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"Associar o jihadismo à religião é apanhar o isco que nos foi deixado"

Autor do livro 'Jihadismo Global - dos Problemas aos Atos', Felipe Pathé Duarte aponta o dedo ao Ocidente no que à radicalização dos jovens europeus diz respeito. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o professor universitário explica o que está na origem dos problemas com o acolhimento dos refugiados e destaca a geração niilista que é a que está mais vulnerável à narrativa jihadista.

"Associar o jihadismo à religião é apanhar o isco que nos foi deixado"
Notícias ao Minuto

10/11/16 por Patrícia Martins Carvalho

País Terrorismo

O Ocidente é o responsável pela radicalização dos jovens europeus, da mesma forma como é autofágico e odeia aquilo que ele próprio representa. Quem o diz é o especialista em terrorismo, Felipe Pathé Duarte, que conversou com o Notícias ao Minuto e falou sobre a questão dos refugiados, acautelando o facto de não ter sido o extremismo religioso que se tornou violento, mas sim o radical e violento que açambarca a religião. Um dos principais perigos é o da polarização da sociedade que é também um dos objetivos do Estado Islâmico.

A Europa soube lidar com o problema dos refugiados?

Acima de tudo é importante fazer uma destrinça e não relacionar os refugiados com o 13 de Novembro. Não é do foro ficcional que entre os milhares de refugiados que chegam à Europa estejam jihadistas, mas não é em grande escala.

Então porque é que têm havido tantos problemas no processo de acolhimento?

Tem a ver com a crise económica e com a falta de solidariedade entre os próprios países da União Europeia da fronteira. A Europa tem de se adaptar e tem de reformular um conjunto de políticas. A questão dos refugiados está a entrar no bom caminho. Há uma consciencialização muito maior do problema e há uma solidariedade que foi forçada. É fundamental que as zonas principais de onde vêm os refugiados estabilizem. Um refugiado quer regressar à zona de onde partiu.

Estes refugiados vão querer regressar?

Um refugiado foge porque deixou de ter possibilidade de existir no seu local de origem. Muitos regressarão, não serão todos, mas eles têm vontade de regressar. Um refugiado não é um migrante, é diferente, um refugiado foge porque se não foge morre. O migrante é aquele que vai à procura de melhores condições de vida do ponto de vista económico, enquanto o refugiado é um deslocado existencial, alguém que se desloca para poder existir, porque se se mantiver no sítio onde está deixa de existir. Temos é de pensar o que leva os jovens a quererem aderir ao Islão, isso é um problema, não os refugiados.

E o que é que leva os jovens europeus a aderirem ao jihadismo?

O que é preciso perceber é que a ameaça está cá dentro, nos bairros problemáticos, numa geração niilista desprovida de uma dimensão ideológica e que está completamente permeável a uma narrativa que lhes permita passar das palavras aos atos para alterar a sua própria condição. E a verdade é que, neste momento, a narrativa mais eficaz para isso é a do Estado Islâmico. Temos de perceber porque é que jovens ocidentais perfeitamente inseridos na sociedade se sentem atraídos por essa narrativa.

Um refugiado não é um migrante, é diferente, um refugiado foge porque se não foge morreE porquê?

Posso dizer, usando as expressões de Olivier Roy, que há uma ausência total de uma dimensão ideológica. A radicalização sempre aconteceu na Europa, é um facto, mas neste momento fruto de varias alterações políticas, sociais e geopolíticas (final da Guerra Fria) é uma espécie de condição pós-moderna que leva a que essa radicalização crescente esteja desprovida de sumo ideológico. O que acontece é que no desprovimento desse sumo ideológico de repente, de alguma maneira, há uma sensação de pertença e identidade que justifica a violência, ainda por cima em nome, supostamente, de um Deus. Essa narrativa ideológica justifica e legitima a violência para alterar a condição.

Mas isso faz sentido quando falamos de pessoas que vivem em bairros problemáticos e não estão inseridas nas comunidades, o que não é o caso dos lobos solitários que são caucasianos e a quem não falta nada, nem dinheiro, nem estudos.

Há uma geração niilista nascida depois da Guerra Fria que é criada e forjada nas expetativas que a sociedade ocidental cria, mas que acaba por não alcançar e cumprir essas expectativas. Ao longo desse período há uma ausência total de dimensão ideológica e de valores. Desde o final da Segunda Guerra, quer a extrema-esquerda, quer a extrema-direita tinham sempre meta-narrativas que justificavam um conjunto de situações e o próprio processo de radicalização. Nada disso hoje resolve as ansiedades que estes jovens têm. Há uma geração completamente alienada que está ávida para receber uma outra qualquer ideologia que lhe permita o não cumprimento de expetativas.

E neste momento a narrativa que melhor é feita é indiscutivelmente a da jihad porque dá a sensação de identidade, de pertença e dá ao mesmo tempo a possibilidade de aparecer com cabeças decepadas e com metralhadoras numa rede social.

É isto que leva jovens europeus a radicalizarem-se. Tem a ver com um vácuo pós-moderno. É a própria condição pós-moderna, o vazio ideológico e meta-narrativo que a condição pós-moderna veio criar, a relativização total de um conjunto de valores que tornou esta geração permeável.

Fala muitas vezes na geração niilista. O que é esta geração?

É a geração do Facebook, do Twitter... A experiência da selfie, por exemplo, não é um contar, é um experimentar. Muitos destes jovens vivem isso, vivem nesse mundo da experimentação permanente onde não há, na verdade, experiência. Apontam-lhes o mundo à distância, mas tiram-no. Isto baralha e ajuda à falta de pertença. É a ideia de Jean Baudrillard, do simulacro, em que se simula a realidade, mas a certa altura a simulação é tão real e tão parecida ao real que se torna realidade simulada e há jovens que vivem nesta dimensão todos os dias.

É correto falar-se num extremismo religioso que se tornou violento?

Não, é o contrário, é o radical e violento que, na ausência de uma dimensão ideológica que justifique e catalise esse seu processo de radicalização, vai buscar aquela narrativa que justifica a ação violenta.

A ideologia jihadista é em si altamente ocidental, não é uma coisa necessariamente islâmicaQuando dizemos que é um problema religioso não é. A jihad não é um excecionalismo violento do Islão, é uma ideologia envolvida por elementos religiosos islâmicos que ajuda ao processo de justificação. Este é o efeito retórico da religião porque dá um enquadramento ótimo. O Islão é perfeito para isso porque não consegue separar a dimensão política da dimensão religiosa.

E isso leva-nos à polarização da sociedade pretendida pelo Daesh...

Vermos isto como um problema religioso é errado, porque ao analisar isto como um problema religioso vemos um problema no Islão. Quem são os islâmicos? São os muçulmanos, portanto logo à partida todos os muçulmanos serão jihadistas e violentos. Está errado. Ao pensar-se nisso, imediatamente há a polarização das sociedades, havendo polarização há medo e desconfiança, havendo desconfiança põe-se em causa as dinâmicas do poder político e assim se criam poderes mais fortes que vão cortar as nossas liberdades, garantias e direitos que são a base do princípio europeu. Ao fazer isto cria-se uma ainda maior bolsa de ressentimento naqueles que vão sofrer essa mesma influência, ao criar uma maior bolsa de ressentimento criam-se bolsas de recrutamento e aí é que está o problema. E assim o jihadista vem justificar: “é legitimo tu, muçulmano, pegares em armas porque o Islão se encontra sob ameaça”. Temos de desconstruir permanentemente isto. Quando associamos estas questões à religião ou aos refugiados estamos a apanhar completamente o isco que nos foi deixado.

A responsabilidade pelos processos de radicalização dos jovens europeus é então do Ocidente?

Totalmente. O Ocidente é autofágico. O principal ódio a tudo aquilo que o Ocidente representa é do próprio Ocidente. A ideologia jihadista é em si altamente ocidental, não é uma coisa necessariamente islâmica. É enquadrada por uma retórica islâmica, isso é indiscutível. Eles lutam contra o individualismo em que todas as coisas têm um preço - o World Trade Center representava o local onde tudo tinha um preço e onde havia ausência daquilo que eles procuram que é uma comunidade orgânica. No fundo, o que eles providenciam é uma espécie de pack identitário que dá a sensação de pertença contra um individualismo progressivo da sociedade ocidental e é isto que tem de se combater.

Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.

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