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"Ainda há muito a ideia que a economia social deve viver de voluntariado"

A Associação Renovar A Mouraria faz dez anos esta segunda-feira, dia 19 de março. Desde 2008 que tem tido como objetivo fazer daquele bairro histórico de Lisboa um sítio melhor para viver.

Notícias ao Minuto

08:30 - 19/03/18 por Sara Gouveia

País Renovar A Mouraria

No âmbito do 10.º aniversário da Associação Renovar A Mouraria, a organização que revitalizou o bairro da Mouraria, fomos falar com quem dá a cara por aquela zona de Lisboa desde o início e perceber o que foi feito nestes dez anos, bem como o que ainda falta fazer.

Uma das fundadoras da associação, Inês Andrade, explicou ao Notícias ao Minuto como tudo começou, o que melhorou e os principais desafios que uma organização de economia social ainda hoje tem de enfrentar.

Como surgiu a ideia de criar uma Associação para dinamizar um bairro?

Eu morava aqui já há alguns anos e era uma realidade que me incomodava bastante, a degradação do bairro, a mim e a toda a gente que aqui morava e então decidimos - antes mesmo de formalizar a Associação - fazer uma petição à Câmara de Lisboa reclamando que dessem atenção ao bairro da Mouraria, que era um bairro com a sua importância histórica e que estava completamente votado ao abandono há séculos. Essa petição foi muito mediatizada, na altura, foi o modo como se deu o arranque, porque foi depois disso que criámos a Associação e que começámos a desenvolver uma série de atividades. Algumas em parceria com a Câmara, que se disponibilizou para nos ajudar a desenvolver o projeto, e foram convidadas outras instituições parceiras.

Notícias ao MinutoInês Andrade© Renovar A Mouraria

Para quem não conhece a Associação Renovar A Mouraria, que tipo de associação é esta?

Nós trabalhamos em três áreas distintas: A dinamização cultural e artística do território, a inclusão dos públicos mais vulneráveis e no desenvolvimento local, onde está incluído o comércio local com o ‘Retalhos da Mouraria’.

As visitas guiadas são outro dos nossos projetos, onde os migrantes são quem faz essas visitas, mostram a cidade pelos seus olhos. Esta Associação destina-se a todos, nós temos beneficiários que têm acesso a uma série de serviços como apoio jurídico gratuito, aulas de português gratuitas, apoio ao estudo gratuito, uma orquestra de crianças e jovens, tudo isto são atividades que são direcionadas para os nossos públicos mais vulneráveis, mas onde ninguém é excluído, porque a nossa ideia é que toda a gente possa estar no mesmo espaço e ter as mesmas condições – é um convívio enriquecedor e saudável.

A nível cultural e artístico procuramos também oferecer música, cinema, documentários, aproveitando esta multiplicidade que é a Mouraria, com mais de 50 nacionalidades, de forma a termos este encontro e conhecimento de culturas.

O que acontecia há dez anos era que todo o comércio aqui da zona, de modo geral, estava à beira da falência, lojas fechadas, os comerciantes estavam deprimidos, envelhecidos e sem terem quase dinheiro para sobreviverComo têm corrido estes dez anos?

Aquilo que sentimos em termos do território é que de facto aconteceram muitas mudanças, a vários níveis muitos problemas têm sido resolvidos. Desde a questão do aumento de oportunidades para as pessoas menos incluídas, aumento de oportunidades de aprendizagem, de acesso à cultura, acesso a uma série de serviços.

Em matéria de comunidades migrantes havia muitos serviços que estavam muito desacompanhados e agora estão melhores. Há uma dinâmica no comércio local que agora é completamente oposta àquilo que era anteriormente – são extremos na verdade. Aquilo que acontecia há dez anos e antes era que todo o comércio aqui da zona, de modo geral, estava à beira da falência, lojas fechadas, os comerciantes estavam deprimidos, envelhecidos e que sem terem quase dinheiro para sobreviver não o tinham também para poderem investir. Agora o bairro está revitalizado, há novas atividades, está modernizado mas ao mesmo tempo ainda se mantêm comércios antigos e raros. Há também mais criação de emprego porque estando a correr bem, nomeadamente a nível da restauração, verifica-se muita criação de emprego.

Neste momento têm apoios da Câmara?

Temos alguns projetos em parceria com a Câmara, alguns que são cofinanciados por eles também, e trabalhamos muito em rede, com outras instituições, noutras áreas que têm necessidade de ter intervenção aqui.

As organizações que desenvolvem um trabalho mais regular, diário, estão abertas, às vezes, 18 horas por dia e não podem viver de voluntariadoE esses apoios são suficientes, tanto os da Câmara como os das outras instituições?

Não. Essa é a grande luta, essa é a nossa grande luta. E o problema não é só nosso, é uma realidade das organizações de economia social deste país, que são ainda muito pouco valorizadas. Se formos comparar com esse tipo de organizações nos restantes países europeus, de facto, Portugal ainda está muito atrás na perceção da importância deste setor. E ainda há muito aquela ideia de que a economia social deve viver de voluntariado. São todos voluntários, porque acham que as estruturas não precisam de ter custos normais de funcionamento e que não precisam de ter trabalhadores para que a coisa funcione.

A verdade é que as organizações que desenvolvem um trabalho mais regular, diário, estão abertas, às vezes, 18 horas por dia e não podem viver de voluntariado.

Nós só não sentimos maior dificuldade a esse nível, porque a Câmara financia uma parte dos nossos projetos, mas não são financiados integralmente, temos de correr atrás de outras fontes de receita, seja própria, seja patrocínios, mas para poder fazer isso também é preciso muitas horas de trabalho.

Como é que a ideia da Mouradia, o vosso espaço, começa a tomar forma?

Nós tivemos duas fases. Na primeira fase éramos só voluntários e realizávamos atividades em espaços públicos ou em espaços de outras organizações. E depois há uma segunda fase em que conseguimos um espaço arrendado à Câmara e neste momento esse edifício é a nossa sede e onde desenvolvemos grande parte do nosso trabalho.

O espaço inicialmente estava em mau estado, nós reabilitámo-lo, fizemos obras e a renda é baixa porque faz parte de um projeto que a Câmara tem de protocolo com associações sem fins lucrativos, que faz contratos de rendas baixas. No entanto, temos dois espaços arrendados aqui ao lado a privados e por causa da especulação imobiliária aqui na zona estamos a ver que provavelmente não vamos ter o contrato renovado.

Notícias ao MinutoReabilitação da Mouradia© Renovar A Mouraria

Um dos vossos projetos, o ‘café suspenso’, ajudou muita gente e permitia a quem quisesse deixar comida paga para outros. Em que estado está esse projeto neste momento?

Nós vamos ter de restruturar algumas atividades. O projeto ‘café suspenso’ existe desde de 2013, coincidiu com a altura em que abrimos o nosso café, mas agora o nosso café vai passar a não estar sempre aberto, vai abrir apenas esporadicamente e por isso vamos ter de repensar o modelo do projeto porque depende desse espaço. O café vai encerrar porque neste momento não conseguimos gerir tantos projetos, não temos equipa que consiga dar vazão a tudo, temos mais de 20 projetos de apoio à comunidade em curso e não temos equipa para isso. Aquele espaço exige muita dedicação e tempo e não temos recursos para poder recrutar mais pessoas para trabalhar connosco. 

O ‘café suspenso’ surgiu na altura da crise e em que havia muita pobreza envergonhada e a ideia era que essas pessoas pudessem comer e beber sem terem de ter vergonha. Agora já há vários projetos desse género aqui na área a nível de disponibilização de alimentação, a Refood por exemplo, a junta também tem um projeto nesse âmbito.

Têm histórias de sucesso que possam partilhar?

Temos muitas. Quando alfabetizamos uma pessoa, que não sabe ler nem escrever, e ela nos chega aqui a chorar, a dizer que já conseguiu ler o placard do autocarro e que agora já sabe para onde vai; quando conseguimos regularizar um migrante e trazer a sua família para aqui. Estas coisas são especiais. Mas temos aqui um caso que para nós é mesmo marcante, de uma senhora que vinha de uma situação de grande vulnerabilidade social, que veio fazer um estágio de integração connosco, e que entretanto já está cá a trabalhar, que adquiriu muitas competências e que hoje em dia é uma cozinheira ao nível dos melhores restaurantes.

Há problemas que são estruturais e que não se resolvem em dez anos, nem em vinte nem em trinta. Trabalhar a sensibilização para a questão das migrações, de acolhimento, de perceber o outro e perceber a diferença O que falta fazer?

Muita coisa. Há problemas que são estruturais e que não se resolvem em dez anos, nem em vinte nem em trinta. Trabalhar a sensibilização para a questão das migrações, de acolhimento, de perceber o outro e perceber a diferença. Agora é importante também travar a questão da especulação imobiliária, da habitação, que começa a ser dramático, com muitas famílias a serem despejadas. E há muitos outros problemas, ainda há muitos sem-abrigo, há tráfico de droga e consumo, que são questões em que é muito difícil intervir em pouco tempo e se calhar em muito também. Não dependem de nós e estamos sempre a fazer pressão para que sejam resolvidas. Dependem dos grandes poderes, nós infelizmente não temos capacidade a não ser pressionar.

Acha que a Câmara tem dado uma boa resposta a esses problemas ao longo dos anos?

Em algumas situações sim, noutras podia ser melhor. A verdade é que há situações que já podiam ter sido resolvidas. Não só por parte da Câmara, mas por outros poderes, no caso do tráfico, por exemplo, que é uma questão que ultrapassa a autarquia, mas que é ainda um dos grandes problemas. Neste momento a Câmara está a fazer um esforço em termos da habitação, mas não é suficiente. Tem de se fazer mais pressão correndo o risco de daqui a uns anos a Mouraria não ter habitantes, ter só turistas.

O projeto ultrapassou-nos um bocado e andou sempre à nossa frente, foram mudanças muito bruscas, muito rápidasO vosso objetivo é “revitalizar o bairro histórico da Mouraria, em Lisboa, a nível social, cultural, económico e turístico”. Nestes anos, conseguiram fazer isso da forma como queriam?

O projeto ultrapassou-nos um bocado e andou sempre à nossa frente, foram mudanças muito bruscas, muito rápidas e é curioso que hoje em dia os fundadores da Associação, quando nos reunimos, comentamos que nunca pensámos que em dez anos isto estivesse assim, para o bem e para o mal. Muitas coisas estão muito melhores, é um bairro muito mais agradável, muito mais apetecível, as pessoas gostam de estar cá, que era uma coisa que não acontecia, as pessoas não queriam vir à Mouraria, algumas nem sabiam que existia, não vinham porque tinham medo.

Que outros projetos têm para o futuro?

Gostávamos muito, porque é uma necessidade que sentimos, de criar um projeto com o intuito de abordar a saúde mental, porque não temos respostas efetivas para este problema e sentimos falta disso. Ainda não sabemos bem como o vamos fazer e ainda temos muita coisa para orientar antes, mas era uma coisa que queríamos fazer para o futuro.

Notícias ao Minuto© Renovar A Mouraria

Para comemorar os dez anos segunda-feira há festa, com um conjunto de atividades a ter lugar na Mouradia, mas apenas para parceiros, beneficiários e sócios, de forma a conseguirem acomodar toda a gente. Para que ninguém deixe de festejar, no mesmo local, dia 24 de março, próximo sábado, a Associação convida a cidade de Lisboa para uma festa de entrada livre, onde vai haver comida, bebida e um concerto da cantora baiana Nega Jaci. As festividades começam a partir das 19h00. 

Veja na galeria acima alguns dos projetos e momentos que a Associação acolheu ao longo destes anos.

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