A prisão que virou museu: Uma "herança incómoda" para dizer o indizível

Entre 1928 e 1965 passaram pelo Aljube milhares de prisioneiros políticos. Hoje, passam por lá milhares de visitantes, de todas as idades, que procuram saber mais sobre este período repressivo da ditadura salazarista. Inaugurado em 2015, o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade é “dedicado à memória do combate à ditadura e da resistência em prol da liberdade e da democracia”.

Museu do Aljube: a "herança incómoda de histórias e ideias controversas"

© Jorge Amaral/Global Imagens

Notícias ao Minuto
18/05/2017 08:00 ‧ 18/05/2017 por Notícias ao Minuto

País

Alljube

Esta quinta-feira, 18 de maio, assinala-se o Dia Internacional dos Museus, e o tema escolhido pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM) é ‘Museus e histórias controversas: dizer o indizível em museus’, uma temática que “convida a uma reflexão além do discurso museológico”, explicou fonte da Direção Geral do Património Cultural (DGPC) ao Notícias ao Minuto.

Neste sentido, a ideia do ICOM, reiterada pela DGPC, é chamar a atenção para o papel dos museus “enquanto espaços de memória com um papel fundamental e inigualável na preservação e valorização do património cultural”.

Para Luís Farinha, diretor do Museu do Aljube, o tema escolhido pelo ICOM e a reflexão proposta enquadram-se na mensagem que o museu pretende transmitir – uma urgência de olhar para o passado, para as “histórias controversas e difíceis de contar”, e pensar o futuro. “Não estou, obviamente, dentro da linha política em relação às intenções do ICOM, mas percebo-as, pressinto-as, e principalmente vivo-as aqui no Museu do Aljube, um sítio que acomoda uma herança incómoda de histórias e ideias controversas, traumáticas em alguns aspetos”, afirmou Luís Farinha em entrevista ao Notícias ao Minuto.

A missão deste museu, situado nas instalações de uma antiga prisão política, é, nas palavras do seu diretor, precisamente partir dessas histórias e “evocar, valorizar e dar importância à memória dos combatentes pela liberdade”, sejam estes oriundos de famílias políticas mais revolucionárias ou de grupos mais moderados e progressistas, uma vez que o período da resistência foi duro dentro da sociedade portuguesa, “com tensões e controvérsias fortes entre os vários setores, grupos políticos e a população silenciosa, que encarava os oposicionistas, muitas vezes, como perigosos bandidos”.

Mas, para fazer esse exercício de memória, fundamental para compreender o passado e ajudar-nos a perceber e a atuar no presente, é importante contextualizar e traçar um pouco da história do Aljube, um edifício que data do século XVIII, que foi utilizado, primeiro, como prisão eclesiástica, depois destinado a delitos comuns e mais tarde a prisão de mulheres. É com a implantação da ditadura militar, em 1926, e com “fascização” do regime de Salazar que o edifício começa a ser transformado numa prisão política, funcionando como tal durante quase 40 anos, entre 1928 e 1965.

Desse período, a memória é de um local com “muito más condições de habitabilidade, de alimentação e de vivência”, uma “plataforma entre tribunais, interrogatório e deportação”, por onde passaram “praticamente todos os presos sociais e políticos” desta época. “Era quase impossível não passar por cá pelo menos uma vez”, conta Luís Farinha.

Exposições que pretendem "dar a conhecer a história, a luta e a resistência"

A transformação de uma antiga prisão num espaço musealizado tem uma carga simbólica. Quando percorremos os corredores das exposições do museu, em particular as representações dos ‘curros’, celas minúsculas onde os presos ficavam isolados e mal tinham espaço para se mexerem, é inevitável imaginarmos as condições degradantes da prisão, por onde passaram uma série de personalidades, da política às artes, desde Mário Soares a Miguel Torga, de Álvaro Cunhal a Agostinho da Silva.

Mas, não é só a memória dos prisioneiros políticos que se evoca no Museu do Aljube. Nas três exposições permanentes, que pretendem “dar a conhecer a história, a luta e a resistência”, atravessamos diversos momentos-chave do combate à ditadura e somos confrontados com a dimensão da repressão do regime.

O primeiro piso “conta a história do regime numa primeira fase, a forma como as oposições se opuseram à ideia única do regime e a forma como as polícias as combateram com os instrumentos que tinham”. São abordadas as temáticas da ascensão e queda dos fascismos, a história de Portugal entre 1890 e 1976, bem como a censura existente nos meios de comunicação social, que se contrapõe à importância da imprensa clandestina, enquanto forma de resistência, no combate à ditadura.

Subimos as escadas, entre citações de autores e autoras portugueses estampadas na parede, e entramos no segundo piso, visitando o circuito prisional e uma representação dos ‘curros’, celas onde os presos “estavam isolados à espera de serem chamados para o interrogatório” na sede da PIDE/DGS, na famosa Rua António Maria Cardoso, cuja história e simbolismo se confundem com a opressão salazarista.

Por fim, depois de subirmos mais escadas onde se leem nas paredes versos de Jorge de Sena ou de Sophia de Mello Breyner, chegamos ao terceiro piso, tributo à luta anti-colonial, “um fator extremamente importante mas esquecido no desencadear da revolução”, considera Luís Farinha.

Importa ainda não esquecer o piso 0, antigo parlatório da prisão e hoje espaço dedicado a exposições temporárias. Atualmente, encontramos neste piso a exposição ‘Meus caros amigos – Augusto Boal – Cartas do exílio’, sobre o dramaturgo que passou por Portugal entre 1976 e 1978 e que dirigiu o grupo de teatro A Barraca.

Museus: "Guardiões do testemunho dos tempos, que fazem a ponte entre o passado e o futuro"

Depois de visitar estas exposições, onde se homenageia a resistência à ditadura, pontos de partida para evocar a memória histórica, impõe-se uma necessidade: refletir sobre estas histórias controversas e dizer o indizível, o mote lançado pelo ICOM para assinalar o Dia Internacional dos Museus.

Para o diretor do Museu do Aljube, o museu tem uma missão pedagógica, “servir de escola de cidadania e refletir sobre a importância da defesa das liberdades individuais e coletivas como um património indispensável para o bem-estar social, político e cultural”, que vai além da história de Portugal no século XX.

“O museu [do Aljube] é um espaço aberto às problemáticas do mundo, dos direitos das populações, dos direitos humanos, sociais, culturais e políticos. Não é apenas um olhar sobre um passado e um contar da história. É uma reflexão de como é que essa história nos pode ajudar a perceber e a atuar no presente”, afirma Luís Farinha.

Essa ideia de museu enquanto local pedagógico parece ser partilhada pela DGPC, que caracteriza os museus como “instituições guardiãs do testemunho dos tempos, que fazem a ponte entre o passado e o futuro, através da transmissão de conhecimento”. Nesse sentido, são também “espaços de aprendizagem, de fruição e de desenvolvimento, [que] contribuem para uma cultura de paz e tolerância, tão importantes nos dias de hoje”, reitera a DGPC.

Para Luís Farinha, esta reflexão deve ser feita a uma escala mundial, porque “tudo nos diz respeito”, seja na Hungria, na Polónia ou na Síria. “A reflexão é sobre o mundo que temos, sobre o Portugal que somos”, reitera o diretor do museu, que deixa uma questão no ar: “estamos dispostos a defender a herança da igualdade e da liberdade ou não?”

Quando se assinala o Dia Internacional dos Museus, espaços fundamentais para a reflexão e para a construção de uma melhor sociedade, tentar encontrar uma resposta a esta questão pode ser um bom ponto de partida, conscientes de que não existem respostas dadas como adquiridas. Porque dizer o indizível pode ser isso mesmo, perceber que o mundo em que vivemos é extremamente complexo e que os direitos que damos por adquiridos podem estar em causa nas mais diversas situações. Como alerta Luís Farinha, “basta olhar para o mundo que conhecemos para perceber que temos muito para fazer, para pensar e agir”.

 

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