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"Vir para o Chapitô não é estilo. A Teté é fixe mas trabalha 24 horas"

O Chapitô foi ideia de Teresa Ricou, primeira mulher palhaço portuguesa. Hoje em dia, é uma "máquina infernal" em funcionamento, uma que fomos conhecer pela voz de quem a fundou.

"Vir para o Chapitô não é estilo. A Teté é fixe mas trabalha 24 horas"
Notícias ao Minuto

17/03/17 por Pedro Filipe Pina

País Teresa Ricou

Para os lados do Castelo de São Jorge, numa das colinas de Lisboa, há um espaço de paragem obrigatória para muitos turistas, pela vista sobre a cidade e pelo ambiente agradável.

Mas entre aquelas quatro paredes há cores, há arte e uma escola que tem no circo a sua força e na inclusão a sua génese.

Falamos do Chapitô, espaço fundado pela primeira mulher palhaço de Portugal, Teresa Ricou, uma mulher que entre o cómico e o sério nos fala com orgulho do que ali se faz.

À primeira pergunta, a entrevistada devolveu-nos alguns segundos de silêncio enquanto acabava de escrevinhar uma frase. Depois a conversa começou.

O Chapitô é escola, é circo, é bar, é local de espetáculos. O Chapitô que conhecemos hoje em dia é o que tinha imaginado quando o fundou?

Sem dúvida e é preciso muita força para o manter. Claro que as coisas evoluem, mas a orientação, a ação social ligada à cultura, a economia social com a parte artística mantém-se e só assim é que isto tem sentido e dá realmente oportunidade a todos de inclusão social e de realização pessoal.

Quantas pessoas compõem agora o universo do Chapitô?

São muitas e nós até lidamos com jovens de centros educativos, jovens que estão presos. Temos à volta de 400 jovens por dia aqui e a trabalhar são 90 pessoas. Se me perguntasse se o voltava a fazer? Não, não voltava a fazer… só porque espero deixar esta obra feita e com este modelo, até porque se coisas como o Chapitô aparecessem em cada bairro eu nem era precisa, estava a curtir a minha cena de ser Teté.

Está-se a trabalhar em cima do trapézio e se se enganar é a morte do artistaAinda se associa muito à escola e à educação a notas, testes e avaliações. Como é que o Chapitô se enquadra neste mundo?

É fundamental educar, sobretudo, para a cidadania. Importa o onde estamos hoje, o agora e para onde vamos. O passado é interessante mas tem de ser bem escolhido. O ensino em si está completamente fora de prazo porque os miúdos não vão aprender. Sem ser utópica, claro que é preciso aprender. Está-se a trabalhar em cima do trapézio e se se enganar é a morte do artista. Mas há muitas formas de ensinar e educar para a cidadania no dia a dia e, nesse sentido, é mais importante e apelativo até para os miúdos ter a prática e depois, em cima da prática, teorizar sobre.

É preciso responder à ansiedade desta gente jovem. Nós aqui trabalhamos com jovens que já prevaricaram muito na vidaÉ um modelo pensado, o do Chapitô.

É aí que entramos em relação estrita com as universidades porque ali há pessoas que se dedicam a esses estudos. Mas tem de ser reestruturada esta forma de ensinar. Eu trabalho com a parte artística mas aqui também se trabalha com a matemática, com o português, com a geometria descritiva, com a história das artes… tem de haver uma interdisciplinariedade constante porque as coisas têm de estar em ligação umas com as outras. Nada disto é separado. Isso é como o mundo está e nós temos de nos juntar e ter um pensamento coletivo. Mas sinto que estamos numa fase com um bom pensamento no ministério da Educação. Parecem-me interessados em perceber melhor como se lá chega porque é preciso responder à ansiedade desta gente jovem. Nós aqui trabalhamos com jovens que já prevaricaram muito na vida.

Estamos a falar de miúdos com percursos complicados. Como é a adaptação?

Eles chegam aqui após terem passado pela medida tutelar, estão cá por opção deles. Mas são miúdos que não tiveram sorte na vida e o mundo não está para brincadeiras. Aqui fazem o secundário, tem sido um sucesso e cada vez mais estão a sair daqui miúdos encantados. Descobrem outros mundos e que também têm palavra, que também são cidadãos do mundo. E percebem que se tivessem tido outras oportunidades não teriam caído no problema

Também trabalham com jovens colocados em centros educativos.

Sim, fazemos a parte de animação sócio-educativa, em complemento com os centros educativos. Trabalhamos com três centros educativos, Caxias, um centro de porta fechada, Bela Vista e Navarro de Paiva. Quando é possível, trazemo-los cá, acompanhados pelos técnicos.

O padre Américo já dizia, "não há rapazes maus". Pois não, os adultos é que têm de estar em cima do assuntoÉ uma visão do mundo diferente que lhes dão?

Completamente e eles sabem estar. São uns príncipes, nós os adultos é que temos mesmo de nos pôr a refletir sobre o que estamos cá a fazer. Toda a gente quer ficar bem na fotografia, podemos pintar-nos, mas estes jovens não podem pintar a cara porque já prevaricaram. E nós adultos estamos muito desatentos ao que acontece. O padre Américo já dizia, “não há rapazes maus”. Pois não, os adultos é que têm de estar em cima do assunto. Foi muito difícil encontrar uma bela equipa, foi feita ao longo de 20 anos, mas não é fácil lidar com estes miúdos, é preciso estômago e a parte burocrática muitas vezes atrapalha. Mas eles vêm para cá e muitas vezes encontram aqui as suas paixões, a sua vida afetiva é resolvida, e seguem o seu caminho. Muitos deles até já estão lá fora e como grandes artistas

As artes performativas são um meio pequeno em Portugal. É difícil?

Tem corrido bem, [os estudantes] têm saído daqui e montado as suas vidas, a descoberta das suas competências tem sido um sucesso e eu fico muito satisfeita. Isto deu muito trabalho, são quase 40 anos de vida, não estou de barriga cheia, que tive aqui percalços que me deram a volta ao estômago, mas estou satisfeita. Valeu a pena.

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Há um espírito Chapitô?

Há e às vezes fico enervada com um certo lado disso, de quando é estilo. Pá, se vens para o Chapitô não é estilo. “Ah a Teté é fixe”, a Teté é fixe mas trabalha aqui 24 horas. Isto tem trabalho e depois tens a tua própria identidade. O estilo compra-se feito e isto não é coisa de moda. Aliás, com tantos anos até já passou de moda.

Consegue combinar a exigência e o improviso?

É um problema mas tem de ser. Incomoda muita gente mas tem de estar sempre, porque senão é vender gato por lebre e isto tem que dar certo. Caso contrário os miúdos viram-se às cordas e a corda rebenta. A corda é material e os materiais têm de estar sempre em manutenção.

Pá, se vens para o Chapitô não é estilo. “Ah a Teté é fixe”, a Teté é fixe mas trabalha aqui 24 horasE planos futuros?

[Risos] Agora é arranjar marido, a ver se alguém me quer, e correr o mundo num cruzeiro.

Mas já pensou na reforma?

Quem vive aquilo que gosta todos os dias não precisa de ter reforma. Estou bem, não estou a pensar sair daqui tão cedo, também gostava de entrar em cena mas não sei quando. O meu futuro é este, que eu construí e para muita gente.

A máquina do Chapitô já funciona sozinha?

Acho que sim mas ainda não tenho a certeza

E a Teresa e o Chapitô. Ainda são muito indissociáveis?

São, mas é como ter um filho. Um filho é filho a vida inteira, até pode ser um bandido mas é filho. Estou cá para o que der vier mas estou sobretudo para quem vier e der.

É muito diferente o Portugal de quando o Chapitô nasceu e o país de hoje em dia?

Eu sou uma privilegiada. Fui das que fez a revolução. Tive a oportunidade de ter decidido vir para cá quando estava bem instalada em Paris. Quanto à mudança, a democracia tem coisas destas, como tudo na vida. Tem um lado positivo e um negativo. Democracia é isso: vamos acertando, vamos falando, temos todos a palavra.

Às vezes perdemo-nos com o excesso de consumo, esse novo-riquismo que por um triz esteve aqui instalado. O vulcão está em ebulição e há que estar prevenido porque a prevenção é sabedoriaHoje em dia acho que estamos num bom momento. O resto do mundo está em convulsão e Portugal neste momento é um paraíso. Nós, portugueses, somos fantásticos, um país de marinheiros e marinheiras, com gente a olhar para a frente. Mas não basta estarmos sossegados a dizer que isto é muito bonito. Há que pensar no que temos a dar a mais. Somos bons naquilo que fazemos. Por isso temos portugueses tão bons lá fora, mas também temos de os ter bons cá dentro.

A qualidade não está na grandiosidade. Não é nas grandes superfícies que a qualidade se vê. Aí as pessoas perdem-se. Há que voltar aos pequenos espaços. Às vezes perdemo-nos com o excesso de consumo, esse novo-riquismo que por um triz esteve aqui instalado. O vulcão está em ebulição e há que estar prevenido porque a prevenção é sabedoria.

Está mais otimista em relação ao país?

Estou. Gosto do [António] Costa, conheço-o desde pequenino, era muito amiga do pai dele. Sinto-me tranquila com ele mas isso não traz muito à felicidade de uma pessoa. Mas se cada um estiver consciente do que está a fazer e a pôr ao serviço das pessoas os seus melhores conhecimentos, porreiro.

Houve algum grande susto com o futuro do Chapitô?

Sim, vários, mas a vontade de fazer é gene. O meu pai era médico da lepra. Quem cura leprosos… consegue explicar à filha que tudo tem cura, por isso uma pessoa não pode desistir e eu não desisto. Se um dia me corre pior é uma chatice mas o dia seguinte corre melhor de certeza.

*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.

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