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Humilhados no trabalho? O "assédio moral pode mesmo levar ao suicídio"

No Código do Trabalho, o legislador previu a promoção da igualdade e a não discriminação no trabalho. Porém, isto nem sempre acontece. Em vésperas da entrada em vigor da nova legislação que reforça o quadro legislativo para a prevenção da prática de assédio, o Notícias ao Minuto esteve à conversa com Rita Garcia Pereira, advogada, que salienta que o assédio moral, também conhecido como Mobbing, é um fenómeno com cada vez maior visibilidade.

Humilhados no trabalho? O "assédio moral pode mesmo levar ao suicídio"
Notícias ao Minuto

09:00 - 30/09/17 por Notícias Ao Minuto

País Mobbing

Humilhados, isolados no local de trabalho, despromovidos injustificadamente, o percurso profissional destas vítimas pauta-se por uma cor: negra. Falamos de uma realidade cada vez mais premente: o 'Mobbing', também designado por assédio moral no local de trabalho. Uma realidade que se traduz numa forma severa de stress psicológico, resultante de comunicações hostis, ou atos dirigidos de forma reiterada.

Maria, nome fictício, era chefe de vendas numa empresa na área farmacêutica. Ao longo do seu percurso profissional, sempre se dedicou para alcançar os objetivos que lhe eram propostos. E as suas competências e o seu desempenho permitiram-lhe evoluir na carreira. Mas um dia a vida pregou-lhe uma partida: o cancro bateu-lhe à porta.

Confrontada com a necessidade de realizar tratamentos específicos, comunicou à entidade patronal o seu problema de saúde. E aí começou a verdadeira reviravolta na sua vida profissional. “Provavelmente tinham receio que deixasse de ser uma mulher tão bonita devido aos tratamentos a que teria de se submeter”, acredita Rita Garcia Pereira, advogada e especialista em Direito do Trabalho.

A partir desse momento, Maria perdeu, aos olhos da entidade patronal, as competências profissionais que a fizeram alcançar o cargo de chefe de vendas. Foi-lhe proposto um acordo de rescisão do contrato de trabalho para que Maria saísse da empresa, “mas por um valor baixo que ela não poderia aceitar por ter a mãe e o filho a seu cargo”. E começou então a ‘perseguição’ para que Maria se despedisse.

Rita Garcia Pereira explica que começaram por colocá-la “numa sala, sozinha, e ordenaram-lhe que copiasse para uma resma de papel a listagem de todas as farmacêuticas que constavam nas listas telefónicas”. Depois, retiraram-lhe o cartão de combustível, o subsídio de isenção de horário de trabalho, as despesas de representação e a retribuição variável.

Quando acabou de transcrever a lista de farmacêuticas tiraram-lhe a mesa e, depois, a cadeira. Sentou-se no chão. Saliente-se que estava num gabinete envidraçado o que permita que todos os colegas assistissem ao que se passava. E chegou o momento em que até a porta foi tirada para que todos ouvissem as suas conversas. 

O diretor-geral “deu-se ao trabalho, inclusive, de comprar um carro igual ao que ela usava, mas mais velho 10 anos, sem ar condicionado e outras comodidades para substituir pelo que ela utilizava”. Mas Maria precisava daquele emprego para sustentar a família e, por isso, aguentou.

Maria acabaria por ser despedida, alegadamente por justa causa, e o caso seguiu para tribunal.

João, nome fictício, é o protagonista de outro dos casos que mais marcou o percurso profissional de Rita Garcia Pereira. “Estávamos em pleno julgamento quando ele recebe uma mensagem e começa a chorar. Inicialmente não percebi o motivo até porque o depoimento não era muito impressivo. Quando vi a mensagem percebi que a mulher dele não tinha aguentado e enforcou-se”, revela a advogada, visivelmente sensibilizada com a memória dessa audiência.

Mas Maria e João não são os únicos em Portugal. De acordo com o estudo desenvolvido pelo Centro Interdisciplinar de Estudos de Género do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em termos globais, 16,5% população ativa em Portugal já sofreu, pelo menos uma vez durante a sua vida profissional, de uma forma de assédio moral.

O Notícias ao Minuto esteve à conversa com Rita Garcia Pereira, uma advogada que se tem dedicado ao assédio moral. “Os casos de assédio moral não têm vindo a crescer. Na minha opinião ele sempre existiu. Mas, na atualidade, há maior sensibilidade dos trabalhadores para identificarem estes comportamentos ilícitos, o que explica a evolução dos números”, assegura a advogada.

Habitualmente, “vive-se numa lógica de que é preferível um mau emprego do que nenhum e as pessoas vão-se sujeitando. Por norma, é muito difícil que as vítimas se queixem na pendência de um contrato de trabalho. Só levantam a questão quando estão confrontadas com o despedimento”. Aliás, no início de 2003, “tive de explicar a uma trabalhadora que ela não era obrigada a ser alvo de assédio sexual”, revela a advogada.

Relativamente a esta matéria, há especialistas que defendem que as vítimas de assédio moral desenvolvem também a Síndrome de Estocolmo. Ou seja, no âmbito das relações de trabalho, os trabalhadores desenvolvem um transtorno psicológico, segundo o qual o empregado voluntariamente se mantém conectado ao trabalho, mesmo quando exercido num meio-ambiente hostil, e chega a acreditar que a culpa de tal tratamento é sua.

O que é, afinal, o Mobbing?

Podendo mascarar-se sob vários comportamentos ou ações, no local de trabalho, o assédio moral manifesta-se através de uma sequência de comportamentos ativos ou omissos encadeados, alguns dos quais, se isoladamente considerados, poderiam ser tidos como perfeitamente lícitos, legítimos e inofensivos. E foi justamente esta característica, “o facto de se mascarar sob as vestes de uma pretensa irrelevância ou de uma excessiva sensibilidade de quem o sofre”, que motivou Rita Garcia Pereira a debruçar-se sobre o estudo particular da temática – estudo este que culminou na edição de uma obra de relevo no ordenamento jurídico: Mobbing ou Assédio Moral no Trabalho – Contributo para a sua concetualização’.

Apesar de o nosso Código do Trabalho, interpretado à letra da lei, “não mencionar que o assédio moral exija especificamente atos reiterados, na verdade os tribunais exigem-no. Não quero com isto dizer que um único comportamento não seja passível de gerar danos. Mas não é considerado assédio moral. É frequente fazer-se a distinção entre assédio moral propriamente dito e atos assediantes que sejam pontuais”, explica a especialista em Direito do Trabalho.

Embora a legislação não faça referência às diferentes classificações de assédio moral, este pode ser dividido em função da posição hierárquica da pessoa. Neste cenário, “poderemos ter o Mobbing vertical que pode ser descendente – do superior hierárquico para os trabalhadores – e ascendente: dos inferiores hierárquicos para o superior”. Este último caso verifica-se, por exemplo, quando uma nova chefia chega ao cargo e não é bem recebida.

Por assédio moral horizontal pode ser entendido aquele que ocorre entre elementos da mesma posição hierárquica. Já o misto, “é considerado quando os colegas de trabalho, por cumplicidade ou medo, acabam por ser coautores da ação praticada por um superior”.

Em relação às motivações, Rita Garcia Pereira explica que o assédio moral pode ser emocional “quando não há nenhuma causa objetiva, mas sim um problema de personalidade do agressor”. Já quando o objetivo “é colocar a pessoa fora da organização, as ações podem revestir um caráter estratégico”.

Os que ocorreram "nos casos da PT e da Telecom são cenários de assédio moral institucional porque se trata de uma política de recursos humanos”. Nestes casos, “os trabalhadores foram colocados num piso vazio, sem nada para fazer e em condições degradantes. São casos típicos, não virgens, de tentativa de se fazer com que as pessoas deixem a organização”.

Descoberto por psiquiatras, o assédio moral tem consequências para a vítima, já que contribui para a degradação da saúde física, psicológica e social e "pode mesmo levar ao suicídio".

E, na opinião de Rita Garcia Pereira, o caso da France Télécom, onde 60 empregados se mataram entre 2006 e 2009, é um exemplo por excelência dessa realidade. “Nessa situação, a motivação não era que as pessoas saíssem da organização, mas que produzissem mais. E o nível de pressão foi de tal ordem que muitos trabalhadores se suicidaram, alguns deles atirando-se pela janela do seu próprio local de trabalho”. 

Se este caso tivesse acontecido em Portugal, e porque a nova lei ainda não entrou em vigor, “os familiares das vítimas não seriam ressarcidos porque um suicídio causado por atos de assédio não é considerado acidente de trabalho”.

Tal como está configurado atualmente na legislação, o assédio “representa uma contraordenação muito grave e dá acesso a que as vítimas possam pedir uma indemnização por danos morais”. Com a entrada da nova lei, “as eventuais sequelas podem ter a sua ressarcibilidade económica através do Instituto dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais. A Segurança Social fica com direito de regresso das quantias pagas por parte da entidade empregadora. Ou seja, em segunda linha, são as entidades patronais que irão suportar os danos. Esta é uma das grandes novidades”, explica.

Esta nova legislação resultou de um esforço para "inverter o ónus da prova”. Recorde-se que o ónus da prova é a obrigação de um indivíduo de fornecer garantias suficientes para sustentar a sua posição em relação a uma acusação. Ou seja, pretendia-se que fosse a entidade patronal a apresentar provas de que a sua ação não configurava assédio moral, em vez de ser a vítima a provar o ato ilícito.

De acordo com Rita Garcia Pereira, nos casos de assédio discriminatório já “há uma repartição do ónus da prova. Ou seja, se eu estiver na mesma posição hierárquica que B e for discriminada, só tenho de provar essas situações e que B existe”. Depois, por via do artigo 25º,5 do Código do Trabalho, “compete à empresa provar que aquilo não é discriminação e que há alguma causa objetiva para tal”.

Outra das alterações que a nova legislação irá introduzir diz respeito ao despedimento da vítima ou das testemunhas no prazo de um ano após ser formalizada a queixa. Rita Garcia Pereira explica que, em tais circunstâncias, “presume-se que o despedimento é abusivo, embora se permita à entidade patronal justificar o despedimento”.

O diploma que reforça o quadro legislativo para a prevenção da prática de assédio (Lei n.º 73/2017, de 16 de agosto de 2017) foi aprovado no Parlamento no dia 19 de julho e irá introduzir alterações ao Código do Trabalho, à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e ao Código de Processo do Trabalho entrando em vigor amanhã, dia 1 de outubro de 2017.

Rita Garcia Pereira considera que, “ainda que insuficiente”, este diploma “representa um enorme avanço. Tardio? Talvez. Mas mais vale tarde do que nunca”, conclui.

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