Meteorologia

  • 29 MARçO 2024
Tempo
15º
MIN 8º MÁX 15º
Vozes ao Minuto

Vozes ao Minuto

Vozes com opinião. Todos os dias.

"Quando se tenta um diálogo de paz, não se ladra ao mesmo tempo"

José Duarte de Jesus foi embaixador na China e teve uma relação privilegiada com a Coreia do Norte, país que visitou várias vezes. Elogia a postura da Coreia do Sul nas negociações e confia que Kim Jong-un está mesmo empenhado em conseguir um acordo que permita colocar a primeira pedra no edifício que será a paz. Já em relação a Trump, tem muito mais dúvidas.

"Quando se tenta um diálogo de paz, não se ladra ao mesmo tempo"
Notícias ao Minuto

11/06/18 por Pedro Bastos Reis

Mundo José Duarte de Jesus

Durante quatro anos, entre 1993 e 1997, José Manuel Duarte de Jesus foi o embaixador português na China. Em apenas dois anos durante este período, esteve três vezes na Coreia do Norte, onde estava acreditado como embaixador extraordinário e plenipotenciário. Caso único na União Europeia.

Após o 25 de Abril e durante vários anos,  Portugal e Coreia do Norte tiveram uma excelente relação diplomática. O ainda número dois do regime de Pyongyang, Kim Yong-nam, esteve várias vezes em Portugal. O nosso país tinha uma relação privilegiada com aquele que é, porventura, o país mais fechado do mundo, o que fez com que Duarte de Jesus fosse constantemente abordado por outros embaixadores europeus, curiosos com o desenvolvimento da situação política na Coreia do Norte.

Das suas visitas a Pyongyang, Duarte de Jesus enviou correspondência para Lisboa, onde dava conta daquilo que via num país que parecia uma “sociedade orwelliana”, uma “encenação política e militar”, como descreve em entrevista ao Notícias ao Minuto.

A conversa telefónica com o embaixador, de 82 anos, surge na sequência do lançamento do seu último livro, ‘Coreia do Norte: A última dinastia Kim’, lançado pela editora Edições 70, do grupo Almedina, em que Duarte de Jesus revela alguns dos episódios que viveu em Pyongyang, assim como uma análise sobre a Coreia do Norte e a sua situação atual.

O lançamento do livro coincide com uma altura em que existe grande expectativa em relação a uma possível solução de paz para a península coreana. Depois do encontro histórico entre Kim Jong-un e Moon Jae-in na zona desmilitarizada das Coreias, na madrugada desta terça-feira, dia 12 de junho, está prevista a cimeira entre o líder da Coreia do Norte e Donald Trump.

Relativamente a este encontro histórico, José Manuel Duarte de Jesus quer manter o otimismo, e acredita que Kim Jong-un tem um plano para o futuro da Coreia do Norte, uma vez que o país “tem todo o interesse em ter um diálogo com os Estados Unidos” e em “sentar-se à mesma mesa do que o presidente da maior potência mundial”. Já quanto aos planos de Donald Trump, o embaixador prefere não fazer muitas previsões, “porque aquele senhor é completamente imprevisível do ponto de vista político”.

Houve um período em que tivemos muito boas relações com a Coreia do Norte. O próprio número dois da hierarquia, Kim Yong-nam, esteve em Portugal. Tínhamos realmente um diálogo privilegiado com a Coreia do NorteEsteve três vezes na Coreia do Norte nos anos de 1990. Quais são as imagens que lhe vêm à cabeça quando recorda essas visitas?

A ideia com que fiquei é que aquilo nem é bem um país nem um Estado, é um grande palco, uma encenação política e militar, que acontece ali naquela região a norte do Paralelo 38. Não tem nada a ver com coisa nenhuma que eu conheça, e eu conheci vários países comunistas do tempo da União Soviética. É, efetivamente, uma encenação completa de tudo e será um erro compararmos com qualquer outro país.

No livro ‘Coreia do Norte: A última dinastia Kim’, descreve mesmo a Coreia do Norte como uma “sociedade orwelliana”. Parece que George Orwell antecipou o que viria a ser o país.

[Risos] Sem dúvida.

Portugal e Coreia do Norte tiveram uma boa relação. Éramos caso único na Europa? Os restantes embaixadores europeus procuravam-no para saberem mais sobre o que acontecia em Pyongyang?

Mais ninguém ligado à União Europeia tinha relações diplomáticas [com a Coreia do Norte]. Outros países europeus tinham, como o meu colega suíço, que às vezes ia lá comigo, mas, na União Europeia, Portugal era o único país que tinha lá um embaixador acreditado e, por consequência, é normal que eu fosse o interlocutor oficial.

Por outro lado, havia razões também que, naturalmente, ajudariam a isso. Portugal tratava-se de um país pequeno, que não era uma grande potência, que não fabricava armas nucleares, e que tinha uma independência maior em relação aos Estados Unidos e à União Soviética. Havia ainda uma relação com o presidente [Francisco] Costa Gomes… tudo isto fez com que tivéssemos uma boa relação com eles. Eles queriam uma aproximação à Europa, queriam que a Europa tivesse um papel mais forte nas negociações do KEDO [Korean Peninsula Energy Development Organization]. Houve um período em que tivemos muito boas relações com a Coreia do Norte. O próprio número dois da hierarquia, Kim Yong-nam, esteve em Portugal. Tínhamos realmente um diálogo privilegiado com a Coreia do Norte.

As circunstâncias são de tal forma diferentes que não vejo, nesta altura, que Portugal pudesse assumir o mínimo dos papéis no que se está a desenrolarComo é a relação entre os dois países nos dias de hoje? Portugal deveria tentar aprofundar a ligação?

Penso que as circunstâncias, hoje, são muito diferentes, por três razões fundamentais. A primeira é que, nesta conjuntura atual, a Coreia do Sul tomou uma dianteira e um papel diplomático muito importante, coisa que não tinha naquela altura. Em segundo, a negociação passa-se entre os Estados Unidos, Coreia do Norte e Coreia do Sul. E, em terceiro, a Europa não está presente nestas negociações. Dessa altura, até agora, a Europa tem perdido, infelizmente, bastante capacidade de ser um ator internacional mais forte. As circunstâncias são de tal forma diferentes, que não vejo, nesta altura, que Portugal pudesse assumir o mínimo dos papéis no que se está a desenrolar.

Numa altura em que para lá dos Estados Unidos, Rússia e China temos a emergência de outras potências, que papel é que a União Europeia deveria assumir para ter uma postura mais ativa na questão da desnuclearização da Coreia?

Isso seria coisa para um estudo de muitas páginas. Nesta altura, existe uma consciência diferente na União Europeia, existem até sinais de que se quer refazer como ator internacional. Mas estamos ainda muito longe. Tudo isto se está a passar entre o presidente Trump, a Coreia do Sul, a Coreia do Norte e, evidentemente, a China. Nada se pode fazer ali sem passar pela China, que não tem um papel oficial, mas tem um papel fundamental. Por outro lado, também é natural que a Coreia do Norte esteja a imaginar planos B e C, alternativas caso as coisas corram mal. Coisa que eu duvido que os Estados Unidos tenham.

 Esperemos que desta vez não sejam os Estados Unidos a deitar tudo por água abaixo como da última vezQual é o plano A da Coreia do Norte? E se esse plano falhar, o que estará na cabeça de Kim Jong-un?

Só há um plano possível: um acordo de princípio. De resto, contrariamente às afirmações anteriores, ouvi o presidente Trump a referir-se a isto, o que me parece extraordinário, com a possibilidade de se lançarem as pedras para um diálogo para o processo de desnuclearização, processo acompanhado de uma série de medidas da parte do Ocidente, especialmente dos Estados Unidos, em favor da Coreia do Norte, o que será um processo mais ou menos longo, como foi o processo KEDO, tendo sido os americanos, em particular o presidente [George W.] Bush, que o destruíram. Esperemos que desta vez não sejam os Estados Unidos a deitar tudo por água abaixo como da última vez.

Quando se está a programar e a tentar um diálogo de paz, um diálogo para acabar com a tensão e com o perigo nuclear, não se começa a ladrar ao mesmo tempoOs Estados Unidos têm-se referido à desnuclearização da Coreia dando como exemplo o caso líbio. Todos sabemos como acabou Khadafi… Esta retórica não pode pôr em causa um plano de paz?

Pois claro que pode! São asneiras sucessivas que os Estados Unidos têm feito! Em vez de haver uma preparação diplomática… mas, enfim, o presidente Trump tem dado cabo da diplomacia americana. Com exceção do Mike Pompeo, que parece ter feito uma diplomacia bem feita, têm sido asneiras sucessivas. Falar do caso da Líbia é um disparate total. Fazer manobras militares nas costas é outro disparate total. Quando se está a programar e a tentar um diálogo de paz, um diálogo para acabar com a tensão e com o perigo nuclear, não se começa a ladrar ao mesmo tempo. A preparação foi muito mal feita.

A juntar a isso, Trump chamou John Bolton, conhecido pelas suas posições anti-Coreia do Norte e anti-Irão.

A preparação diplomática não podia ter sido pior. Mas não há duvida que a Coreia do Norte sempre teve e continua a ter interesse em ter uma mediação positiva com os Estados Unidos. E a China tem interesse em que isso aconteça. E, nesta altura, a Coreia do Sul avançou com uma ação diplomática notável e se isto ainda se conseguir salvar, em grande parte será graças à diplomacia da Coreia do Sul.

Neste momento, nem o Sul nem o Norte pretendem abandonar o seu sistema político próprio. Agora, se puder haver boas relações entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, e se terminar a ameaça nuclear, é um alívio para a regiãoNo livro, afirma que a China, Coreia do Sul e Japão, são os inimigos históricos da Coreia do Norte, e não os Estados Unidos. Pelo constante clima de tensão que vemos entre Washington e Pyongyang passa uma ideia contrária.

A Coreia do Norte tem todo o interesse em ter um diálogo com os Estados Unidos. Por um motivo muito simples: são a maior potência mundial nesta altura. Sentar-se à mesma mesa do que o presidente da maior potência mundial dá à Coreia do Norte uma credibilidade aos olhos do mundo que, naturalmente, permite acabar com todo o boicote à volta do país. Permite-lhe ser um parceiro igual. Por outro lado, a China não é inimiga, mas como dizia um vice-ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, “não se esqueça do que dizia Confúcio: são os inimigos que temos de tratar bem, os amigos temos garantidos”.

Eles [diplomatas da Coreia do Norte] disseram-me claramente que os maiores inimigos eram a Coreia do Sul, o Japão e a China, porque a China, a partir do momento em que mudou a política com Deng Xiaoping, deixou de ser uma aliada. Por outro lado, naquela altura, hoje penso que não, havia a ideia da reunificação das Coreias.

Acredita que essa reunificação não é possível?

É muito difícil, porque as diferenças tecnológicas, económicas e populacionais são imensas. Tudo isso acarretaria uma fatura enorme. Além disso, não há uma tradição de uma Coreia unificada. A história não mostra isso. A Coreia teve vários reinos separados, sempre foi caótica. Mas, agora, a meu ver, não é o que está em cima da mesa. Neste momento, nem o Sul nem o Norte pretendem abandonar o seu sistema político próprio. Se puder haver boas relações entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, e se terminar a ameaça nuclear, é um alívio para a região.

Notícias ao MinutoJosé Duarte de Jesus visitou várias vezes a Coreia do Norte © Álvaro Isidoro / Global Imagens

Quais são os maiores receios da China e do Japão no meio deste processo?

No caso do Japão, é a proliferação das armas nucleares. Ninguém está interessado em que haja um perigo nuclear, mas para que este não exista, tem de se garantir a existência e independência da Coreia do Norte. Quem não tem outra hipótese, ou tem arma nuclear ou desaparece do mapa. Temos de equacionar isto de uma maneira bastante realista. Há um grande interesse do Japão em desbloquear estas coisas, porque é mais um parceiro para relações económicas. E para a China, o perigo de ter, junto à fronteira, um país que é uma potência nuclear, tem um grande peso. Penso que se se conseguir chegar a alguma plataforma, é benéfico para praticamente para toda a região.

A minha opinião é que Kim Jong-un tem uma estratégia para a Coreia do Norte. E eu pergunto-me se Donald Trump tem ou não uma estratégiaEscreve que a Coreia do Norte não é o principal perigo para a eclosão de um conflito nuclear a grande escala. Quem é, então?

As forças armadas e os serviços de inteligência dos principais países – e refiro-me aos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra - têm cenários possíveis, e o pior dos cenários, em termos de consequências, é o imprevisível, ou seja, aquele em que pode haver uma deflagração nuclear que não foi propositada. Basta que a Coreia do Norte envie um míssil e, por erro, caia no Japão ou na Coreia do Sul e mate milhares e milhares de pessoas. Esse país vai reagir e vai pedir ajuda aos Estados Unidos e então aí há cenários que apontam para centenas de milhares de mortos por dia. Esses perigos existem, e não tanto pela deflagração intencional, mas pelo erro. O Kissinger escreveu um artigo em que refere isso mesmo: o risco do erro humano, o disparo de um míssil que não seja encomendado governamentalmente.

De uma forma programada, nunca seria a Coreia do Norte a iniciar um conflito?

Normalmente, não. Enfim, não estou na cabeça do Kim Jong-un e daqueles militares, mas acredito que tudo isto é uma tática, que se transformou numa estratégia a prazo, que já dura há quase 25 anos, no sentido de o país conseguir sobreviver economicamente, conseguir desenvolvimento económico e, especialmente, assegurar a continuidade da dinastia mítica, quase religiosa.

Quando vemos Kim Jong-un durante os testes balísticos, com a sua cara de felicidade, tendemos, no Ocidente, a retratá-lo como um louco. Revê-se nesta caracterização do líder da Coreia do Norte ou reconhece a existência de um bom diplomata?

A minha opinião é que ele tem uma estratégia para a Coreia do Norte. E eu pergunto-me se o seu contraparte [Donald Trump] tem ou não uma estratégia. Numa negociação sem que haja o mínimo de equilíbrio, ela é sempre um ponto de interrogação. Até ver o resultado, tenho esperança, porque não sou um pessimista.

Não há nada mais fácil do que arranjar 'Fátimas' por toda a parte e apregoar milagres, especialmente num país com muita miséria, com uma ditadura muito feroz, isoladíssimo do resto do mundoRelativamente à liderança da dinastia Kim, em particular Kim Jong-il e Kim Il-Sung, o culto em torno destes líderes é quase religioso, transcendente. Kim Jong-un é muito diferente do pai e do avô?

Do avô, sim. Kim Il-Sung foi deificado um pouco mais tarde. O pai, Kim Jong-Il, foi deificado desde que nasceu, tal como Kim Jong-un. Faz parte de uma certa arquitetura arranjada para poder sobreviver. Isto é transformar a política numa manifestação mística coletiva, e não há nada mais fácil do que arranjar 'Fátimas' por toda a parte e apregoar milagres [risos], especialmente num país com muita miséria, com uma ditadura muito feroz, isoladíssimo do resto do mundo. Todas estas circunstâncias contribuem para florescer e fazer crescer um estilo deste género.

Como viu os dois encontros entre Kim Jong-un e Moon Jae-in na zona desmilitarizada das Coreias? Foram encontros realmente importantes para o futuro da Península ou foram mais um espetáculo para os jornais e televisões?

Eu penso que foram importantes. Penso que não só foram importantes, como estão na origem da cimeira de Singapura. Deve-se muito a isso, que nunca tinha acontecido na altura do KEDO. Muitas coisas são iguais em termos de objetivos finais, mas a circunstância histórica é muito diferente. Não podemos transpor uma circunstância à outra.

Com o presidente Trump, não consigo imaginar o que pode acontecer, porque aquele senhor é completamente imprevisível do ponto de vista políticoTodos aqueles gestos simbólicos e de felicidade são reais? Não foram um pouco encenados para criar uma ideia de proximidade que se calhar ainda não existe, pelo menos não naquele nível?

Com certeza. O encontro fez-se para que se soubesse. Para que se tornasse num espetáculo, é porque isto interessava às duas partes. Suponho que foi essa a intenção, tornar espetáculo para ajudar a tornar irreversível.

Ao que tudo indica, a cimeira desta terça-feira entre Kim Jong-un e Donald Trump vai mesmo acontecer. Que expectativas tem para este encontro?

Ou não tem resultados nenhuns e o Trump levanta-se da mesa e vai embora, como já disse uma vez que podia fazer, ou vai-se ali pôr a primeira pedra num edifício que se vai construir, um diálogo que vai demorar tempo para consolidar uma situação que seja aceitável para as duas partes e para a região.

Perante a sua experiência diplomática, para qual desses cenários está mais inclinado?

Se só houvesse a Coreia do Norte, eu diria que o último. Com o presidente Trump, não consigo imaginar o que pode acontecer, porque aquele senhor é completamente imprevisível do ponto de vista político.

Campo obrigatório