicas que fomos tendo ao longo da vida, por isso, garantidamente, os países por onde passei, a educação que os meus pais me deram, o facto de ter uma mãe transmontana, o facto e ter nascido no Brasil e o facto de ter passado por esses países todos leva a que todos esses fatores tenham muita influência na cozinha que eu gosto e que pratico.

Uma das coisas mais fantásticas do bicho humano é que nos vamos sempre adaptando a tudo e mais alguma coisaO chef sentou-se há mesa com 26 famílias. Acha que as refeições feitas à mesa e rodeadas de pessoas continuam a ter importância? Tendo em conta que estamos numa era em que o tempo para comer é quase sempre escasso…

Uma das coisas mais fantásticas do bicho humano é que nos vamos sempre adaptando a tudo e mais alguma coisa à qual vamos garantidamente voltar atrás, talvez se sinta isso mais na Índia e na China, nestes novos colossos mundiais demográficos a mudar a sua classe social, é que vamos voltar a dar uma relevância cada vez maior à mesa, porque isso é uma das coisas mais importantes para o equilíbrio das pessoas e para a transmissão de valores na família.

A minha geração cresceu muito à volta de uma mesa e ainda hoje partilhamos muito tempo à volta de uma mesa, mas estas gerações mais novas vivem numa mesa com telefones, com computadores, com televisão, com uma série de outras coisas.

Esta mudança social é muito evidente nestes países como a Índia e a China. Vendo assim é mais fácil de perceber: Um avô chinês foi alguém que passou fome, um pai chinês já não passará tanta fome, agora um filho chinês tem de comer tudo, tem de comer McDonald’s, porque é a melhor coisa possível para os pais este sentimento de dar tudo.

Não quero guardar receitas para mim, nem quero morrer e levar o segredo do meu pastel de bacalhau para o caixão. A grande alegria e maravilha da cozinha é quando partilhamosAcabou de lançar o seu terceiro livro. Tendo em conta que a culinária vive dos sentidos do paladar, visão e olfato, o que leva um chef a escrever?

Aquilo que leva a escrever é a vontade de deixar rasto e partilhar. Quando alguém me pede uma receita d’A Cevicheria, d’O Talho ou d’O Asiático ou de algum sítio, eu dou a receita integral, ou seja, eu não quero guardar receitas para mim, nem quero morrer e levar o segredo do meu pastel de bacalhau para o caixão. Acho que a grande alegria e maravilha da cozinha é quando nós partilhamos e ao partilharmos sejam receitas, sejam experiências tornamos-nos mais ricos.

A presença em programas de culinária televisivos tem-lhe trazido a notoriedade esperada?

Em boa verdade, nunca esperei notoriedade, nem trabalhei para ela. Ainda antes de dar a volta ao mundo, nem contava escrever para o Expresso na altura, nem contava fazer filmes. As coisas apareceram do nada, o convite do Expresso apareceu por acaso e, também por acaso, tinha levado uma máquina de filmar que me tinham oferecido dois dias antes da volta ao mundo e as coisas foram aparecendo. Lembro-me do primeiro casting em que participei e que ia tudo menos preparado e as coisas aconteceram naturalmente. A notoriedade ajuda, mas também traz alguma responsabilidade, que é sabermos estar à altura e sabermos passar a mensagem correta em todos os momentos.

Para defender a gastronomia portuguesa, acho que há outros cozinheiros muito mais competentes do que euTem três restaurantes diferentes com culinárias diferentes. Porque é que optou por estes três mundos?

Acho que o meu dever enquanto cozinheiro é trazer o mundo a Portugal, trazer conceitos diferentes. Para defender a gastronomia portuguesa, acho que há outros cozinheiros muito mais competentes do que eu. Acho que aquilo que posso dar a Lisboa e a Portugal são experiências que trago do mundo, o facto de ter nascido no Brasil, de ter tido a sorte de conhecer o mundo. Ainda hoje opto muito por viajar. Viajar é carregar o nosso GPS com novos mapas, gastronómicos ou não e que podemos vir a usar ou não. Acho que quando viajamos aprendemos, quando viajamos crescemos, quando viajamos saímos do nosso umbigo e penso que isso é fundamental.

Temos assistido a um crescimento do número de restaurantes temáticos em Portugal, especialmente em Lisboa. Não corremos o risco de deixar a culinária portuguesa para segundo plano nas escolhas dos próprios portugueses?

Acho que não, o principal risco não é deixar a culinária portuguesa, a francesa, a italiana, não é nada disso. O principal risco que corremos, enquanto humanidade, é perdermos a importância da mesa e a mesa é muito mais importante do que a gastronomia portuguesa, francesa ou italiana. A mesa é o polo unificador das pessoas, é o lugar onde culturalmente passamos os nossos valores, passamos as nossas tradições, passamos a educação. Nós crescemos à volta de uma mesa, é numa mesa que vemos a educação de uma pessoa, é à mesa que se fazem negócios. Foi à mesa que entre-aspas ou sem aspas nenhumas que Jesus se despediu dos amigos. Foi à mesa que muitos episódios importantes da história da humanidade aconteceram.

Esta velocidade vertiginosa em que muitas vezes vivemos, leva-nos a pôr a mesa de lado e acho que comer com as mãos ou comer em pé não é o caminho

Acho que comer sentado, comer devagar, sabe mastigar e saber olhar nos olhos das pessoas que estão à nossa frente, sabermos rir de nós próprios, sabermos ver o ridículo que é muitas vezes as nossas vidas e sabermos rir com isso, acho que isso é a coisa mais importante na gastronomia.

Os portugueses têm muito o hábito de dizerem que a nossa culinária é melhor do que a dos outros. Partilha da opinião? A nossa gastronomia destaca-se das demais?

Se tivesse nascido na Índia, diria que a gastronomia indiana é melhor do que as outras. Se tivesse nascido no Nepal, diria que a gastronomia nepalesa é melhor do que as outras, percebe? Eu adoro a gastronomia portuguesa porque eu como a gastronomia portuguesa desde que nasci. É aquela típica história de qual é o melhor café. É o café português, aquele cafezinho pequenino, forte e intenso? Ou é aquele café brasileiro mais aguado? Para o português é o intenso, tem muito a ver com a nossa história de paladar, o património do paladar.

Qual o futuro da gastronomia? Que alimentos e tipos de confeção estarão em destaque no futuro próximo?

O futuro da gastronomia passa, cada vez mais, por produtos com pouca pegada ecológica no seu transporte, na sua origem, na sua criação. Passa cada vez mais pelo consumo de legumes, de coisas mais leves, mais saudáveis e, inevitavelmente, vamos ter uma grande guerra para travar com os grandes inimigos da gastronomia, que são o sal e o açúcar.

Vamos ter sempre de ser muito inteligentes nesta guerra, porque vai ser sempre uma guerra entre o David e o Golias, pois é cada vez mais barato comer-se mal e cada vez mais caro comer-se bem. Para fazer uma boa refeição saudável, com bons legumes, com um bom peixe paga-se mais do que ir a uma hamburgueria comer um hambúrguer com um pão feito com açúcar e tudo e mais alguma coisa. Esta vai ser a grande dificuldade da alimentação.

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