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Abortar antes e depois da lei. Duas faces da mesma (dolorosa) moeda

Duas mulheres, dois abortos, 13 anos de diferença. A história de duas portuguesas que abortaram em cenários sociais e legais completamente diferentes.

Abortar antes e depois da lei. Duas faces da mesma (dolorosa) moeda
Notícias ao Minuto

08:35 - 28/10/17 por Patrícia Martins Carvalho

País Reportagem

A despenalização da interrupção voluntária da gravidez chegou a Portugal há 10 anos, quando os portugueses chamados a votar em referendo disseram 'sim' ao fim da criminalização das mulheres que abortavam.

Desde então, o número de interrupções voluntárias da gravidez (IVG) tem vindo a descer, tal como dá conta o último relatório da Direção-Geral da Saúde com dados de 2015.

Estes números mostram que houve uma diminuição de 1,9% no número de IVG entre 2014 e 2015, tendo sido feitas 15.873 interrupções nesse ano.

Quando comparados estes dados com os de 2008 percebe-se que houve uma quebra na ordem dos 10%. 

Mas como era a realidade das mulheres que decidiam interromper a gravidez antes de o referendo ditar a despenalização do ato?

Estávamos em 1996, Maria tinha acabado de entrar para a faculdade quando uma difícil decisão lhe bateu à porta. Na época tinha um namorado e, como qualquer jovem da sua idade, mantinha relações sexuais, mas protegidas. Isso deixava-a descansada, pois jamais tinha feito sexo sem preservativo.

Porém, quando a menstruação falhou um mês, Maria assustou-se. Sabia que sempre havia usado preservativo, mas infortúnios acontecem. E aconteceram.

Maria foi a um laboratório de análises clínicas levando a sua urina e o resultado foi positivo. Mas mais do que o choque de saber que estava grávida, Maria teve o choque de saber que estava grávida há já quatro meses, pese embora a menstruação nunca tivesse falhado, à exceção do último mês. "Segundo disse o médico é raro isto acontecer, mas acontece. E aconteceu comigo", lamenta.

Naquela época, a interrupção voluntária da gravidez não era permitida em Portugal e Maria teve de o fazer pela via ilegal.

O namorado, conta ao Notícias ao Minuto, deixou o peso da responsabilidade nos seus ombros e Maria só pôde contar com o apoio e a ajuda da irmã.

“Foi uma decisão difícil, mas a verdade é que não estava preparada para ser mãe. Tinha apenas 20 anos”, relata.

Assim, Maria procurou uma parteira – uma mulher que fazia os partos das mulheres nas aldeias – e pediu-lhe ajuda. A única coisa que podia fazer era provocar o parto e assim foi. Rompida a placenta, Maria deslocou-se ao hospital, como se tivesse entrado em trabalho de parto naturalmente.

O bebé era demasiado prematuro, era certo que não sobreviveria ao parto. E não sobreviveu. Maria acabou por dar à luz sozinha, quando foi à casa de banho, e teve o feto nas mãos. Era uma menina. 

“É algo que nunca vou esquecer”, garante. 

Treze anos depois, foi a vez de Ana descobrir que estava grávida. Novamente, um acidente. A jovem, então com 24 anos, tomava a pílula, todos os dias à mesma hora. Mas uns medicamentos para a dor de dentes terão anulado o efeito do método contracetivo. “É a única explicação que encontro. Não falhei uma única pílula, não consumi bebidas alcoólicas… só pode ter sido isso”, refere ao Notícias ao Minuto.

Mas a descoberta não foi fácil e a confirmação só chegou às oito semanas de gravidez. Quando a menstruação falhou o primeiro mês, Ana, assustada, fez um teste de gravidez da farmácia. Deu negativo. Mas ainda assim, a jovem não respirou de alívio. Fez novo teste. Novo negativo. Mas Ana sabia que algo não estava bem, o seu peito estava diferente. Só ao terceiro teste é que o resultado foi positivo. “Estava sozinha em casa, sentada na minha cama, quando vi o resultado positivo”, recorda. Ana ligou ao namorado, mas deixou logo claro que iria ao centro de saúde para saber o que devia fazer para interromper a gravidez.

Assim fez. Foi ao centro de saúde de onde foi reencaminhada para o hospital. Lá fez uma consulta de Interrupção Voluntária da Gravidez e foi reencaminhada para uma clínica onde o processo se desenrolaria, não só o físico, como também o psicológico, uma vez que Ana teve de conversar com um psicólogo para que ambos tivessem a certeza de que o aborto era a decisão final. Ainda assim, só três dias depois é que o processo teve efetivamente início, pois é dado este tempo às mulheres para pensarem bem na decisão que estão a tomar.

Passou cerca de uma semana entre a consulta no centro de saúde e o dia decisivo. “No dia da intervenção fui sozinha. Quanto estava na sala de espera reparei que havia todo o tipo de mulheres, independentemente das classes sociais e das idades. E isto faz-nos sentir uma certa empatia por aquelas pessoas, mas acima de tudo por nós próprias, pois é normal julgarmo-nos por aquilo que estamos prestes a fazer”, afirma.

Quando chegou a sua vez, Ana confessa que ficou nervosa, mas a “surpreendente” boa-disposição do médico ajudou-a a libertar um pouco da tensão que a atormentava. O procedimento – método de aspiração – foi rápido e indolor, sendo que Ana escolheu anestesia geral pois “ia ser penoso estar acordada”. Quando acordou estava no recobro, numa sala com outras quatro mulheres. A enfermeira conduziu-a a outra sala onde bebeu um sumo e um bolo e onde permaneceu por cerca de 20 minutos. “Depois fui-me embora aliviada e fui trabalhar”, recorda. 

Em ambos os casos, o peso psicológico da decisão foi grande, mas olhando para trás, Maria e Ana são unânimes em dizer que não se arrependem.

“Apesar de querer muito ser mãe não me arrependo do que fiz, pois tenho a certeza de que foi a melhor escolha para mim e para a criança. Para mim porque assim tive a oportunidade de crescer, estudar e perceber aquilo que quero para os meus filhos (quando os vier a ter). Para a criança porque evitei que ela crescesse num seio familiar instável, com uma mãe frustrada e um pai ausente”, justifica.

Para Maria, as razões são as mesmas. Se tivesse tido a criança não teria tido a oportunidade de se licenciar e o desgosto seria enorme para os pais. Mas isso não alivia o sofrimento interior. “Lembro-me dela muitas vezes”, confessa.

Volvidos 21 e oito anos, no caso de Maria e de Ana, respetivamente, o trauma está ultrapassado. Embora não seja algo que gostem de lembrar, também não é algo que consigam esquecer. Se fosse hoje e se as circunstâncias se repetissem, nomeadamente a situação económica frágil e o seio familiar instável, as duas mulheres não têm dúvidas em afirmar que fariam tudo novamente.

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