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"Por cada estrangeiro em Portugal, há dez portugueses no mundo"

O Alto-comissário para as Migrações e presidente do Grupo de Trabalho Migrações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Pedro Calado, é o entrevistado desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.

"Por cada estrangeiro em Portugal, há dez portugueses no mundo"
Notícias ao Minuto

11/10/18 por Anabela de Sousa Dantas

País Pedro Calado

A Alta Representante da União Europeia para a Política Externa, Federica Mogherini, elogiou o trabalho de Portugal no acolhimento de migrantes e refugiados, durante a sua breve visita ao país esta semana, enaltecendo a solidariedade portuguesa como um exemplo a ser seguido por outros Estados-membros.

Esta tem sido, de resto, a posição de Portugal face à crise migratória desde os primeiros sinais de que era necessária uma colaboração alargada dentro da Europa. "Não pode haver a ideia de que vamos resolver local ou nacionalmente um desafio que é global", refere o Alto-comissário para as Migrações e presidente do Grupo de Trabalho Migrações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), em entrevista ao Notícias ao Minuto.

Pedro Calado elenca alguns dos focos do Grupo de Trabalho a que agora preside, incluindo um grupo sobre "como comunicar em tempos de crise", na era da pós-verdade, ou como as migrações "mudam a economia ou a cultura da sociedade dos países onde operam". Obviamente, nunca perdendo de vista aquilo que é "a matriz humanista da Europa e dos seus fundadores". Portugal, nesse sentido, não resolverá o problema sozinho, indica, mas estará sempre pronto a fazer a sua parte num esforço concertado.

Não queremos nem negativo nem positivo, queremos realismo no discurso, numa área que se rege muitas vezes pela emoção e não tanto pela razãoQue principais desafios encontrou no Grupo de Trabalho a que agora preside?

Esta eleição para o Grupo de Trabalho das Migrações da OCDE é, de facto, um desafio muito interessante, sobretudo num tema e num momento em que deixou de haver algum consenso internacional. Se durante alguns anos, ou décadas, a maioria dos países que integram a OCDE demonstrava forte alinhamento naquilo que era uma visão positiva e construtiva do desafio das migrações, a verdade é que nos últimos anos fomos assistindo na Europa, mas não só, a alguma tensão nesta matéria. Portanto, este é um momento importante para uma liderança que, sobretudo, na minha ótica, tenderá a procurar exatamente aquilo que nos une, aquilo que são linhas estratégicas que podem ser comuns para um desafio que é global. Não pode haver neste momento a ideia de que vamos resolver local ou nacionalmente um desafio que é global. A minha expetativa e aquilo que vamos fazer nos próximos três anos é procurar nessa plataforma global as linhas de convergência.

Os objetivos passam então por...

Os objetivos creio que serão depois de caráter mais prático. Este é um Grupo de Trabalho e portanto tem uma agenda também muito pragmática. É o Grupo de Trabalho da OCDE que produz anualmente o grande relatório chamado Internacional Migration Outlook, um relatório denso, complexo, que analisa todos os países do mundo, naquilo que são as grandes dinâmicas, as grandes linhas de força das migrações.

Há esse lado mais prático, mais tangível do trabalho do grupo, bem como alguns estudos que vamos fazendo. Este ano, por exemplo, vamos estar muito focados na forma como se mede o impacto das migrações, como é que mudam a economia ou a cultura da sociedade dos países onde operam. Isso é importante hoje em dia para termos também mensagens fortes que possam, de certa forma, desmontar algumas narrativas menos positivas nesta matéria.

Estamos, por exemplo, também no âmbito da OCDE a lançar um grupo novo sobre comunicação. Como é que conseguimos comunicar em tempos de crise, mas não só. Como é que conseguimos, com factos e com dados científicos, contra-argumentar aquilo que são as ‘fake news’, aquilo da pós-verdade. Estamos num grupo piloto com outros Estados-membros da OCDE, exatamente a trabalhar esta questão dos factos e da construção de narrativas realistas. Não queremos nem negativo nem positivo, queremos realismo no discurso, numa área que se rege muitas vezes pela emoção e não tanto com a razão. Esta é uma pista daquilo que vamos começar a fazer nos próximos meses e nos próximos anos.

Creio que o pico da crise – se queremos chamar crise àquilo que aconteceu em 2015 – já passou

Essa construção de narrativa menos positiva tem impacto nas comunidades onde refugiados ou migrantes se procuram estabelecer. Na Itália investigam-se alegações de violência contra estas pessoas, na Bulgária há patrulhas paramilitares para os “caçar”. Acha que estes comportamentos  poderão perpetuar-se?

Creio que o pico da crise – se queremos chamar crise àquilo que aconteceu em 2015 – já passou. Hoje em dia os números que nós temos, por exemplo, de chegadas à União Europeia estão a cair drasticamente, apesar de não ser essa a perceção e de continuarmos a falar numa crise migratória. A verdade é que se olharmos para os números com a frieza que isso exige, vemos que em Itália, por exemplo, do ano passado para este ano as chegadas caíram 80%. Estamos em mínimos anteriores ao período de 2015, quando houve, sim, um grande fluxo.

Precisamos de voltar a essa realidade, a esses dados, a esses factos, e de não construirmos [narrativas] com a perceção, ou com aquilo que muitas vezes até são narrativas colocadas na opinião pública de forma estratégica. Portanto esse é o primeiro passo que é importante dar, é olharmos para os factos, e aí a OCDE teve um papel muito importante e continuará a ter.

Cá em Portugal também o temos feito, por exemplo, através do Observatório das Migrações, que é, a partir de fontes estatísticas administrativas, com a frieza a que os dados nos obrigam, olharmos para estes fenómenos exatamente com esse distanciamento e com esse posicionamento mais alheado das emoções. Isso parece-me fundamental.

Depois, acho que um segundo ingrediente contra esta emergência de algum populismo, além dos factos, é a memória. A memória de nós próprios, portugueses, como emigrantes pelo mundo – relembro, por exemplo, que por cada estrangeiro que temos em Portugal, temos dez portugueses no mundo. O mesmo acontece com a maioria dos países europeus. A seguir à Segunda Guerra Mundial houve pessoas refugiadas da Hungria, da Polónia, da República Checa.

A Europa, sobretudo, tem este dever de memória. Porque é que foi criada a União Europeia? Porque é que foram criados mecanismos como a Convenção de Genebra? Foram exatamente criados para nos proteger a nós, cidadãos da União Europeia, daquilo que foram as maiores tragédias do século XX. Este reavivar desta memória parece-me vital até para as novas gerações.

Na altura do Conselho Europeu para as Migrações chegou a comentar que a política é a arte do possível, referindo-se a algumas divergências, nomeadamente da Itália. Agora tem um contacto mais direto com algumas destas diferenças. Que leitura faz?

Creio que aquilo que aconteceu em 2015, e depois nos anos seguintes, foi uma resposta que foi sendo tardia a um problema que se tivesse sido resolvido na altura talvez não tivesse tido o impacto negativo que teve. E, por isso, esta ideia da arte do possível, porque, à data de hoje, já não é possível um conjunto de soluções que teriam sido possíveis se criadas antecipadamente.

Já em 2014, na presidência italiana, o ministro italiano [Matteo Renzi], uma pessoa muito moderada na altura, pedia ajuda para gerir as operações de salvamento que estavam a decorrer no Mediterrâneo, que tinham um custo muito grande para o orçamento italiano, eram pagas exclusivamente pelo governo italiano. O ministro dizia: “Ajudem-nos antes que venha alguma coisa muito pior a seguir”. Ele já antecipava alguma tensão e aí de facto a resposta foi tardia.

Aquilo a que estamos a assistir, em muitos destes casos, é que são pessoas que estão a fugir à miséria, à pobreza extrema, à absoluta ausência de um projeto de felicidade no seu país de origem

Um dos pontos acordados no Conselho Europeu foi a questão das plataformas de desembarque nos países da Bacia do Mediterrâneo, para poder fazer uma espécie de triagem dos migrantes com destino à Europa. As últimas notícias, no entanto, notam que esses países não têm interesse nessa solução. Isto mostra uma fragilidade no acordo?

Mostra aquilo que, de certa forma, já iamos antecipando. Não seria afastando o problema da Europa que ele se resolve. Nós precisamos de soluções que tenham em conta três dimensões do processo, desde logo nos países de partida. Primeiro, apostar no desenvolvimento dos países de partida. Não é para reter as pessoas, é para que as pessoas não saiam em desespero. Aquilo a que estamos a assistir, em muitos destes casos, é que são pessoas que estão a fugir à miséria, à pobreza extrema, à absoluta ausência de um projeto de felicidade no seu país de origem. Isto tem de ser refletido e a própria OCDE está a fazê-lo, cruzando as políticas de apoio às migrações com as políticas de apoio ao desenvolvimento - que é uma novidade, isto parece uma coisa relativamente óbvia, mas até há poucos anos não havia cruzamento destas duas dimensões. Este parece-nos um primeiro eixo fundamental, para garantir que quem faz uma opção migratória, o faz absolutamente consciente dos riscos e das oportunidades que esse processo acarreta, podendo escolher ficar no seu local de origem.

O segundo aspeto fundamental é criar canais legais. Enquanto não houver maior possibilidade de, de forma segura e absolutamente transparente, as pessoas se candidatarem a trabalhar e a estudar na Europa e a Europa gerir esse fluxo de forma coletiva, também nos parece que não teremos aqui a solução ideal. Muitas das chegadas ainda se processam de forma irregular, com um risco acrescido de morte. Repare que estamos este ano com menos 80% de travessias, mas estamos com mais mortes do que nos outros anos. Isto tem de continuar a alertar para a necessidade de canais legais.

A terceira dimensão, que também me parece óbvia, é as pessoas nos países de destino terem apoio à sua plena integração. Isso não é só terem trabalho, é terem acesso à língua, terem acesso a direitos, a plena capacidade de poderem exercer esses direitos. E aquilo que são três elementos que parecem simples e consensuais, diria que em muitos países talvez ainda estejam por concretizar.

Parece-nos que estamos de facto a fugir daquilo que é própria matriz humanista da Europa e dos seus fundadoresNa questão das fronteiras externas, tem havido alguns confrontos entre as ONG e as autoridades locais. Na Líbia e na Grécia, por exemplo. Acha justo este esforço humanitário poder ser criminalizado?

Acho que enquanto espaço europeu, em que um dos seus pilares é a solidariedade, nunca poderemos concordar com a criminalização do apoio que os cidadãos ou ONG's estão a dar. Parece-nos absolutamente crucial. E sabemos que há neste momento movimentos mais extremistas na Europa, em alguns países, que estão a criminalizar o apoio humanitário e parece-nos absolutamente condenável. Não havendo uma situação de crime ou de abuso da lei, são apenas pessoas a salvar pessoas. Veja-se o caso de uma rapariga síria, nadadora [Sara Mardini], que salvou várias pessoas de se afogar no meio Mediterrâneo. Esta pessoa não pode estar como está neste momento, sujeita a ser criminalizada. Parece-nos que estamos de facto a fugir daquilo que é própria matriz humanista da Europa e dos seus fundadores.

Podíamos muito simplesmente ter dito “isto não tem nada que ver com Portugal”. (...) O que dissemos foi exatamente o contrário

Sobre o caso português, que leitura pode fazer do processo de acolhimento de refugiados cá?

Portugal nesta matéria continua a ser uma boa exceção. Temos desde logo um forte consenso político, não temos no nosso Parlamento qualquer partido que tenha um discurso contra aquilo que é esse dever. Quanto mais falo com os meus congéneres noutros países europeus mais percebo que, efetivamente, a esse nível somos exceção.

Depois, por outro lado, creio que apesar de ser uma área difícil de concretizar a 100%, porque há sempre algo que pode não estar feito na perfeição, acho que nos podemos orgulhar de tudo aquilo que fizemos. Até do ponto de vista económico para o país, nós estávamos a viver ainda o rescaldo de uma crise gravíssima, podíamos muito simplesmente ter dito “isto não tem nada que ver com Portugal”. Não estávamos nem nos pontos de chegada da Europa, nem nos pontos de travessia, nem éramos propriamente o destino preferencial de muitas destas pessoas. O que dissemos foi exatamente o contrário, “isto tem tudo que ver com Portugal e nós queremos, neste esforço conjunto solidário, dizer sim, podem contar connosco”. E acho que por aí podemos todos dormir muito tranquilos, acabamos por ser o sexto país que mais pessoas acolheu neste esforço europeu de recolocação e com isso dar o exemplo.

Agora, sobre as pessoas que por cá estão e por cá fazem o seu projeto de vida, começamos a ver os resultados desse tempo de permanência e desse apoio. Metade das pessoas já está a trabalhar, com contrato. Fizemos um protocolo com a Plataforma Global de Apoio a Estudantes Sírios e temos 29 estudantes no ensino superior. Temos proliferado num conjunto de medidas, estamos a cuidar dos que cá estão com toda a dedicação e com todo o esforço.

Não seremos nós sozinhos a resolver o problema, mas se outros Estados-membros o quiserem resolver connosco, teremos capacidade para acolher estas pessoasComo disse, esta vaga migratória obrigou a um rápido esforço de adaptação das autoridades competentes. Que oportunidades identificaria para melhorar?

Diria que o diagnóstico está relativamente feito. No ano passado, entregámos na Assembleia da República um primeiro relatório-balanço desse processo de recolocação. Esse relatório auscultou grande parte das organizações que estiveram na primeira linha do acolhimento. Passámos de uma média, antes de 2015, de cinco pessoas refugiadas que recebíamos por mês para uma situação em que, em alguns meses, chegaram 200/300 pessoas. Tudo isto criou uma grande pressão no sistema de asilo, nas entidades que tradicionalmente lidavam com esses cinco, em média, que chegavam por mês.

Isso obrigou a que também tivéssemos de chamar para o processo organizações que não estavam tão habituadas a trabalhar com estas realidades. Até aqui, Portugal tinha, basicamente, na figura do Conselho Português para os Refugiados e do Serviço Jesuíta aos Refugiados as duas grandes ONG’s especialistas no acolhimento e integração de refugiados. Hoje em dia, trabalhamos com mais de 150, portanto obviamente a esmagadora maioria não tinha tradição ou experiência.

Creio também que seria importante pormo-nos na pele das pessoas, ou seja, olhar para a questão da língua, uma questão que já vai sendo trabalhada. Tivemos muita dificuldade no início deste processo com o árabe, com o tigrínia. Tudo o que estamos a fazer hoje em dia já tem esse pressuposto de que este fenómeno veio para ficar e faz parte da realidade.

Portugal mostrar-se-á sempre disponível para acolher?

Continuamos a ter essa disponibilidade. Recentemente, como foi tornado público, respondemos de forma muito assertiva nestas questões dos barcos que andavam aí um pouco à deriva no Mediterrâneo, seja o Aquarius, seja o Lifeline, e Portugal, muito para lá de metas ou quotas, ofereceu-se para acolher essas pessoas. Já veio um grupo de 30 há cerca de um mês, na última semana de setembro vieram mais 19 pessoas, entretanto já mostrámos disponibilidade para mais dez.

Continuaremos a fazer, solidariamente, com os outros Estados-membros – isto é importante, não seremos nós sozinhos a resolver o problema, mas se outros Estados-membros o quiserem resolver connosco, nós teremos capacidade para acolher estas pessoas.

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