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'Viana do Castelo', o navio onde a vida não para

O navio da Marinha 'Viana do Castelo', em missão pela Frontex em Itália, em outubro, é uma espécie de aldeia flutuante, com 60 pessoas a bordo, uma central elétrica, um ginásio improvisado e onde a vida nunca para.

'Viana do Castelo', o navio onde a vida não para
Notícias ao Minuto

07:02 - 14/11/17 por Lusa

País Frontex

A alvorada é cedo, pelas 06:00, qualquer que seja o dia da semana. Pouco depois dessa hora, já o cozinheiro está a começar a preparar as refeições do dia. Durante a missão, foram servidas cerca de 12.700, entre pequenos-almoços, almoços, jantares e os chamados suplementos, para a noite.

Não é fácil agradar a todos, mas tenta-se, tendo também a preocupação de fazer refeições saudáveis -- um prato de peixe e outro de carne, alternados. Por dia, são servidas cerca de 260 refeições.

"O que é mais difícil? É conseguir agradar a todos. É a parte mais complicada. Não é só o trabalho em si, porque temos sempre que o ter, mas é mesmo conseguir agradar a todos. Porque a alimentação faz parte do bem-estar das pessoas", diz à Lusa o cozinheiro, Bruno Teixeira.

A comida tem a bandeira portuguesa. "É sempre a comida tradicional portuguesa. Temos sempre umas brincadeiras, umas pizzas, umas massas que agradam à guarnição, principalmente à malta mais nova que temos", descreve.

Como quem vai para o mar avia-se em terra, uma missão de um mês precisa de mantimentos e câmaras frigorificas. O responsável pelo aprovisionamento, o cabo Daniel Ribeiro, calcula que durante a missão tenham sido servidas cerca de 12.700 refeições, entre pequenos-almoços, almoços, jantares e os chamados suplementos, para a noite. A que se juntam as 500 refeições dadas aos migrantes.

"Somos uma equipa de cinco, temos a obrigação de planear, preparar, confecionar e distribuir as refeições a todas as pessoas e elaborar as ementas o mais saudáveis possível", tendo ainda de fazer o planeamento com "uma margem de erro maior", para conseguir que todos os migrantes, "quando entrem a bordo, consigam ter uma refeição até chegar a ponto seguro".

Os motores do navio nunca param, dia e noite. O "Viana do Castelo" tem sete anos e há muitos sistemas automatizados e computorizados.

Na casa das máquinas, o ruído é ensurdecedor, mas hoje, tudo é controlado através de consolas e os maquinistas já não fazem ali os seus turnos, dentro de uma campânula e com protetores nos ouvidos.

Há um eletricista a bordo, o cabo Marco Nogueira, que não tem horário, da chamada "bordada zero". "Não tenho horário. Levanto-me com as galinhas e deito-me com as galinhas. Levanto-me por volta das 7:30 e volto a deitar-me à meia-noite. Mesmo durante a noite, se precisam de alguma coisa, eles sabem onde eu moro", diz.

E quando toca o "alerta preto", de proximidade de barco de migrantes, é Marco Nogueira quem manobra o guincho para pôr a lancha semirrígida na água. Nesta missão, o que mais o impressionou foi mesmo a criança salva na operação de 27 de outubro, em que foram resgatadas 48 pessoas.

"Esta é uma missão que, pessoalmente, toca-me um bocadinho mais porque também avista crianças e mulheres. É fora do que estamos habituados. O navio faz várias missões de apoio na nossa costa, em que também temos de salvaguardar os nossos pescadores no mar. Normalmente, são dois, três homens já feitos. [Aqui] são várias pessoas que vêm em navios de pesca, em condições muito desumanas, maltratadas mesmo. E no meio vem quase sempre uma criança ou uma mulher, que nos toca sempre um bocadinho mais ao sentimento", afirma.

Dos dias no Mediterrâneo, o resgate do grupo de 48 pessoas e da criança foi o que mais marcou grande parte da guarnição, parte deles pais ou mães. O médico Bruno Canilho foi um deles. Mais do que os problemas médicos que possam ter, o que mais o impressionou foram as crianças.

"É óbvio que, apesar do perfil de migrantes que estamos agora a resgatar na área de operações -- são principalmente vindos da Tunísia, com perfil de migrante jovem adulto, entre os 20 e os 40 anos - é sempre mais complicado, não do ponto de vista médico, mas do ponto de vista humano, quando vemos as mulheres e as crianças nessas embarcações, com algumas deficiências de navegabilidade", diz.

Durante as horas que esteve a bordo, a menina, de cinco ou seis anos, brincou com a tripulação, que fez um boneco de meias e levou folhas para ela pintar. A cabo Sara Santos foi uma delas.

"Aconteceu porque gosto muito de crianças. Por mim, não é considerado trabalho dedicar-me a elas. Ou ajudá-las. Chegou a bordo muito assustada, achei que precisava de um carinho extra", disse. É algo que "vem de dentro", afirma Sara, explicando que "o carinho não se trabalha".

Entregues no porto de Pozzallo, a 90 quilómetros a sul de Catania, ilha da Sicília, Itália, o navio fez-se de novo ao mar. No domingo, 29 de outubro, a missão foi intercetar mais dois barcos, pequenos, com dez pessoas a bordo cada um. Desta vez, os 20 migrantes não foram para bordo, foram recolhidos por um navio patrulha da Guarda di Finanza italiana, equivalente à Polícia Marítima.

Mesmo sem migrantes para resgatar, não se pense que a vida a bordo é descansada. Apesar de, ao domingo, por exemplo, haver momentos de maior descontração, como apanhar sol, fazer ginástica ou ver golfinhos.

Se não há migrantes para resgatar, há exercícios para testar a tripulação, como o "homem ao mar", com um boneco de tamanho real, o "Óscar", ou até um marinheiro que se aventura em mar alto.

E este começa a ser um mundo de mulheres num universo tradicional masculino. As mulheres entraram há mais de 20 anos na Marinha e no "Viana do Castelo" são 11 numa guarnição de 43 pessoas. E dizem que não há discriminação. Nem no trato nem no trabalho.

"Integrámo-nos muito bem. As mentalidades também mudaram", diz à Lusa a aspirante Helena Bouças, que fez o juramento de bandeira a 29 de setembro e, no mesmo dia, embarcou para a missão em Itália. "Hoje em dia, o importante é desempenhar as nossas funções. De resto, o trabalho fala por si".

Mas tê-las na tripulação ajuda em situações como as de resgate de migrantes, com mulheres e crianças. "É muito mais fácil [às mulheres] estabelecer esse contacto. São pessoas que (...) vêm fragilizadas pela situação em que se encontram. Verem uma pessoa do sexo feminino facilita a comunicação. Especialmente com as crianças. Ficam um pouco mais confortáveis", reconhece.

Sara Santos pensa o mesmo, que a integração na Marinha está feita e que as mulheres talvez tenham um "afeto ou dedicação maior" quando toca a lidar com migrantes mulheres e crianças.

Depois da chegada a Portugal, na quarta-feira, 15 de novembro, a próxima missão do "Viana do Castelo" será de três meses, nas ilhas dos Açores, com partida de Lisboa a 26 de dezembro.

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