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Vozes ao Minuto: "Seria uma das descobertas do século, um touro que consegue isolar a dor"

Vozes ao Minuto: Sérgio Caetano, ativista do Basta, um movimento para a abolição das corridas de touros em Portugal, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

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Anabela de Sousa Dantas
18/12/2018 08:50 ‧ 18/12/2018 por Anabela de Sousa Dantas

País

BASTA

As touradas foram o tema mais polarizador da discussão deste Orçamento do Estado para 2019 e acabaram mesmo por ser incluídas na descida do IVA que abrange todos os espetáculos culturais ao ar livre e cinema. Uma pequena vitória que aconteceu à revelia da posição da ministra da Cultura.

Graça Fonseca foi, aliás, quem espoletou uma discussão mais aguerrida no âmbito deste espetáculo ao dizer no Parlamento que discordava da redução do imposto para o setor de tauromaquia por "uma questão de civilização".

Sérgio Caetano, ativista do Basta, um movimento para a abolição das corridas de touros em Portugal, conversou com o Notícias ao Minuto sobre os últimos desenvolvimentos neste tema.

Sublinhando que a tauromaquia é "um negócio que está claramente na ruína", o representante da plataforma cívica refere que não tem "dúvidas absolutamente nenhumas" de que as touradas vão acabar.

A título de exemplo, a plataforma cita os resultados de uma sondagem da Universidade Católica referente à população de Lisboa sobre a praça de touros do Campo Pequeno. O levantamento revela que 89% dos inquiridos nunca assistiram a uma tourada naquela praça e que 75% não concordam com a utilização de dinheiros públicos para este fim.

Ficou bastante claro que há uma pressão grande junto do Governo para tentar salvar um negócio que está claramente na ruína

Depois de muita discussão e polémica, foi aprovada no mês passado a redução do IVA das touradas para 6%, no âmbito das propostas de alteração do Orçamento do Estado para 2019. Que leitura faz desta situação?

O que defendíamos é que não fazia sentido o Estado reduzir o IVA destes espetáculos, porque é mais um benefício que é concedido às touradas e, sendo um espetáculo violento, achamos que não faz sentido que o Estado esteja a promovê-lo desta forma. É mais um beneficio fiscal, entre muitos outros que existem, que ajuda a manter este negócio.

Mas, de qualquer forma, nós saudamos a votação que ocorreu. Normalmente, nestas questões relacionadas com tauromaquia cerca de 80% dos deputados votam a favor das touradas e desta vez notou-se que houve uma evolução bastante grande, principalmente no PS, em que metade dos deputados votou contra essa medida.

Assistiu-se até a um mal-estar entre o próprio Governo e o grupo parlamentar do PS.

Acho que ficou claro que o lóbi das touradas, que é bastante forte, teve aqui grande influência nesta decisão porque não é normal o primeiro-ministro ter uma posição e alguns deputados do mesmo partido apresentarem uma proposta num sentido diferente. Portanto, claramente, foi o lóbi das touradas a funcionar, a tentar obter regalias que permitam manter um negócio que está em evidente decadência.

Acha que a cisão foi resultante de algumas pressões?

Sim, é claramente resultante das pressões do lóbi das touradas. Não temos dúvidas em relação a isso. Acho que ficou bastante claro que há de facto aqui interesses e há uma pressão grande junto do Governo para tentar salvar um negócio que está claramente na ruína.

Se se recorda ainda em julho houve um projeto do PAN para abolir as touradas que foi levado ao Parlamento e que acabou por ser chumbado. Entretanto, desde julho até agora notou-se uma discussão bastante diferente em torno deste tema.

Sim, claramente houve uma grande evolução em relação a este assunto e para isso contribuíram, obviamente, as declarações do primeiro-ministro. Mas nós registamos essa evolução que houve no número de deputados que se colocaram contra as touradas.

Menor?

Sim, sim.

As declarações da ministra claramente assustaram o lóbi das touradas

A ministra da Cultura, Graça Fonseca, acabou por levantar, com a questão do “avanço civilizacional”, uma discussão pública mais aguerrida.

Sim, não é normal, infelizmente, os decisores políticos tomarem posição em relação a este assunto. Desta vez, a ministra, fez declarações que nosso entender não são polémicas.

Mas tocaram num nervo?

Sim, mas as touradas foram proibidas em 1836 [proibição anulada 9 meses depois] precisamente por questões civilizacionais, portanto já não é nada de novo. A questão é que as declarações da ministra claramente assustaram o lóbi das touradas. Estão habituados a ter o controlo do poder, desta vez perceberam que não tinham esse controlo e isso assustou-os. Imediatamente reagiram e pediram a demissão da ministra, tentaram, enfim, dar a volta à situação.

Houve figuras públicas que criticaram as declarações, na defesa das touradas. Posso citar Manuel Alegre, que disse que quem não percebe a corrida não percebe poesia. O aspeto cultural não é defensável?

Nós percebemos o ponto de vista do Manuel Alegre, que sempre foi um defensor das touradas. Enfim, também houve muitas figuras públicas que apareceram em defesa da ministra e da posição da ministra. Nós percebemos que aquilo que os aficionados veem não é o mesmo que o cidadão comum vê. [O cidadão comum] não é uma pessoa que está habituada àquele tipo de espetáculo e a este tipo de tradição, que vê apenas o lado artístico do espetáculo, não vê o outro lado, que é o sofrimento dos animais, que também está presente. Uma pessoa que é habituada a este tipo de cultura acaba por isolar essa parte.

Nós aceitamos e assumimos que nas touradas há um lado artístico que é apreciado, é atrativo para muita gente. Mas não podemos esquecer o outro lado, que é o lado da violência, não só para os animais, mas também porque provoca mortes e muitos feridos graves durante o ano. Isso não pode ser ignorado.

Touros são selecionados não para produzir carne mas para produzir comportamento

Sobre a questão da violência, a Pró-Toiro defende que o touro não sofre da mesma forma que o animal normal. Fala inclusive de “uma capacidade extraordinária de bloqueio dos recetores da dor”.

Recusamos sequer entrar nesse tipo de discussão porque aquilo que a ciência diz é exatamente o contrário. Se isso fosse verdade seria uma das maiores descobertas do século, termos um animal que consegue isolar a dor e não sentir dor perante agressões daquele nível. Esse estudo nunca foi publicado em nenhuma revista científica, portanto vale o que vale.

Aquilo que nós sabemos, e que a ciência nos diz, é que estes bovinos são exatamente iguais a outras raças de bovinos que existem em Portugal e existem em todo o mundo. Simplesmente são selecionados não para produzir carne mas para produzir comportamento, digamos assim. São animais que são selecionados para este tipo de espetáculo. Aliás, se nós repararmos, durante o processo de seleção genética destes animais, apenas cerca de 14% são considerados aptos para as touradas. Ou seja, o comportamento deles na arena nem sequer é natural.

São selecionados os animais mais agressivos ou com comportamento mais agressivo em reação à dor?

Exatamente. Os animais têm vários tipos de reação quando sentem o perigo, o risco: há animais que atacam, há animais que fingem que morrem, etc. Há vários tipos de reações. Com estes animais, são selecionados aqueles que reagem voltando a atacar. Se não fosse a seleção genética destes animais, as touradas não podiam existir porque não era possível fazer o espetáculo. E mesmo assim há animais que chegam à arena e não reagem, também acontece.

Agora, é claro que os animais sofrem, seria uma descoberta incrível, um animal bovino com a capacidade de não sofrer.

A abolição das touradas é vista, também, como um ataque à Constituição, que prevê o direito à cultura.

A Constituição não fala em tauromaquia, como é óbvio, e não é justificação para que mantenhamos certos tipos de tradições. Há muitas tradições em Portugal que desapareceram, algumas por desinteresse, outras porque simplesmente já não se enquadravam nos valores da sociedade, que é o caso desta. Temos uma sociedade que tem evoluído em termos de legislação no sentido de uma maior proteção aos animais e a existência deste tipo de espetáculo choca com esses valores que temos vindo a promover.

Não entendo que a Constituição seja um entrave para a abolição das touradas, até porque as touradas sempre estiveram ligadas a períodos menos democráticos, digamos assim, do nosso país. A grande contestação às touradas aconteceu durante a Revolução Liberal, por exemplo, que deu origem à nossa Constituição. Portanto, foi um período em que houve a maior contestação de sempre às touradas em Portugal e que chegou a levar à sua proibição, inclusive.

Há outras tradições que têm a ver com a lide do animal como, por exemplo, em Ponte de Lima, onde existe a Vaca das Cordas, uma tradição também, mas menos violenta. Esta também já começa a ser contestada. Percebe-se que as pessoas começam a olhar de uma forma diferente para estas tradições?

Sim, a tradição é cada vez mais questionada. Na plataforma Basta centramo-nos unicamente nas touradas de praça, digamos assim, que são aquelas que estão regulamentadas na legislação, mas sabemos que existe um número muito grande de outro tipo de eventos ligados à tauromaquia, por todo o país, mas que têm vindo perder o interesse da população. As próprias largadas são um fenómeno que, infelizmente, não está regulamentado em Portugal, como é o caso de Ponte de Lima ou o caso das largadas de rua nas localidades do Ribatejo, em que não há nenhum tipo de regulamentação, o que é preocupante. Além do bem-estar do animal, há a questão da própria segurança das populações. Tem acontecido acidentes gravíssimos e não se percebe porque é que o Estado não intervém nestas questões, pelo menos, regulamentado-as e criando algumas medidas de segurança. Todos os anos morrem pessoas em largadas.

Se a solução passar pela realização de um referendo, nós apoiaremos essa possibilidade

A Rede Internacional Anti-Tauromaquia divulgou recentemente um comunicado onde dizem que “à tauromaquia não lhe restam mais dez anos”. Concorda?

Nós sabemos que as touradas vão acabar, isso não temos dúvidas nenhumas. Não sei se será daqui a dez anos ou se será daqui a cinco. As sociedades mudam, não são estáticas. Agora, que as touradas vão acabar, isso não temos dúvidas absolutamente nenhumas e esse é o objetivo máximo da plataforma Basta, é para isso que ela existe. Não sei lhe dizer se é daqui a cinco ou daqui a dez anos, eu espero que seja antes.

Fala-se do México, que tem a maior praça de touros do mundo, e que mesmo aí há sinais que indicam que a forma como se olha para esse tipo de eventos está a mudar. Aquilo que eu pergunto é se estes sinais são claros de que há uma vontade popular de mudar algumas tradições, mesmo onde elas estão enraizadas?

Sim, são claros. A tauromaquia não está em expansão, está em regressão, claramente, em todos os países onde ainda existe. Temos os exemplos da Catalunha, onde já não existem touradas, das Ilhas Baleares, onde também foram proibidas, na Galiza também estão praticamente a acabar, na Andaluzia também há sinais evidentes de um decréscimo muito grande do interesse da população, e temos em Portugal os casos de Viana do Castelo e da Póvoa de Varzim, dois municípios que decidiram deixar de apoiar a tauromaquia, que sobrevivia nesses municípios graças aos apoios das câmaras municipais. Estão a reconverter as praças de toiros em recintos que podem ser utilizados para eventos culturais e desportivos pela população durante todo o ano e não apenas duas vezes por ano. Parecem-nos exemplos claros desta evolução que está a acontecer na sociedade.

Noticiamos, no início de novembro, uma iniciativa popular para pedir um referendo sobre esta questão. Poderia ser esta uma solução?

Sim, achamos que o referendo pode ser uma solução para o problema das touradas. A plataforma Basta não vê nenhum problema na realização de um referendo porque sabemos que a maioria da população é claramente contra este tipo de espetáculo. Se a solução passar pela realização de um referendo, nós apoiaremos essa possibilidade.

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