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"Temos de lutar pelas quatro horas de trabalho"

Isabel do Carmo, em entrevista ao Notícias ao Minuto, considera que a defesa da saúde e da educação, bem como a reivindicação pelas quatro horas de trabalho, devem ser as principais lutas da Esquerda nos próximos tempos.

"Temos de lutar pelas quatro horas de trabalho"
Notícias ao Minuto

17/01/18 por Pedro Bastos Reis

Política Isabel do Carmo

Manifestamente satisfeita com a atual solução governativa existente em Portugal, Isabel do Carmo refere que o acordo parlamentar entre o PS, o Bloco de Esquerda e o PCP traduziu-se em medidas “favoráveis às pessoas” bem como numa “melhoria financeira”. Para tal, defende, o Livre/Tempo de Avançar, do qual fez parte, teve um papel importante ao bater-se por estes acordos na campanha eleitoral de 2015.

Nesse sentido, acredita que ainda há várias coisas que a maioria de Esquerda pode fazer no que resta da legislatura. Numa área que conhece particularmente bem, a médica e ativista realça a importância de aumentar o investimento na saúde, uma vez que, diz, é necessário contratar mais gente. Ainda na área da medicina, considera que a proposta para que a canábis possa ser utilizada para fins medicinais deveria ser aprovada. Relativamente à legalização para fins recreativos, tem mais dúvidas.

Para Isabel do Carmo, a agenda da Esquerda, nos próximos tempos, deve focar-se em duas questões essenciais: a manutenção da saúde e da educação como sistemas de redistribuição e a luta pelas quatro horas de trabalho. Com a automatização do trabalho, quando as máquinas substituírem substancialmente o trabalho humano, defende ainda, o rendimento básico universal poderá ser uma das medidas pelas quais a Esquerda deve lutar. Mas, para já, sublinha, a prioridade deve ser a luta pela “diminuição drástica das horas de trabalho”.

O orçamento da saúde tem de ser maior, para ser possível abrir mais unidades de saúde familiarPela primeira vez, Bloco, PCP e PS fizeram um acordo que permitiu a António Costa governar. Passados mais de dois anos desde que começou esta solução governativa, qual é o balanço?

Acho que é um balanço fantástico. Pela primeira vez, o Parlamento funcionou verdadeiramente como parlamento e da maioria de Esquerda emanou um governo e apoia um governo. As maiorias parlamentares é que devem ganhar, e neste caso a maioria era de Esquerda, e tinha de constituir governo. As medidas do Governo têm sido muito favoráveis às pessoas, em relação ao emprego, aos impostos, aos direitos. E, por outro lado, têm conjugado isso com a melhoria financeira em termos de relações internacionais. Parecia um milagre, ninguém acreditava que tal ia suceder mas sucedeu. Até para a Europa é um exemplo. Quando vemos os níveis do desemprego em Espanha, são muito maiores. Não nos venham com o exemplo que Espanha saiu da crise económica com um governo de Direita. Sim, saiu, mas tem desemprego muitíssimo maior. Portugal, um país com uma estrutura de base com problemas fortes, conseguiu sair [da crise]. Agora, é preciso fazer outras coisas, por exemplo em relação à saúde. É necessário haver mais investimento.

O que é que esta maioria ainda pode fazer nestes anos que faltam?

Não conheço, exatamente, o que se passa na educação, em que deve haver défice em relação ao pessoal, por exemplo. Mas em relação à saúde sei o que falta fazer. O orçamento da saúde tem de ser maior, para ser possível abrir mais unidades de saúde familiar, o que nem é grande coisa, são custos que têm compensação um ano depois. Admitir mais enfermeiros, mais pessoal auxiliar e operacional, mais médicos, ter estímulos financeiros, por exemplo para colocar pessoas na periferia. Tudo isto só se faz com mais financiamento. E é essencialmente aí, na saúde, que temos de fazer isso. E também ter a coragem de mudar direções intermédias. Penso que, por exemplo, ao nível das florestas, com tudo o que se passou, vai haver essa coragem. As estruturas intermédias bloqueiam. É aí que está o poder, muitas vezes. É no terreno que as coisas têm de ser feitas.

Sente que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) pode estar em causa?

Acho que ele vai manter-se. Se sobreviveu até agora, com as dificuldades que houve durante os quatro anos de crise, vai sobreviver. Para as pessoas em geral, é qualquer coisa de querido. Mas tem de haver mudanças neste sentido, de maior financiamento e de não ter de ir comprar serviços ao exterior. Muito do fluxo financeiro do SNS é para comprar serviços fora. Se olharmos para os gastos, mais do que as parcerias público-privadas (PPP), que são muito faladas, é sobretudo a compra de serviços aos privados, e os privados têm subido muito [os preços], porque são suportados pelas compras que o SNS faz.

Se a canábis tem efeitos antiálgicos não deve haver preconceitoA morosidade do funcionamento da saúde poderá ser um entrave?

A morosidade deve-se à falta de meios. Se houvesse mais unidades de saúde familiar não acorriam tantos doentes ao hospital. Se no hospital houvesse mais pessoal, havia menos morosidade. Ultrapassada a porta de entrada, as coisas correm bem. Com sacrifícios e com muito esforço, mas correm bem.

Um dos temas dentro da área da medicina que tem marcado a atualidade é a proposta de legalização da canábis para fins medicinais. Concorda com esta medida?

Se a canábis tem efeitos, sobretudo, antiálgicos, anti-dor, não deve haver preconceito. Também temos a morfina e outros opiáceos, por que não a canábis? Se está demonstrado o seu efeito terapêutico, deve ser aprovada como outra qualquer.

Esta é uma causa muito cara à Direita, que dificilmente aprovará a medida. No entanto, a verdade é que a medida acaba por não passar num Parlamento com maioria de Esquerda.

Porque há cuidados do Partido Comunista e do Partido Socialista também. Acho que os defensores da aprovação da canábis devem fazer, e está na altura de o fazer, um dossier científico com demonstrações. Na história dos medicamentos, há regras para demonstrar a eficácia. E com essas regras a medida pode ser aprovada.

Haverá um momento em que os postos de trabalho serão postos em causa, e aí a luta tem de ser pela diminuição drástica das horas de trabalhoUm dos argumentos que o PCP utiliza é que a proposta poderia ‘abrir as portas’ às grandes farmacêuticas. Esta é uma questão fraturante nesta discussão?

Muitos dos medicamentos das grandes farmacêuticas são feitos a partir de elementos da natureza que têm efeitos medicamentosos, como a aspirina, alguns medicamentos que atuam sobre o coração, a própria penicilina, feita a partir de um fungo, ou a metformina, um dos medicamentos mais usados para a diabetes, que é feito a partir de uma planta. A indústria farmacêutica, onde vê que há qualquer possibilidade de ação, vai lá e depois segue as regras que devem ser seguidas. A canábis será mais uma. Penso é que há a ideia de que a aprovação para efeitos terapêuticos pode esconder a aprovação para efeitos recreativos.

Tem uma opinião nessa matéria?

A minha opinião não é muito definitiva. Tenho dúvidas. Acabámos de fazer uma grande luta contra o tabaco, não vamos abrir a porta a outra coisa que pode ter efeitos prejudiciais. Ninguém é reprimido por fumar marijuana ou uma coisa derivada. Agora que pode ter efeitos psicotrópicos negativos, pode. Não deve ser reprimida, mas sim regulada e explicada, porque não é inócua.

Notícias ao MinutoIsabel do Carmo fez parte das listas do Livre/Tempo de Avançar em 2015 © Blas Manuel/Notícias ao Minuto

Os tempos que retrata em ‘Luta Armada’ mudaram, as lutas também. O que é necessário, hoje, para conseguirmos atingir uma sociedade mais igualitária?

Tenho muitas dúvidas. Temos de ir fazendo. As lutas são diárias. A Esquerda vive a cada dia. Há lutas que são nobres, como a da saúde, que têm de ser feitas. Depois há outras que são lutas de casos, e em que acho que a Esquerda não deve entrar. São aquelas que a Direita tem levantado, caso atrás de caso, que são coisas que não têm nenhum significado.

A que casos se refere?

Estou a falar de Tancos, da Raríssimas, do caso do ministro das Finanças ir ao futebol. A Esquerda deve achar mesmo que isto não é para discutir. Agora, há casos nobres. Estamos a lutar por uma sociedade justa? É uma luta muito parcial. Neste momento já não se discutem utopias, uma sociedade de igualdade em que as pessoas nascem iguais em dignidade e situação. Isso não está em cima da mesa. Mas temos de ir discutindo e lutando parcialmente. Por exemplo, com a robotização que há do trabalho, inevitavelmente que vai haver desemprego por as pessoas serem substituídas por máquinas.

Portugal ainda vive um momento em que estamos um bocado atrás, numa fase de crescimento e desenvolvimento. Mas haverá um momento em que os postos de trabalho serão postos em causa, e aí a luta tem de ser pela diminuição drástica das horas de trabalho. Neste momento, nem sequer são cumpridas as oito horas de trabalho. Vejo doentes no consultório e vejo muita gente a fazer 10 horas por dia, às vezes 12. Porque são ameaçados com o desemprego, com as reestruturações em que muita gente vai para a rua. As pessoas estão a competir com o vizinho do lado no trabalho, há um clima terrível. Do ponto de vista psíquico, isto é terrível. A inspeção do trabalho funciona? Não. No Estado, os horários são cumpridos, no privado não. Temos é de lutar por menos horas de trabalho, quatro horas chegavam.

Num futuro em que as coisas estejam mais automatizadas, não haverá outra solução senão o rendimento básico universalComo vê a eventual aplicação do rendimento básico universal?

Acho que vai ser o futuro, embora implementado agora poderia ser uma substituição do rendimento mínimo de forma a eliminar os outros direitos sociais, o que seria um perigo terrível. Mas no futuro poderá ter de acontecer.

Será uma das grandes causas da Esquerda no futuro?

Pode vir a ser. Mas acho que agora deveria ser a diminuição das quatro horas de trabalho por dia. Acabava o desemprego e as pessoas teriam alguma liberdade para si próprias, para a família e para os filhos. Podia parecer um bocado ridículo, agora, em Portugal, as pessoas lutarem pelas quatro horas de trabalho. Mas acho que isso tem de estar dentro da cabeça da Esquerda. Num futuro em que as coisas estejam mais automatizadas, não haverá outra solução senão o rendimento básico universal.

A Isabel chegou a estar ligada ao Livre/Tempo de Avançar. O que a levou a querer fazer parte das listas? Ainda está ligada ao partido?

A certa altura, eu e outros percebemos que se não tivéssemos expressão eleitoral não teríamos expressão na comunicação social. A verdade é que havia um grupo de pessoas, mais do que um grupo até, que não se exprimindo através de um partido, tinham necessidade de uma expressão pública. Essa necessidade acabou ter sentido com as eleições. E assim foi. Foi a forma de aparecermos a dizer as nossas ideias. Havia pessoas independentes, pessoas ligadas ao manifesto que tinha saído do Bloco, e este conjunto de pessoas achava que devia haver, depois das eleições, uma unidade com o PS e com o PCP. Nessa altura, isso era rejeitado no Bloco de Esquerda, muito rejeitado [risos].

Não colocámos ninguém no Parlamento, mas o nosso objetivo, que era a unidade da Esquerda, foi concretizadoAs coisas entretanto mudaram.

Depois das eleições, e de não termos colocado nenhum deputado, eis que o nosso objetivo foi concretizado. Ainda bem. Penso que a nossa presença foi determinante para que isso acontecesse. Na altura, constituímos um grupo que se aliou ao Livre porque não é possível concorrer [nas eleições legislativas] sem um partido, e gostei. Estivemos na rua, falámos com as pessoas, fizemos comícios. Não me arrependo nada. Não colocámos ninguém no Parlamento, mas o nosso objetivo, que era a unidade da Esquerda, foi concretizado.

Agora que existe essa unidade, o propósito do Livre ainda faz sentido? Imagina-se a voltar a fazer parte de alguma lista para as próximas eleições legislativas?

Não me imagino [risos]. Não vou integrar nenhuma organização nas legislativas. Penso que as pessoas com quem estou organizada, e temos reuniões com frequência, não tem qualquer ideia de integrar listas eleitorais. As pessoas do Livre têm esse problema. Não sei como vão prosseguir, nem quero ter uma opinião a esse respeito. É um problema grande para eles.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui

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