O antigo presidente da Assembleia da República Eduardo Ferro Rodrigues considerou, esta quinta-feira, que, se é certo que "a corrupção mina" o estado de Direito democrático, também "é preciso ter em conta que é preciso combater a corrupção de acordo com a Constituição e as leis do estado de Direito democrático".
O Governo apresentou, horas antes, um pacote de medidas anticorrupção, que inclui a criação de um mecanismo que prevê a perda alargada de bens a favor do Estado.
Sobre esta medida, em entrevista à SIC Notícias, Ferro Rodrigues admitiu: "Tenho dúvidas que seja constitucional. Felizmente, vai haver um grupo de trabalho na Assembleia da República. Faz-me alguma confusão é se isso é, ou não, constitucional. Também não vale tudo, como andar, em nome da corrupção, a combater inimigos políticos, como acontece nas ditaduras".
O antigo líder do Parlamento recorreu ao exemplo do estado autocrático da Rússia, onde "os grandes combatentes pela liberdade foram todos presos por acusações de corrupção". "Também não se pode admitir que o combate à corrupção seja utilizado para o combate político ou a destruição em pessoas", alertou.
Eduardo Ferro Rodrigues - subscritor do 'Manifesto por uma Reforma da Justiça em Defesa do Estado de Direito Democrático' -, confessou, também, fazer-lhe "confusão", que sobre "a ida de grandes capitais para offshores [...] nada é dito sobre a investigação a esses fundos".
"O fenómeno da corrupção é mais um problema de perceção, em que existe um papel grave de alguns tabloides no sentido de dar a entender que todos são corruptos até prova em contrário", atacou ainda o antigo presidente da Assembleia da República, argumentando que "a esmagadora maioria das pessoas é condicionada pelo tipo de informação que recebe e a importância que é dada a pequenos casos que são transformados em mitos urbanos, ou mesmo nacionais".
Numa altura em que foram divulgadas escutas que envolvem o antigo primeiro-ministro António Costa, quando está em discussão o seu futuro no Conselho Europeu, Ferro Rodrigues criticou as "fugas de informação", ou melhor, as "passagens de informação de forma seletiva para ataques de caráter e políticos", algo que é "absolutamente chocante".
De acordo com o sumário das medidas, a agenda apresentada pelo Governo assenta em três eixos - prevenção, repressão e educação -, e o executivo pretende aprofundar os instrumentos que levam à perda das vantagens obtidas pela prática de crime, em linha com a legislação comunitária, "assegurando que a perda possa ser declarada relativamente a bens identificados em espécie, por um lado, e que em determinadas condições se possa dispensar o pressuposto de uma condenação por um crime do catálogo", onde se incluem a corrupção, branqueamento de capitais e fraude.
A ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, disse que o mecanismo de perda alargada de bens hoje aprovado no âmbito da agenda anticorrupção pode ser aplicado mesmo no cenário de arquivamento de processos.
Ainda no âmbito do processo penal, o executivo admite "reequacionar a amplitude e função da fase processual da instrução, nomeadamente no plano da produção de prova e do controlo incidente sobre a matéria de facto" e reforçar os poderes de condução e gestão do processo dos juízes.
A ministra defendeu também que a fase de instrução dos processos tem de ser revista para evitar que se tornem em pré-julgamentos, considerando que isso é necessário para dar maior celeridade à justiça.
"Conselho de Estado já devia ter sido convocado"
Na mesma entrevista, Ferro Rodrigues falou sobre a nomeação do próximo Procurador-Geral da República (PGR), considerando que o futuro protagonista deste cargo deverá passar pela Assembleia da República, e que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, "já devia" ter convocado o Conselho de Estado para debater o estado da Justiça em Portugal.
"Sobretudo no estado em que está a Justiça em Portugal e a Procuradoria-Geral da República", e "nesta ausência de comando e de hierarquia", é "muito importante não saber apenas o nome do futuro ou futura procurador-geral, mas que programa e ambições tem". "A passagem pela Assembleia da República, numa audição parlamentar, é indispensável", considerou.
Ao mesmo tempo, o antigo líder do Parlamento disse que "como o Presidente da República tem um papel muito importante na nomeação do PGR, já tinha sido altura para ter convocado o Conselho de Estado para discutir, em geral, as questões da Justiça e, mais em particular, a ameaça que um conjunto de situações como estas que se passaram nos últimos dois dias, que são ameaças ao estado de Direito democrático".
"O Conselho de Estado já devia ter sido convocado", vaticinou.
[Notícia atualizada às 21h51]
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