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"Não são só partidos de Direita que precisam reforçar ação antirracista"

Joacine Katar Moreira, a primeira mulher negra a ser eleita cabeça-de-lista de um partido político português, é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

"Não são só partidos de Direita que precisam reforçar ação antirracista"

Joacine Katar Moreira é a primeira mulher negra a ser eleita cabeça-de-lista de um partido político português. A investigadora de 36 anos concorre às eleições Legislativas de outubro deste ano pelo círculo eleitoral de Lisboa, em representação do partido LIVRE, tendo como número dois Carlos Teixeira.

Licenciada em História Moderna e Contemporânea, com um mestrado em Estudos do Desenvolvimento e doutorada em Estudos Africanos, Joacine granjeia de experiência como investigadora, no Instituto Universitário de Lisboa, e no associativismo, sendo presidente do Instituto da Mulher Negra em Portugal (INMUNE).

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a candidata do LIVRE, que foi também número dois de Rui Tavares na corrida às eleições Europeias, fez um esboço das ideias e propostas do partido para o escrutínio de outubro. Enumerando a justiça social e a justiça climática como eixos basilares do programa eleitoral do LIVRE, Joacine falou sobre o salário mínimo nacional, a representatividade dos setores populacionais excluídos e a violência doméstica como alguns dos temas mais urgentes em Portugal.

"É hora de mudança", afirma Joacine Katar Moreira, pedindo responsabilização ao Estado - e aos partidos de todo o espetro - na questão da representatividade e no combate ao racismo e à xenofobia. "É hora de o Parlamento português ser o reflexo da nossa sociedade", continua, "porque a nossa sociedade não é homogénea".

Não me sinto minimamente representada por mulheres que tenham uma ótica conservadora. São mulheres que irão compactuar com o sistemaO LIVRE teve a melhor estreia de um partido português nas Europeias, em 2014, com 71 mil votos. Este ano, porém, perdeu 10 mil votos. Que balanço foi feito?

Uma estreia é uma estreia, há um impacto mediático, os órgão de comunicação social mostram interesse e dão acompanhamento, mesmo que seja mínimo, por ser uma estreia. E não era uma estreia qualquer. Era uma estreia, digamos assim, de um partido com um elenco de indivíduos intelectualmente respeitáveis, alguns já com experiência mediática, o próprio Rui Tavares era um ex-eurodeputado, portanto foi uma época ótima e um início extraordinário.

Na nossa ótica, este resultado das Europeias 2019 obviamente que não era o nosso resultado ideal. Nós estávamos conscientes de que tínhamos o melhor candidato a eurodeputado e que, além disso, tínhamos o melhor programa para as Europeias. Com um orçamento de 10 mil euros, nós obtivemos 60 mil votos, incomparável com os outros partidos com orçamento de, por exemplo, 350 mil euros como a Aliança, que em Lisboa teve apenas 900 e tal votos a mais do que nós. Portanto, com o nosso orçamento obtivemos imensos votos, incomparável aos outros que tinham milhares e milhares de euros. Convém também lembrar que já não éramos novidade este ano e houve um afastamento do nosso partido dos meios de comunicação social, o que até nos levou a fazer um abaixo-assinado e a fazermos uma queixa à ERC.

Independentemente disto, não foi um mau resultado, mas é um desperdício enorme para o Parlamento Europeu não ter lá alguém como o Rui Tavares, que é um homem com imensa experiência e com uma ótica de uma esquerda ecológica, democrática e solidária. A ideologia é importantíssima, porque estamos numa época de ascensão de partidos de extrema-direita, de ascensão de conservadorismo. É um desperdício não se eleger alguém que tenha uma posição ideológica objetiva.

O LIVRE teve melhores resultados nos concelhos mais urbanos. Acha que foi a falta de mediatização a prejudicar o partido noutras zonas, mais envelhecidas, com menor proporção de licenciados, por exemplo?

Absolutamente. Nós temos uma noção muito objetiva do impacto e da importância dos órgãos de comunicação social. Na minha ótica, o resultado destas eleições, ainda que não tenha sido um resultado negativo, é resultado de não nos terem ouvido. Tenho a certeza absoluta que se nos tivessem ouvido, ouvido a nossas ideias, ouvido quem éramos, teríamos um resultado diferente.

Há muito entusiasmo com a eleição de duas mulheres para cargos institucionais de topo na União Europeia (UE). Há entusiasmo relativo por se tratar da ministra da Defesa alemã [Ursula von der Leyen] e da antiga diretora-geral do FMI [Christine Lagarde]. Como vê esta eleição?

Enquanto mulher feminista interseccional obviamente que estou com sentimentos, digamos, algo contraditórios. Tal e qual referi há uns meses, o ideal para a UE não era que houvesse quotas para as mulheres, era que houvesse quotas para mulheres feministas. [risos] Isso iria imediatamente resolver uma série de problemas.

E abriria uma discussão enorme…

Abriria uma discussão enorme, mas teríamos a certeza de que estávamos a eleger e a dar a apoio a mulheres democráticas, com uma ótica mais à Esquerda. Eu não me sinto minimamente representada por mulheres que tenham uma ótica conservadora nas instituições, na política, na economia. Porquê? Porque são mulheres que irão compactuar com o sistema e até reforçar este olhar institucional, que é caracterizado por assimetrias enormes.

Se nós olharmos hoje, esta não é UE que se idealizou. Esta não é uma UE que esteja perto de cidadãos europeus, é uma UE das instituições, da organizações, da economia, do sistema financeiro. Não é uma UE dos cidadãos, da igualdade, da solidariedade, da ecologia. E dando mais importância às questões financeiras e menos importância às questões sociais, não é uma UE que nos interesse para o futuro. Numa altura de discussão de alterações climáticas, que põe em causa o futuro do nosso planeta, o que significa que põe em causa a nossa existência, e num ambiente de enorme crise humanitária, a UE, fundada em princípios de igualdade, solidariedade, não pode normalizar a quantidade de mortes que acontecem no Mediterrâneo e não usar dos recursos que dispõe para a combater.

Trabalhei oito horas por dia para fazer a minha licenciatura, fiz um empréstimo universitário para fazer o mestrado, sou irmã mais velha de 11 irmãosO concelho de Lisboa, que a Joacine está a representar, foi onde o LIVRE teve melhores resultados nas Europeias. Deixa-a à vontade no objetivo de eleger um deputado por Lisboa nas Legislativas?

Estas não são umas eleições quaisquer, pelo simples facto de que nunca houve antes uma pessoa negra como cabeça-de-lista em eleição nenhuma em Portugal. E que essa cabeça-de-lista, além de ser uma pessoa negra, é mulher, não faz parte das habituais elites, é uma cidadã normal oriunda de uma família que não tem recursos económicos. Trabalhei oito horas por dia para fazer a minha licenciatura, fiz um empréstimo universitário para fazer o mestrado, sou irmã mais velha de 11 irmãos. Não sou alguém que faça parte do habitual espetro político. Além disto gaguejo impecavelmente quando falo e tenho uma série de intersecionalidades que não é hábito. É ato histórico, que os militantes do meu partido acharam que era hora de acontecer. Sublinhe-se que eu não fui nomeada, não fui escolhida por uma direção partidária, porque no LIVRE nós realizamos primárias abertas.

Confesso que foi com enorme alegria que recebi estes resultados, que me colocaram como número dois nas eleições Europeias e me colocam hoje como número um nas eleições Legislativas. Isto porquê? Porque nós achamos que é hora de o Parlamento português ser o reflexo da nossa sociedade. Não pode ser um ambiente de homogeneidade porque a nossa sociedade não é homogénea.

O facto de existir uma ministra mulher e negra tem um referencial histórico enorme, mas é preciso não nos esquecermos disto: foi nomeada, não foi eleitaPode comparar-se, um pouco, com o que aconteceu nos Estados Unidos nas eleições intercalares do ano passado com a eleições de pessoas como a Alexandria Ocasio-Cortez, a reboque de campanhas de base popular?

É isso mesmo, absolutamente. Mas com algumas e enormes e importante ressalvas. Nós estamos num ambiente que tem sido sucessivamente muito fechado para que pessoas de minorias étnico-raciais estejam em áreas de visibilidade, isto em qualquer área, até nos restaurantes. Na restauração as mulheres negras são as que estão lá atrás, ninguém sabe quem elas são. E é este o ambiente de invisibilidade sucessiva e histórica das pessoas negras ao longo da história de Portugal e nós nunca nos podemos esquecer disto. Até há 40 e tal anos ainda havia colonização, não é um passado muito afastado, e é um passado que tem um impacto enorme na maneira como nos relacionamos socialmente com os indivíduos que são oriundos dos países independentes, como Angola, Guiné-Bissau, Moçambique. Nós ainda estamos a iniciar a reflexão e análise crítica da história colonial.

Temos uma ministra da Justiça que é uma mulher negra de origem africana, isso é maravilhoso e foi algo que nos inspirou e nos encheu de ânimo e de uma auto-estima que não tínhamos antes. O facto de existir uma ministra mulher e negra tem um referencial histórico enorme, mas é preciso não nos esquecermos disto: a ministra foi nomeada, não foi eleita. Isto faz com que seja um ato verdadeiramente histórico e simbólico que o meu partido tenha escolhido uma mulher negra como cabeça-de-lista, que irá estar num ambiente político de competição com partidos já instalados, na sua maioria, com enormes recursos financeiros e mediáticos.

Acho que há hipóteses de eu ser eleita nas eleições Legislativas. Nós estamos confiantes e um dos motivos é exatamente a ideia objetiva de que é hora de mudança e é hora de nós começarmos a reverter, digamos assim, estes ambientes institucionais, nomeadamente no Parlamento. O Parlamento necessita de indivíduos que tenham óticas diferentes e que tenham efetivamente algo a contribuir para que haja mais inclusão de setores e de reivindicações que não têm estado em cima da mesa.

Simultaneamente, esta é uma candidatura que está para além da ideia representatividade étnico-racial. Eu sou uma mulher, com habilitações, com experiência académica e intelectual. Existem experiências que são absolutamente fundamentais para que haja mudanças positivas no quotidiano das famílias que residem em Portugal.

Estes legisladores não andam de transportes, não conhecem a realidade periférica. Não fazem ideia do que é alguém precisar de apanhar dois ou três transportes para ir trabalhar todos os diasComo, por exemplo...

Foi ótimo o Partido Socialista (PS) ter reduzido o custo dos passes sociais, deu algum oxigénio para milhares de famílias. Mas a maioria, se calhar, não teve em consideração que não é suficiente baixar o preço dos passes sem aumentar a oferta. Foi ótimo ter-se descido o preço dos passes mas as pessoas estão a reclamar muito. As pessoas estão aflitas com as filas de espera, em comboios e autocarros completamente cheios. E nas zonas periféricas ainda existem autocarros que passam de meia em meia hora, ou de hora a hora. Isto é o resultado de algo: estes legisladores não andam de transportes, não conhecem a realidade periférica. Não fazem ideia do que é alguém precisar de apanhar dois ou três transportes para ir trabalhar todos os dias. As medidas, por mais importantes ou impactantes que sejam, elas precisam também de ser enquadradas num conhecimento que advém de alguma experiência. Estas são coisas que afetam as pessoas diariamente, para além da questões de habitação e de emprego.

Somos um país que até tem quotas para as mulheres, mas por outro lado tem um enorme número de feminicídiosAinda não foi apresentado programa eleitoral para as Legislativas. Pode-me desenhar os traços gerais do que estão a pensar apresentar?

Antes de mais, reforçar isto: nós somos um partido que foi fundado com uma base de ecologia absolutamente alta. Normalmente somos conhecidos por sermos um partido europeísta e ecologista. Não somos muito conhecidos pelas questões do feminismo, do antirracismo, da igualdade, embora, naturalmente, enquanto partido de Esquerda, a igualdade seja olhada de forma muito transversal a todas as questões.

Nestas eleições Legislativas, a questão da igualdade ganha um aspeto central e isto porque nós acreditamos que só existe desenvolvimento sustentável, só existe justiça climática, se existir justiça social. Se não houver justiça social estamos a garantir, mais uma vez, que apenas uma minoria tenha a hipótese de viver condignamente. Portanto, estes são os eixos basilares do nosso programa das Legislativas: justiça social e justiça climática.

O que é justiça social? É garantirmos que as assimetrias que afetam negativamente as nossas vidas, que as assimetrias que nos separam, que as assimetrias que garantem que os poucos tenham imenso e que os muitos tenham cada vez menos, acabem. Justiça social é nós encontrarmos aqui um equilíbrio em que cada cidadão português possa viver com dignidade. Dignidade significa, necessariamente, aumentar o salário mínimo nacional (SMN). Nós achamos que não se pode evoluir, não se pode efetuar uma autêntica mudança, se as pessoas continuarem a ter um ordenado mínimo de 600 euros. Um ordenado mínimo que, hoje em dia, nem sequer dá para arrendar um apartamento, para pôr os filhos e filhas no infantário, para pagar as despesas mensais. Isso é que é justiça social, nós aceitarmos e admitirmos que não há justiça nenhuma enquanto as pessoas estiveram a auferir ordenados que não lhes permita, sequer, sobreviver.

E é igualmente justiça social que haja uma efetiva representatividade de setores populacionais normalmente excluídos. Nós estamos a começar a dar importantes passos no que diz respeito à igualdade de género, em que já existem quotas para as mulheres e por aí fora. Mas há ainda todo um processo de igualdade que nós precisamos de notar. Somos um país que até tem quotas para as mulheres, mas por outro lado tem um enorme número de feminicídios e no qual parece existir uma normalização. Nós abrimos os órgãos de comunicação social e vemos expressões como “mais uma mulher assassinada”. Isto é algo que necessita urgentemente de ser resolvido pelo Estado.

Estes novos homens precisam entender, desde o infantário, que são iguais a todas as mulheres e todas as mulheres precisam entender que são iguais a todos os homensComo é que o Estado pode encarar este problema da violência doméstica de forma a trabalhar na sua raiz, que é tanto cultural como estrutural?

Acho que é fundamental uma aposta na educação. Não podemos educar uma sociedade inteira nos valores das masculinidades, não podemos ensinar às mulheres desde a sua infância que elas não podem exigir, falar ou mostrar mais. E nós educamos os homens para ocupar os espaços, falar alto, decidir. E quando há situações de extrema violência, quando há violência doméstica, psicológica, física, etc., normalmente todas as ações direcionam-se para as mulheres, o que é necessário. Mas não podemos descurar os homens, que são os perpetuadores da violência doméstica. As políticas e ações não podem incidir somente nas mulheres. É preciso também educar os homens, os novos homens.

Estes novos homens precisam entender, desde o infantário, que são iguais a todas as mulheres e todas as mulheres precisam entender que são iguais a todos os homens. Iguais no que diz respeito aos direitos, a uma vida digna, iguais no que diz respeito à possibilidade de reflexão e reivindicação e de ocupação de determinados espaços. Não podemos continuar a dividir os nossos meninos e as nossas meninas. E também não se pode desculpar as violências e as agressividades desde tenra idade, naturalizando isto como “comportamentos de rapazes”.

Ideias que depois surgem em espaços institucionais, como os tribunais.

Ideias que depois surgem, naturalmente, em espaços institucionais. Aliás, nós vivemos numa sociedade de dominação institucional masculina. São os homens que controlam maioritariamente as instituições e isto também não nos tem auxiliado no objetivo da igualdade. Estamos a dar passos importantes, mas há casos de mulheres vítimas de violência doméstica que se dirigem a esquadra para efetuar uma denúncia e depois queixam-se da forma como são recebidas ou questionadas. Há toda uma formação e uma educação para a igualdade que é necessários nós começarmos a instituir oficialmente.

A ideia passa, então, por adotar uma postura mais pró-ativa ao invés de reativa no combate a este problema.

Absolutamente, e iniciar isto nas instituições e nas escolas. Acho absolutamente fundamental o investimento na juventude, nas várias áreas. Por outro lado, acho que é impossível falar de justiça social sem falar de racismo e xenofobia, que constituem uma série de violências e exclusões completamente normalizadas, que subalternizam e excluem os negros, a comunidade cigana e as outras minorias étnico-raciais. Isto irá exigir necessariamente que nós aceitemos que a sociedade portuguesa não é uma sociedade homogénea. É uma sociedade plural e diversa em que cada um de nós contribui para a edificação da nossa democracia, da nossa economia, etc. É necessário também que o Estado reforce a sua ação antirracista. Cabe sobretudo ao Estado tomar medidas, legislar e implementar políticas que combatam todas as violências, nomeadamente a enorme violência que é o racismo e a xenofobia.

Não há verdadeira democracia quando setores importantes da sociedade continuam a ser marginalizados, violentados e excluídosA questão étnico-racial tem sido tema recorrente. Em Lisboa, sobretudo desde o ano passado, tem-se gerado convulsões específicas, nomeadamente com as comunidades negra e cigana. O que é que a Joacine acredita que é preciso mudar para atender a estas comunidades, que são historicamente marginalizadas na sociedade portuguesa?

Eu, enquanto ativista antirracista, tenho participado academicamente com artigos de opinião, e em termos de associativismo, com uma série de questões que eu considero que estão inter-relacionadas. Quando nós falamos, por exemplo, da recolha de dados étnico-raciais, para os Censos, isto é algo que o meu partido também irá defender nestas eleições. É fundamental por uma série de razões, que não dizem respeito unicamente às minorias étnico-raciais. O enfoque da recolha dos dados étnico-raciais tem que ser colocado igualmente na sua importância para a melhoria da nossa sociedade e para o reforço da nossa democracia. Não há verdadeira democracia quando setores importantes da sociedade continuam a ser marginalizados, violentados e excluídos. Os dados étnico-raciais interessam de sobremaneira ao Estado.

O concelho da Amadora é uma das áreas em que há maior aumento, por exemplo, de VIH. Importa ao Estado saber quem são as pessoas que habitam naquele concelho e porque é que ao invés de estarmos a falar de uma redução absoluta do vírus, estamos a ver que em determinadas áreas tem havido aumento. O concelho da Amadora é dos concelhos com mais nacionalidades. Uma recolha de dados étnico-raciais permite fazer melhores que políticas públicas.

Acredita que a clarificação das questões étnico-raciais impediria a manipulação e propagação de discursos nacionalistas, racistas ou xenófobos?

Eu acho que sim, mas o meu enfoque vai para além disso. Nós não somos inocente e sabemos que os dados étnico-raciais podem vir a ser usados de uma forma que não seja a que nós desejaríamos, mas isso não resume aos dados étnico-raciais. Todos os dados estatísticos podem ser usados com objetivos alternativos. Não se pode enraizar a discussão dos dados étnico-raciais na sua instrumentalização, mas na sua necessidade para a melhoria do conhecimento real daquilo que se passa na nossa sociedade. Obviamente que muitas ideias vão desmistificadas, nomeadamente que os imigrantes não contribuem, que a comunidade cigana é a que mais usufrui do RSI, etc.

É também óbvio que mesmo com a recolha de dados que provem que isto são falácias, e que são falácias racistas, isto não impede que se continuem a propagar ideias que não têm fundamento. Independentemente disto, o Estado precisa de cumprir o seu papel, de proteger todos os cidadãos. E não se pode proteger todos os cidadãos se não se tiver um conhecimento profundo da sociedade.

A Polícia de Segurança Pública não pode ser Polícia de Insegurança Pública, tem obrigação de transmitir segurança a todas as pessoas que habitam em território nacional. Se existe violência policial, existe uma violência do Estado

A propósito dos incidentes no Bairro da Jamaica e depois na Avenida da Liberdade. O Parlamento aprovou em janeiro um voto apresentado por PSD e CDS-PP onde condena “todo o tipo de violência”, incluindo “a que é exercida contra agentes de autoridade”, sem nunca se referir à comunidade negra. Como encara esta tomada de posição?

Em primeiro lugar, para mim foi verdadeiramente chocante, ainda antes do caso do Bairro da Jamaica, o caso da esquadra de Alfragide, no qual tivemos vários agentes constituídos arguidos. Assisti a algumas sessões no tribunal e não me surpreendeu, necessariamente, o desfecho e também não me surpreendeu que as acusações de ódio racial tenham caído. Isto não são casos isolados, a comunidade negra tem-se queixado recorrentemente de violência policial. A Polícia de Segurança Pública não pode ser Polícia de Insegurança Pública, tem obrigação de transmitir segurança a todas as pessoas que habitam em território nacional. Se existe violência policial, existe uma violência do Estado.

A minha questão era sobre o facto de o Parlamento, onde é suposto haver representatividade, não ter existido referência à comunidade negra.

Não houve uma palavra para a comunidade negra e é importante nós reforçarmos isto: não houve nem à Esquerda nem à Direita.

Sim, o PS assinou o voto.

Exatamente. Isto também nos faz entrar numa área. Não são unicamente os partidos de Direita que precisam de alterar o seu enfoque e reforçar democraticamente a sua ação antirracista, alguns partidos de Esquerda também precisam de o fazer.

Tenho a certeza absoluta de que vai haver pessoas negras em alguns partidos de Esquerda, pela primeira vez, como reação ao facto de eu ser cabeça-de-listaÉ possível que exista verdadeiro discurso igualitário, feminista, antirracista em partidos, mesmo de Esquerda, que não têm representatividade nos cargos de poder?

Aí está! O facto de um LIVRE ter agora, nestas eleições, uma mulher negra como cabeça-de-lista vai exigir aos outros partidos de Esquerda colocarem, pela primeira vez nas suas histórias, pessoas negras em lugares elegíveis, como reação. Tenho a certeza absoluta de que vai haver pessoas negras em alguns partidos de Esquerda, este ano, pela primeira vez, como reação ao facto de eu ser cabeça-de-lista*. Isto tem as suas imensas interpretações. Afinal, havia a hipótese de já terem colocado pessoas negras em lugares elegíveis. Por que é que não o fizeram antes? Por que é que o irão fazer unicamente este ano? Quais são os motivos? São motivos antirracistas, pela igualdade, eleitoralistas? Mas, na minha ótica, se a minha candidatura originar o aumento de pessoas negras em lugares elegíveis, eu já ganhei as eleições Legislativas.

Sente-se representada no Parlamento?

Eu, hoje em dia, não me sinto necessariamente representada no Parlamento. Acho que sou eu e imensas pessoas como eu. Isto porque é insuficiente ter uma retórica antirracista, é insuficiente ter uma retórica feminista, pela igualdade, por uma maior justiça social se for uma retórica de lapela. Precisamos de ação concreta. Precisamos que os partidos apoiem a alteração da lei da nacionalidade, para que quem nasça em Portugal seja considerado automaticamente português e que isso não dependa da situação do pai e da mãe. A pessoa nasce num país que não o acolhe, nasce num país que rejeita a sua cidadania. Isto é extremamente impactante para a vida de muita gente. E enquanto não houver um partido que defenda isto no Parlamento, este não me representa.

Qual é a latitude do LIVRE para acordos ou soluções como a Geringonça?

O meu partido, embora seja um partido com apenas cinco anos de existência, é um partido que já tem contribuído para a melhoria da vida da cena política nacional, porque fomos nós que começamos a falar da necessidade de convergência à Esquerda, nas últimas eleições Legislativas. Este era uma dos nossos elementos centrais para evitar mais anos de austeridade de uma Direita que estava a afundar o país. E nós não fomos eleitos nessa eleições.

Naquela época, o nosso objetivo era este: ajudar a reforçar a Esquerda portuguesa, ajudar o país a sair da austeridade, dar um enfoque mais social, mais humano e mais próximo dos cidadãos e não esse enfoque economicista e financeiro que estava a empurrar centenas de pessoas para a emigração e centenas de pessoas para o desemprego. E houve Geringonça depois das eleições, foi uma vitória que nós também celebramos.

* O Bloco de Esquerda apresentou no dia 6 de julho, um dia após a realização desta entrevista, Beatriz Dias, "mulher negra e fundadora da Associação de Afrodescendentes", como número três na lista pelo círculo de Lisboa.

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