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"Enquanto os EUA alimentarem o conflito militarmente, ele pode manter-se"

Diana Soller, professora e investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade NOVA de Lisboa, é a entrevistada desta terça-feira do Vozes ao Minuto.

"Enquanto os EUA alimentarem o conflito militarmente, ele pode manter-se"
Notícias ao Minuto

16/08/22 por Teresa Banha

Mundo Ucrânia/Rússia

A poucos dias de se assinalarem seis meses de guerra na Ucrânia, o Notícias ao Minuto tentou perceber quais os próximos desenvolvimentos que podem ocorrer neste conflito, que teve início a 24 de fevereiro.

Sem fazer futurologia, mas colocando as cartas na mesa,  a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais Diana Soller falou nas relações dos países da União Europeia (UE) - o que veio para ficar e o que poderá mudar -, no eventual isolamento da população russa e do peso dos Estados Unidos (EUA) neste conflito.

Também a eventual proibição de vistos à população russa foi tema de conversa, já que esta foi uma ideia defendida pelo presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, em entrevista ao Washington Post. Os países que fazem fronteira terrestre com a Rússia fazem parte dos que mais estão "entusiasmados" com esta ideia, explica a especialista em Relações Internacionais e Ciência Política, convidada esta terça-feira para o Vozes ao Minuto

Parece-me que começa a haver na Europa países que não estão dispostos a entrar nesse esquema de continuar a sancionar a Rússia

Ao longo destes quase seis meses de guerra na Ucrânia, a União Europeia já aplicou sete pacotes de sanções contra a Rússia - e outras medidas sancionatórias foram aplicadas por países como os Estados Unidos, Reino Unido, entre outros. Ainda há sanções por aplicar?

Vai ser muito complicado a partir de agora. Não me parece que possa haver um grande pacote de medidas a surgir a partir do momento em que as sanções atingiram o petróleo e há uma escassez muito grande de gás na Europa - até porque daqui para a frente vamos ter cada vez mais oposição de países europeus, como a Hungria. Veremos também qual será o novo governo de Itália, que poderá também opor-se a novas sanções à Rússia. Apesar de eu ter dito muitas vezes - e repetir - que o consenso europeu tem sido admirável, muito fora do vulgar e muito mais rápido e assertivo do que esperávamos, daqui para a frente parece-me que a tendência é que haja dificuldades.

Quer dizer que os grandes pacotes de sanções podem ter um fim à vista?

É possível que venham a haver mais pacotes de sanções, mas ao mesmo tempo vejo grandes dificuldades para concluir [a negociação] - pelo que expliquei. Parece-me que começa a haver na Europa países que não estão dispostos a entrar nesse esquema de continuar a sancionar a Rússia.

Quais podem ser as alternativas?

O que poderá acontecer é que, em vez de grandes pacotes de sanções - que são possíveis com muita negociação -, poderá também haver pequenos atos sancionatórios, como os Estados Unidos e o Reino Unido têm feito a determinadas pessoas, empreendimentos ou empresas.

Fala de uma "tendência para que haja dificuldades". Referia-se a atritos entre os 27 [estados-membros da UE]?

Não necessariamente no sentido de atrito. Penso que a Europa se reorganizou de uma maneira que, a menos que aconteça qualquer coisas inesperada, já começa a haver um caminho sólido - o rearmamento de um conjunto de países, o comprometimento de outros países com mais apoio financeiro à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), a eventual entrada da Finlândia e da Suécia na NATO, a admissão da Ucrânia e da Moldova como países candidatos à União Europeia ou o pacote de solidariedade relativamente à energia - apesar das exceções. Penso que é uma tendência para continuar. 

No entanto, penso também que há países que apresentam cada vez maior dissonância relativamente à Europa. Sempre houve - e continuará a haver - dissonância para decisões não tão grandes - como esta última de negar aos russos vistos para entrarem na Europa. Essas dissonâncias não são irrecuperáveis, mas existem. Mas a democracia é isto. É dissonância, consenso, dissonância, consenso, dissonância, consenso. Vamos ver como é que tudo isto se desenvolve. É muito difícil fazer futurologia num cenário de guerra. Se as coisas já são voláteis em cenários de paz, em cenários de guerra são muito mais complicadas.

A Rússia já é um país tão fechado que, se nós lhe negarmos a possibilidade de conhecer outras realidades, estamos a reforçar o regimeA ideia de proibir os vistos à população russa foi posta em cima da mesa pela primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin. Dias depois, Zelensky defendeu a mesma a ideia numa entrevista ao Washington Post. "Qualquer tipo de russo/a... Façam-no/a ir para a Rússia", afirmou à publicação dos Estados Unidos. O que acha desta ideia?

É um erro. Não há outra forma de lhe chamar.

Porquê?

Os cidadãos russos estão permanentemente sujeitos a uma propaganda antiocidental da qual faz parte uma narrativa sobre russofobia europeia e americana, que foi algo que nunca se verificou verdadeiramente. Medidas destas são presentes que a União Europeia dá aos dirigentes russos para provar a falsa verdade de que a Europa ou os Estados Unidos são russófonos. É um absoluto erro estratégico que vai aumentar brutalmente o antiamericanismo e o antieuropeísmo da população russa - e que não vai ter efeitos evidentes na guerra.

Há outros motivos?

A Europa tem uma tendência Kantiana hospitaleira e poderá haver russos mais esclarecidos que queiram sair da Rússia. A partir do momento em que a Europa lhes fecha a porta, essa possibilidade diminui drasticamente. [É uma medida que] vai contra os valores europeus.

No fundo, se a guerra obriga muitos ucranianos a sair do país, esta medida obrigará muitos russos a permanecer no seu?

Exatamente. Mesmo contra a sua vontade. 

Os motivos pelos quais considera esta medida um erro ficam por aqui?

Em 3.º lugar (e último), a Rússia já é um país tão fechado que, se nós lhe negarmos a possibilidade de conhecer outras realidades, estamos a reforçar o regime. Ao sancionar uma população que não tem propriamente responsabilidade estamos a cometer um erro estratégico contra nós. 

E por que razão essa esta medida pode ser um 'tiro no pé'?

Na tradição europeia e americana de guerra há sempre uma tendência para distinguir entre as elites e os militares - aqueles que verdadeiramente fazem a guerra -  e a população, que é sempre vista como inocente. Neste caso, seria a negação deste princípio, que me parece um princípio muito salutar - mesmo num contexto em que praticamente nada tem um aspeto benigno. Ao amputarmo-nos livremente deste princípio - que define o nosso caráter enquanto povos em guerra - estamos a dar um passo atrás nas nossas conquistas relativas aos direitos humanos.

É um princípio que não se deve perder?

Este é um bom princípio, que distingue a Europa e os Estados Unidos do resto dos países no mundo. É importante que se mantenha porque, no fundo, faz parte da nossa identidade e dos valores que construímos no pós-Segunda Guerra Mundial - e que nos fizeram acreditar que tínhamos chegado a um patamar de superação da guerra. Percebemos que não chegámos a um ponto de superação da guerra. Não podemos é esquecer-nos de tudo aquilo que aprendemos e ensinámos a nós durante esses 70 anos de paz.

É possível que a proibição de vistos à população russa avance na União Europeia?

Há países que parecem muito entusiasmados com a ideia e que poderão, enquanto estados soberanos, negar vistos a cidadãos russos.

Que países são esses?

Os estados bálticos [Estónia, Letónia e Lituânia] estão muito entusiasmados. A primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas, disse, na semana passada, que "visitar a Europa é um privilégio, não um direito humano". Isso faz precisamente aquilo que eu não gostava que a Europa fizesse. É possível que haja países da União Europeia que neguem a entrada, mesmo que façam parte do espaço Schengen. Na fronteira, são esses países que soberanamente negam ou não vistos de entrada. É possível que isso aconteça na Europa - para grande descontentamento meu. Não acho desejável.

Se esta medida vier a acontecer, vai violar alguns dos princípios a que nos habituámos a ver o Ocidente desenvolver nos últimos 70 anos.

A Hungria tem sido um agente desestabilizador das medidas que a União Europeia quer tomar relativamente à Rússia no sentido de a defender. É  esse o papel da Hungria - que, de alguma maneira, é semelhante ao papel da Turquia na NATO 

Então, a partir de agora, a Hungria poderá não ser a única 'pedra no sapato' na União Europeia?

A questão não é exatamente a mesma. A Hungria é vista como pedra no sapato, porque há uma ligação muito forte entre a Hungria e a Rússia, que, ao contrário de outras ligações históricas que havia - da Alemanha, da Itália ou até da França com a Rússia - não se quebrou durante este conflito. A Hungria - sem nunca deixar de pertencer à União Europeia e sem nunca querer sair - tem sido um agente desestabilizador das medidas que a União Europeia quer tomar relativamente à Rússia no sentido de a defender. É  esse o papel da Hungria - que, de alguma maneira, é semelhante ao papel da Turquia na NATO. 

O que se passa com alguns países, entre eles os bálticos ou a Polónia, é que são países que sentem a proximidade russa de uma forma muito forte. E estão tentados, muitas vezes, a ter atitudes mais agressivas com a Rússia - até por causa do seu passado, quer pertencendo ao Pacto de Varsóvia ou tendo estado mesmo dentro da União Soviética. A Finlândia é outro caso.

A Hungria também tem tido um papel importante, mas é um papel de sinal contrário - é o único estado da União Europeia que, indiretamente pela sua relação privilegiada com a Rússia, tenta atrasar e por paus na engrenagem para que a Europa não tenha capacidade de sancionar a Rússia com a severidade que seria desejável. São dois casos completamente diferentes.

Esta acordo [de exportação de cereais] é muito conveniente para a Rússia.Assistimos este mês ao recomeço das exportações de cereais produzidos na Ucrânia, e que nos últimos meses estava bloqueada pela presença russa nas águas ucranianas. Podemos ver a assinatura deste acordo como uma cedência da Rússia?

Do meu ponto de vista não é cedência nenhuma. O que se passa é que a Rússia não quer ficar isolada e, tirando a China e a Índia, tem em África alguns dos aliados mais importantes e precisa que aqueles países não deixem de a apoiar nos fóruns internacionais - e precisa de países compradores dos seus alimentos, fertilizantes, gás e petróleo. Da mesma forma que a Europa, a Rússia também está à procura de novos compradores dos seus bens - a economia russa vive, fundamentalmente, da venda de matérias primas.

É a única razão para terem assinado o acordo com a Ucrânia, Turquia e Organização das Nações Unidas?

Este gesto serve várias coisas. Serve também para perante esses países lavar a sua imagem para não perder os aliados, dizendo: "Estamos em guerra com a Ucrânia e com o Ocidente, mas não vamos deixar que vos falte aquilo de que vocês precisam".

[O ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei] Lavrov fez uma longo périplo por África, mostrando que a Rússia quer aprofundar os seus laços com os países africanos e importantes e com uma grande narrativa antiocidental. Por outro lado, a Rússia precisa tanto como a Ucrânia de escoar os seus cereais. Este acordo é muito conveniente para a Rússia. Não me parece que haja cedência relativamente ao campo de batalha ou a qualquer acordo relacionado com o campo de batalha.

Já no campo de batalha: fala-se de que serão feitos referendos sobre a anexação à Rússia das regiões de Zaporíjia (Zaporizhzia) e Kherson já no próximo mês. Podemos considerar que a Rússia está a ter sucesso?

Se esses referendos acontecerem, provavelmente vão ganhar - as coisas estão feitas para isso. E vai-se declarar - tal como se fez relativamente à Crimeia - que Kherson e Zaporíjia (Zaporizhzia) são territórios russos. Nesse aspeto é uma vitória russa, uma vez que haverá uma anexação.

Teremos duas novas Crimeias daqui a oito anos?

A Rússia neste momento aproveitou um grupo permanente de separatistas russos que estão desde 2014 no Donbass para tentar conquistar os territórios e parece-me - uma vez que não sou especialista militar - que está a ter sucesso. Penso que poderá haver dentro de algum tempo uma parte significativa, cerca de 20%, do território ucraniano anexado, se a Ucrânia não conseguir efetivamente fazer a contra ofensiva que tem dito que vai fazer.

Especialistas militares dizem que já há posicionamento, mas não tenho dados para dizer isso. Ainda não vimos a Ucrânia tomar ou retomar território que era do país.

Enquanto os Estados Unidos alimentarem o conflito militarmente, ele pode manter-se. Quando os Estados deixarem de alimentar o conflito militarmente, provavelmente o conflito acaba - porque a Ucrânia não tem capacidade de se opor ao avanço russo

Como classifica a intervenção dos Estados Unidos neste conflito? 

É a posição possível. Os Estados Unidos declararam-se líderes do mundo livre, e essa liderança do mundo livre significa que estão obrigados a defender os países da sua esfera de influência - da esfera do mundo livre - perante agressões de autocracias. Até seria de esperar que os Estados Unidos tivessem tido uma atitude que fosse mais longe.

Em que medida?

No sentido de poderem até fazer uso da força militar para tentar expulsar a Rússia do território ucraniano. Isso não é possível porquê? Do meu ponto de vista porque os Estados Unidos temem que a China faça avanços em Taiwan enquanto os Estados Unidos estão a 'atuar' na Ucrânia. Do meu ponto de vista essa é a razão principal pela qual os Estados Unidos não intervieram na Ucrânia. Portanto, fizeram a segunda melhor possibilidade do seu ponto de vista, que é apoiar a Ucrânia em tudo - menos numa intervenção militar. Nesse aspeto, fizeram aquilo que tinham que fazer porque, caso contrário, a Ucrânia tinha sido aniquilada muito facilmente pela Rússia.

Quando a guerra começou todos pensávamos que muito rapidamente a Rússia iria seguir os seus objetivos iniciais, que eram o de entrar em Kyiv e ser capaz de mudar o regime. Se isso não aconteceu até agora, e se a Ucrânia tem tido a capacidade de resistir, muito se deve ao apoio dos Estados Unidos e da Europa - do ponto de vista militar. Esse é o papel dos Estados Unidos neste conflito.

De que forma podem os Estados Unidos influenciar o desenvolvimento do conflito?

A resposta é a mesma. Enquanto os Estados Unidos alimentarem o conflito militarmente, ele pode manter-se. Quando os Estados deixarem de alimentar o conflito militarmente, provavelmente o conflito acaba - porque a Ucrânia não tem capacidade de se opor ao avanço russo. Penso que isso é uma das coisas em que a Rússia aposta. É na fadiga de guerra do Ocidente. [A Rússia] tudo tem feito para implicar os Estados Unidos nesta guerra, para ameaçar os Estados Unidos, para levar o seu agora aliado - não se sabe até quando - chinês a opor-se aos Estados Unidos. [De forma a] tentar dissuadir os Estados Unidos de estarem tão envolvidos nesta guerra.

Por falar no eventual fim do conflito. O ex-secretário de estado dos EUA Henry Kissinger sugeriu que uma forma de terminar com o conflito seria a cedência de território ucraniano à Rússia. O linguista Noam Chomsky apoia esta ideia, mas diz que para além de ceder territórios, a Ucrânia deverá desistir da ideia de aderir à UE e à NATO. Qual será a melhor hipótese para resolver o conflito neste momento?

Não vejo qualquer tipo de hipótese neste momento. As partes estão muito longe dos seus objetivos. Não me parecem cansadas da guerra. E uma coisa que nós sabemos é o seguinte: o conflito acaba ou com a vitória de um dos contendores - e não me parece evidente nenhuma vitória, pois teria que ser uma espécie de vitória total, que aniquilasse o outro e que o obrigasse a ir à mesa das negociações nas condições do vencedor. Não me parece que isso esteja a acontecer. 

As outras duas hipóteses são: ou uma das potências ou ambos os estados em guerra se sentem satisfeitos com o resultado do conflito e sentam-se à mesa das negociações para acordarem os termos da paz - também não me parece que isso esteja em cima da mesa num futuro próximo; ou um dos contendores não querer continuar a guerra - por razões de fadiga, falta de material, todas as razões que podem levar ao final de uma guerra - e queira ir em posição subalterna negociar a paz. Também não me parece que isso esteja no horizonte. Não vejo neste momento qualquer tipo de possibilidade de terminar a guerra porque não vejo nenhuma destas três possibilidades concretizada - ou perto disso.

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