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Assédio sexual: É justo argumentar que os homens também sofrem?

O assédio sexual e as suas delimitações estão longe de ser um tema consensual, mas o seu impacto é mensurável, através de relatórios e estatísticas. Por que razão continua a ser tabu? Duas especialistas, da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta e da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ), falaram com o Notícias ao Minuto sobre o tema.

Assédio sexual: É justo argumentar que os homens também sofrem?
Notícias ao Minuto

08:30 - 18/02/18 por Anabela de Sousa Dantas

País Violência

"Porque é que não se fala da violência que é exercida sobre os homens?". Esta é uma questão ouvida repetidas vezes numa altura em que o assédio sexual voltou em força à agenda mediática. No esgrimir de reações, surgem frequentemente acusações de “caça às bruxas” e “ódio aos homens” perante a catadupa de casos de assédio sexual, assédio moral e até agressão sexual que foram sendo reveladas por vítimas, algumas anos após o incidente.

Lá fora, como cá dentro, são noticiados testemunhos de vítimas que são prontamente questionados, menorizados e até confrontados com a conduta social e moral da própria vítima.

O Notícias ao Minuto ouviu Ana Guerreiro, investigadora, criminóloga e membro da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, e Aurora Rodrigues, membro da direção da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ) e Procuradora da República em Évora, sobre alguns aspetos deste tema.

Um código penal em falta para com o assédio sexual

Em Portugal, em 2017, mais de duas mulheres por dia fizeram queixa por crime sexual. De acordo com dados fornecidos ao Notícias ao Minuto pelo Ministério Público, de que amanhã lhe daremos conta mais a fundo, em 2016 e 2017, após a alteração à lei em vigor sobre importunação sexual, foram instaurados 733 e 865 inquéritos, respetivamente.

No Código Penal português, o assédio sexual estaria, supostamente, enquadrado na epígrafe de importunação sexual (artigo 170.º), que foi alterada em 2015 para acrescentar as “propostas de teor sexual” aos já existentes “atos de caráter exibicionista” e “contacto de natureza sexual”. Porém, a linguagem ambígua deixa margem para liberdade nas interpretações. 

Aurora Rodrigues esclarece que o assédio sexual é muito mais abrangente do que uma “proposta”. “As expressões proferidas não cabiam [no quadro penal], agora cabem, mas fica a dúvida do que é que são propostas de natureza sexual”, sustenta.

O olhar, principalmente no local de trabalho (e não só), aquele olhar que faz com que mulheres se sintam despidas, não cabe aqui. E também algumas expressões, comentários grosseiros de rua: ‘fazia isto ou aquilo’, ‘dava-te qualquer coisa’. Isto é uma proposta? “No local de trabalho, esse tipo de olhares repetidos é humilhante, é confrangedor, porque cria todo aquele ambiente de que a Convenção de Istambul fala quando refere o assédio e que está também pormenorizado no artigo 29.º do Código de Trabalho. Isso pode ser feito através do olhar, pode ser feito através de atitudes, de posturas, que não são propriamente exibicionistas. Há aqui toda uma parte que fica de fora”, esclarece.

Ana Guerreiro sublinha, também, que assédio sexual “não tem de ser necessariamente uma proposta”. “O que o código penal nos dá a entender é que só as propostas de cariz sexual é que fazem parte daquilo que é importunação sexual. O assédio sexual vai mais além daquilo que são propostas de cariz sexual”, indica.

Já não se pode seduzir? O que é (mesmo) o assédio sexual

Ana Guerreiro explica que, além de ser tema “tabu”, há ainda “falta de reconhecimento do que é efetivamente o assédio sexual”.

Muita gente consegue ainda brincar com a situação e dizer que já não se pode seduzir… A sedução é muito diferente do assédio sexual. Aquilo que constitui assédio sexual é um problema grave, é um problema de violência de género, está incluído naquilo que nós chamamos de um ‘continuum’ de violência (…) com consequências gravíssimas para as vítimas

Aurora Rodrigues vai mais longe, apontando um problema estrutural da sociedade. “À volta do assédio faz-se muita graça, muita anedota, que não têm graça absolutamente nenhuma, mas é uma forma da sociedade assimilar isto, tolerar o assédio e não reagir. As vítimas ficam, no fundo, isoladas e também acabam por não reagir”, refere a magistrada.

O inquérito à violência contra as mulheres realizado pela Agência dos Direitos Fundamentais (FRA) da União Europeia, referente a 2012 e publicado em 2014, concluiu o seguinte: “Aquilo que constitui ‘assédio sexual’ varia consoante as pessoas. A variação do significado subjetivo atribuído a esse comportamento reflete igualmente os valores, normas e atitudes sociais e culturais dominantes sobre os papéis dos homens e das mulheres e interação apropriada entre os dois sexos”.

A Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE),  através do relatório ‘Assédio Sexual e Moral no Local de Trabalho em Portugal’, descreve o assédio sexual como “um conjunto de comportamentos indesejados, percecionados como abusivos de natureza física, verbal ou não verbal, podendo incluir tentativas de contacto físico perturbador, pedidos de favores sexuais com o objetivo ou efeito de obter vantagens, chantagem e mesmo uso de força ou estratégias de coação da vontade da outra pessoa”. Estes comportamentos são, regra geral, reiterados e têm um carácter ameaçador.

“Acho que a formação especializada das pessoas que contactam com esta realidade é importantíssima. E esta formação especializada requer obviamente o reconhecimento daquilo que constitui assédio sexual. Enquanto não soubermos o que está na base do assédio sexual não saberemos trabalhar nem reconhecer o assédio sexual. Estas duas questões são essenciais”, acrescenta a investigadora.

O Acórdão do Porto e os crimes onde a prova é o comportamento da vítima

A decisão de denunciar um crime de assédio sexual pode levar anos, como se tem comprovado pelos inúmeros casos que surgem agora, muito depois de terem tido lugar. “A questão do assédio tem muito que ver com os outros crimes sexuais. A vítima é que tem de fazer prova dos seus antecedentes impolutos e do seu comportamento impoluto, correspondendo a padrões que, no fundo, são estereótipos”, explica Aurora Rodrigues.

O polémico acórdão passado pelo Tribunal da Relação do Porto, onde o crime de agressão por parte de dois homens contra uma mulher foi menorizado face à conduta moral da mesma (adultério), é paradigmático de um problema estrutural, embora faça referência a um outro tipo de crime.

“Nem sequer é a conduta naquele momento [da agressão], é a conduta de uma forma geral, são os antecedentes, a forma de vestir, onde está, ruas que se atravessam. Há um juízo que é feito e que a Convenção de Istambul (ver abaixo) proíbe. A não ser que seja elemento constitutivo do crime, não têm de ser apreciadas as condutas das vítimas e isso acaba por ser feito”, explica a magistrada.

As vítimas assediadas é que acabam por ser responsabilizadas pelas situações de assédio e, para não se exporem e para não serem ainda mais humilhadas, não denunciamAna Guerreiro reforça a primordial importância da devida formação em determinadas áreas. “Repare, que se eu não acredito no sistema de justiça, se eu recorro à justiça e acho que aquilo vai ficar por ali, ou vão humilhar-me, vão desacreditar a minha palavra, obviamente que (…) vou ficar numa situação mais frágil e impedir-me de socorrer a estas instituições. A imagem que passa para fora daquilo que se passa na magistratura, por exemplo, como em qualquer outra instituição, tem um papel essencial naquilo que é a opinião pública. É essencial que pelo menos nestas áreas o conservadorismo seja dissipado para que situações como a do acórdão sejam evitadas”.

É justo comparar violência sexual entre mulheres e homens?

“’Violência contra as mulheres baseada no género’ designa toda a violência dirigida contra uma mulher por ela ser mulher ou que afete desproporcionalmente as mulheres”. É assim que escreve o artigo 3.º da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica – a Convenção de Istambul.

“Na questão da paridade do assédio sobre os homens e sobre as mulheres, se for assédio moral no local de trabalho poderá ser muito semelhante, mas o assédio sexual, a violência existente sobre as mulheres pela forma de assédio, é estrutural. Não se pode estabelecer uma paridade com a violência que é exercida sobre os homens”, sustenta Aurora Rodrigues.

A magistrada sublinha que se trata de uma violência que “existe desproporcionalmente nas mulheres” por ser de “uma natureza diferente”.

É a tal violência estrutural que tem aquela explicação história, civilizacional em que a mulher existe para ouvir, para receber e para aceitar as propostas, os contactos, os olhares dos homens. É essa a função dela e não se pode manifestar

“Não quer dizer que os homens também não sejam molestados, mas essa paridade não existe”, acrescenta.

O relatório da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), referente ao ano de 2015, sintetiza o assédio moral e sexual no local de trabalho da seguinte forma: “O assédio, moral e sexual, é mais frequentemente da autoria de homens, sobre mulheres e sobre outros homens e afeta mais frequentemente mulheres – tratando-se de uma manifestação de domínio masculino e tornando o local de trabalho um lugar de reprodução de crenças e de práticas de discriminação de género prevalentes na sociedade portuguesa. Evidenciam-se assim as claras desigualdades de género, de poder e perante a sexualidade de que as mulheres são as principais vítimas”.

Se o foco for apenas o assédio sexual, esta é a prevalência, de acordo com o mesmo relatório da CITE: 82,4% dos autores de atos de assédio sexual são homens e 17,6% são mulheres.

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