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"Funcionários do Estado fazem tortura de forma regular dentro de prisões"

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o sociólogo, professor e investigador António Dores garante que nas prisões portuguesas há tráfico de droga e que os reclusos são vítimas de tortura.

"Funcionários do Estado fazem tortura de forma regular dentro de prisões"
Notícias ao Minuto

08:00 - 27/02/18 por Filipa Matias Pereira

País António Dores

Ao longo das últimas semanas, o Notícias ao Minuto tem lançado algumas peças que retratam a perspetiva de diversos atores do sistema prisional português. Hoje, por sinal no dia em que é divulgado um relatório do Comité para a Prevenção da Tortura e dos Maus Tratos (CPT), damos voz a António Pedro Dores, professor auxiliar do Departamento de Sociologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa e investigador integrado do CIES-IUL - Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (ESPP). Nos últimos anos, António Dores tem-se dedicado particularmente a estudar o sistema prisional português e, em entrevista ao Notícias ao Minuto,  expressa a sua perspetiva relativamente à forma como o sistema prisional português está estruturado, garantindo que os reclusos são vítimas de tortura. 

Ao longo dos últimos 20 anos tem-se dedicado a estudar o sistema prisional. Como surgiu o interesse por esta matéria?

Foi em meados dos anos 90. Na altura fui vítima do sistema de justiça e de esquemas de corrupção. E cruzei-me com uma carta que li no Público de um recluso. Fiquei sensibilizado e acabei por lhe responder. Disse-lhe que, com as devidas adaptações, a guerra dele era igual à minha cá fora. Fiquei espantado ao perceber o que se passava no interior das prisões porque concluí que o Estado era algo diferente daquilo que eu pensava. A cumplicidade do Estado em relação aos crimes que se passam nas prisões portuguesas espantou-me. Resolvi, por isso, insistir no tema. Era a minha obrigação.

As pessoas não percebem que somos nós que criamos os criminosos e os castigos e que é daí advêm os problemasO Observatório Europeu das Prisões defende que a cadeia deve ser o último reduto. É partidário desta opinião?

O problema é que na atualidade não é possível dizer que o que é preciso é acabar com as prisões. Mas, no passado, achava-se que quando se chegasse ao ano 2000 as prisões desapareceriam. Aliás, há um decreto da cidade de Nova Iorque onde se referia que deixaria de haver investimento em prisões.

Porém, hoje em dia, ninguém consegue imaginar que as prisões deveriam ser abolidas. Foi feito um trabalho em que se pretendia perceber junto dos mais jovens o que seria uma sociedade sem prisões e as pessoas não tinham sequer essa capacidade. Embora estivessem de acordo que no interior dos estabelecimentos prisionais se passam coisas horríveis, questionavam onde se metiam os criminosos. Na verdade, hoje é impensável não haver castigo para os criminosos. As pessoas não percebem que somos nós que criamos os criminosos e os castigos e que é daí advêm os problemas.

Se fossem abolidas as prisões, quais seriam então as alternativas?

Não me faça essa pergunta porque é algo muito complicado. O problema é que no estado nacional e global as coisas não estão a correr bem. E estamos no centro dessa discussão. E estamos também no meio de outra discussão que se prende com a necessidade de perceber se o Ministério Público deve perseguir as pessoas para tentar resolver o problema da corrupção ou se, pelo contrário, se deve respeitar a liberdade delas, mesmo que isso resulte em corrupção. Esta é a discussão central. Por exemplo, em relação à droga, já toda a gente percebeu que a situação é um descalabro. A polícia está ocupada, em 70/80%, com problemas de droga, mas a situação persiste.

No fundo, cada um deve admitir que o que vai acontecendo na vida não tem de ter um culpado. O facto de acontecer alguma coisa de mal não quer dizer que eu me torne má pessoa. Se acontecer alguma coisa negativa não quer dizer que eu promova a negatividade. E esta capacidade de transformar as experiências de vida em coisas positivas é algo que está pouco divulgado.

Quando os profissionais dizem que estão em risco, isso é real. Como é possível centenas de pessoas viverem fechadas e nada acontecer? Portanto, não concorda com o sistema prisional português, tal qual está formulado? Podemos fazer essa leitura?

Daquilo que tenho lido não há ninguém a favor. Não tenho nenhum compromisso com o sistema prisional por isso posso expressar-me sem medo de poupar seja quem for. Há muita gente que não concorda com o sistema, mas não se pronuncia porque tem muitos compromissos. Houve uma altura em que achava que o problema era português. Depois tive oportunidade de tentar, através da Universidade, discutir a questão com outros colegas e percebi que se trata de um problema muito maior.

Quando estamos a debater a ascensão da extrema direita na política na Europa, em grande parte o que estamos a discutir é se vamos usar ou não os castigos em vez de resolvermos os problemas. E é preciso lembrar que as pessoas que estão isoladas já estão habituadas a isso. Raras são as pessoas que vão para a prisão e já não viviam isoladas anteriormente porque, de outra forma, era impossível.

Há, aliás, um estudo que relata uma experiência realizada nos anos 70, da autoria de um psicólogo americano. Essa experiência foi idealizada para que estudantes de psicologia voluntários passassem 15 dias na prisão, mas acabaram por sair ao fim de 10. Estes alunos puseram-se na situação de prisioneiros e de guardas e entraram num sistema de violência tal que a experiência não chegou ao fim. Isto dá-nos uma ideia do que é manter uma cadeia.

Quando os profissionais dizem que estão permanentemente em risco, isso é real. Como é que é possível centenas de pessoas viverem fechadas e nada acontecer? Tem de haver muito autocontrolo por parte de todos os elementos. É um esforço esgotante. Acredito que se não houvesse um treino, desde criança  para o isolamento (como por exemplo aquele a que estão sujeitas em instituições), as pessoas não aguentariam esse regime. E o próprio sistema tem noção disso. Por isso é que se diz que as prisões não foram desenhadas para a classe média. Para as pessoas deste nível social o sistema prisional já prevê regimes especiais.

No fundo, embora as prisões tenham uma função, que teoricamente é combater o crime, na prática fazem algo muito diferente; fazem a recolha de legitimação do poder que eles próprios exercem. O sistema jurídico criminal, de alguma maneira, foi aliciado e deixou-se aliciar por sistemas de justiça completamente fora da lei, como por exemplo o tráfico de droga em que o ónus da prova se inverte.

Há uma opacidade no sistema criminal e social. Mas ninguém quer discutir isto. Quando se vai discutir coisas que doem, ninguém está disponível. E isso foi uma coisa que aprendi com os presos, que sofrem coisas inimagináveisTemos assistido, nos últimos tempos, ao facto de o Ministério Público começar a investigar alguns casos de elites. Estamos no bom caminho?

Esses casos que têm vindo a público significam que já estamos a mexer. Mas este não é só um problema de justiça; estamos num período em que as coisas vão ter de mudar. Mas falta democracia, faltam possibilidades de discussão pública e séria dos assuntos que estão em causa e desse ponto de vista percebe-se claramente qual é o papel das prisões e do sistema criminal. Há uma opacidade no sistema criminal e social. Mas ninguém quer discutir isto. Quando se vai discutir coisas que doem ninguém está disponível. E isso foi uma coisa que aprendi com os presos, que sofrem coisas inimagináveis.

Tais como?

Estar doente, saber qual é a doença e o medicamento de que precisa e não ter acesso a ele.

Isso acontece nas prisões portuguesas?

Sim. Tenho conhecimento do caso de alguns reclusos em que a medicação só apareceu depois da queixa. Há um caso horroroso de um homem natural de Gibraltar e a irmã escreveu-me porque ele voltou à prisão da terra e morreu. Tratava-se de um jovem, saudável, que começou a ter um problema de saúde, mas administraram-lhe psicotrópicos para que se calasse. E quando se aperceberam que ele tinha ali um problema grave optaram então por devolvê-lo à procedência e ele acabou por contar como devia ter sido tratado e não foi. Este tipo de comportamentos é credível não só porque me dizem, mas também porque não há recursos financeiros nas prisões. 

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional assumiu que há guardas que têm medo de ir para as zonas de conflito e não se ‘metem’ para evitar o tráfico de droga. Esta é uma realidade preocupante?

O problema do proibicionismo da droga não é para resolver um problema, mas para criar. Quem colabora com o tráfico é desonesto, mas quem luta contra a corrupção não tem proteção. Aliás, se denunciar algum esquema de corrupção é expulso da corporação, arriscando-se e colocando também em perigo a família. Essas experiências terão sido feitas e essas pessoas acabaram por sofrer na própria pele. Não sei se estas histórias são verdade ou mentira, sei é que elas correm. Cheguei, inclusive, a receber queixas de famílias que diziam que pagavam cento e tal contos por mês para alimentar a droga dentro da cadeia. E quando o orçamento acabou eles foram ameaçados: “Mato o seu filho”.

Há polícias corruptos. A criminalidade acontece nas barbas da polícia e a ineficácia desta força de segurança a esse nível é evidenteHá dados que indicam que alguém que foi preso tem 60% de probabilidade de reincidir na criminalidade. Concorda?

O Estado português não produz estudos sobre isso. Inventam-se números. Mas não é preciso estudar o caso português em concreto para se perceber. O americanos investiram muito no tema, sobretudo nos anos 70, e os estudos dizem que um bom trabalho de ressocialização consegue recuperar 30% das pessoas. Por isso, em vez de 60% de reincidência esta passou a ser de 40%.

Mas, na prática, o sistema prisional o que produz é reincidência. A probabilidade de alguém que foi apanhado e preso voltar para a cadeia é muito maior do que alguém que nunca lá esteve. Há uma teoria que diz que o sistema produz criminosos e esta é uma vertente mais aguda, no sentido de que os contactos que se fazem no interior dos estabelecimentos prisionais deixam as pessoas enredadas numa comunidade que por si só se organiza à margem e que faz o que tem de fazer sob o controlo da polícia.

Por sua vez, a polícia tem a obrigação de cuidar e proteger a sociedade. E fá-lo de todas as maneiras que se podem imaginar e falo do ponto de vista da corrupção. Não estou a dizer que todos são corruptos, mas há polícias corruptos. A criminalidade acontece nas barbas da polícia e a ineficácia desta força de segurança a esse nível é evidente. Mas as pessoas acreditam na polícia e esta é a instituição mais prestigiada em Portugal. Isto porque há alguma coisa de muito íntimo nas pessoas: uma insegurança generalizada.

Os funcionários do Estado fazem tortura de uma forma regular dentro das prisões, de forma aceite pelo próprio sistemaJá chegou a defender que há tortura nas prisões. Mantém a mesma opinião?

Tortura, por definição, é aplicada por forças do Estado. E os funcionários do Estado fazem tortura de uma forma regular dentro das prisões, de forma aceite pelo próprio sistema. O diretor-geral [Celso Manata] nega isso porque o tribunal nunca fez nenhuma condenação por tortura. O interesse daquele senhor é dizer que não há tortura.

Em 2001, houve uma greve de fome no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) e eu tive contacto com um dos líderes da revolta. Uma das coisas que ele me disse é que havia situações que eram indispensáveis na atuação dos guardas, nomeadamente usar a agressão física para calar um recluso que estivesse aos gritos. Isto porque no EPL o eco é algo doentio. Portanto, quando alguém entra em histeria, se vier um grupo de guardas e lhe bater é um alívio. Por isso, não é dessa violência que se queixavam. Queixavam-se da agressão que era injusta; da justa não se queixavam. 

As prisões portuguesas continuam a viver sob a lei do silêncio, como já teve oportunidade de defender?

A lei do silêncio é a característica das próprias leis. Se for ao Parlamento mostrar o que se passa ficam todos muito admirados. Não estou a dizer que são pessoas mal intencionadas. Aliás, no Parlamento há pessoas muito bem intencionadas que tentam trabalhar para que as coisas funcionem. A última coisa que a ministra da Justiça quer é ouvir o que se passa nas prisões, tal como o diretor-geral e os diretores das cadeias. A lei do silêncio é isto, é a lei do Estado.

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