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"Este Governo sofre verdadeiramente de um problema de esquizofrenia"

Francisco Ferreira é o fundador e presidente da ZERO e falou ao Notícias ao Minuto sobre o objetivo da associação e o que falta fazer em Portugal para um futuro mais ‘verde’ e sustentável.

"Este Governo sofre verdadeiramente de um problema de esquizofrenia"

Embora não raras vezes à margem dos temas que normalmente ocupam o começo dos telejornais e as manchetes da imprensa, o ambiente é uma preocupação que atravessa gerações, quadrantes políticos e estratos sociais.

Este é um tema que, de acordo com o fundador e presidente da ZERO, Francisco Ferreira, deveria ocupar um lugar mais destacado nas prioridades dentro da sociedade portuguesa.

O que o Governo e o que todos nós podemos fazer para melhorar a qualidade do ambiente foi apenas um dos temas da conversa que o Vozes ao Minuto teve com Francisco Ferreira, tendo ainda havido espaço para falar sobre a expansão dos carros elétricos e a polémica em torno das explorações petrolíferas ao largo da costa portuguesa. Almaraz, claro, também não ficou de fora.

O Francisco é conhecido sobretudo pela Quercus como apresentador do Minuto Verde, antes de fundar a ZERO. Em que medida é que as duas organizações diferem? Porquê a mudança?

A ZERO foi fundada em dezembro de 2015 e há diferenças substanciais em relação à Quercus. Por exemplo, a Quercus é uma organização que tem alguns núcleos onde se realizam atividades de âmbito regional, coisa que a ZERO não faz. Somos claramente uma organização de âmbito nacional.

Depois, um dos objetivos da ZERO é olhar para as questões do ambiente muito interligadas com as componentes económicas, sociais e de governação. Isto porque houve aqui uma inspiração da própria ZERO nos objetivos de crescimento sustentável na agenda para 2030 que foi aprovada nas Nações Unidas em setembro de 2015.

Temos oito objetivos do milénio entre 2000 e 2015 muito focados nos países em desenvolvimento. Fome, pobreza, educação, em que o ambiente não era propriamente uma das grandes prioridades. Agora, as Nações Unidas aprovaram os objetivos para o crescimento sustentável cuja lógica é muito mais abrangente e em que o fulcro não só nos países em desenvolvimento mas também nos países desenvolvidos.

Ou seja, questões como o consumo sustentável, os ecossistemas terrestres e marinhos, a ação climática, as energias renováveis, a par de objetivos que não conseguiram ser cumpridos como a erradicação da pobreza, a fome, a desigualdade de género.

Um dos pontos de atuação é a reciclagem. Qual é a verdadeira apreciação que faz da reciclagem em Portugal? Já teve dias melhores? As pessoas estão menos ou mais conscientes para esta necessidade?

Temos tido muito contacto com a questão da reciclagem – não apenas das embalagens mas de outros materiais –  via campanhas e obrigações/metas que são fixadas material a material para a embalagem. A questão é muito mais complexa porque temos reciclagem de outros materiais que não embalagens, nomeadamente o papel.

Temos a reciclagem dos materiais fermentáveis, portanto tudo o que são componentes orgânicos dos resíduos, a sua transformação em composto para ser utilizado nos solos e aí temos cerca de 41% dos nossos resíduos urbanos são chamados resíduos orgânicos, que devem ter esse destino.

Infelizmente não enquadramos devidamente as prioridades e a reciclagem é o terceiro ‘R’. Precisamos de uma política que invista fortemente na redução e na reutilização e aí então é ainda mais dramático porque o país perdeu o hábito de usar embalagens reutilizáveis e agora na redução é que se começa a retomar essa prioridade porque a União Europeia e também o país estão a dar prioridade à chamada Economia Circular.

Eu vivo num mundo de usar e deitar foraNesta economia mais uma vez nós queremos que estas prioridades sejam as mais importantes. Como o próprio nome diz, a Economia Circular é uma economia onde eu vou buscar matérias-primas e chego ao fim com o menor desperdício possível, mantendo os materiais num ciclo.

Não podemos estar na lógica de substituir um telemóvel de três em três meses ou de ano a ano o computador portátil, porque isso obriga a um consumo de energia e de materiais absolutamente brutais. Tenho é de apostar no aumento do período de vida dos produtos e na capacidade deles serem reparados e na facilidade com que isso consegue ser feito. Portanto, há aqui uma mudança de paradigma brutal.

Os objetivos da ZERO parecem estar muito bem traçados mas, concretamente, o que é que a ZERO está fazer a nível de iniciativas para consciencializar as pessoas para a necessidade de reciclar? Vivemos numa sociedade de consumo de ter tudo o que é o mais recente. O que é a ZERO está a fazer para combater isso?

A ZERO está a trabalhar em várias frentes. Para já, ainda somos uma organização recente, com um ano e poucos meses de vida e com 900 e poucos associados. Ainda é uma representatividade baixa mas temos estado a trabalhar em várias frentes.

Estamos a começar a trabalhar com várias autarquias num projeto chamado EcoComunidades, onde queremos precisamente à escala local trabalhar com as famílias no sentido de perceber quais os principais obstáculos à diminuição da pegada ecológica dessas famílias no uso da água, da energia, na mobilidade, nas escolhas mais ou menos acertadas que fazem na ida ao supermercado na compra de produtos.

As pessoas não pagam o lixo em função do que produzem. As pessoas pagam o lixo em função da água que consomemNa própria oferta que eu tenho no município para esses diferentes produtos, ou seja, eu neste momento vou comprar laranjas e faz todo o sentido que compre laranjas portuguesas, de produção local. Se eu tiver laranjas de Portugal, de Espanha ou de sítios mais longínquos, as pessoas deverão escolher aquelas que estão mais próximas e quem fala das laranjas fala de produtos sazonais. Há aqui toda uma literacia ambiental que queremos incutir a estas famílias e temos vindo a falar com várias autarquias no sentido de iniciar este projeto e será para breve o começo do trabalho com algumas.

As pessoas não pagam o lixo em função do que produzem. As pessoas pagam o lixo em função da água que consomem. Se eu e o meu vizinho gastarmos a mesma quantidade de água mas eu depositar tudo no ecoponto, eu tenho um esforço de não produzir resíduos mas ele não faz esforço nenhum, logo eu deveria ver isso refletido na minha tarifa, naquilo que eu pago relativamente aos resíduos.

Há alguma sugestão de como deveria ser feito?

Lisboa está envolvida num projeto relativamente a esta questão, que em inglês é chamado de ‘Pay As You Throw’, paga de acordo com o que produzes para tratamento. Essa também é uma outra área em que estamos envolvidos em federações europeias. Uma delas é a ‘Zero Waste Europe’, inspirada também pelo nome da ZERO – zero emissões, zero resíduos, etc – há uma associação, Zero Resíduos Europa, com quem temos vindo a trabalhar no sentido de passar também esta mensagem.

Por último, temos participado em inúmeras conferências onde temos feito valer as nossas posições e junto do Ministério do Ambiente e da Economia. Há aqui todo um trabalho de pressão, de consciencialização, quer diretamente junto da população, quer dos atores-chave que atuam nestas diferentes áreas do ambiente. 

Não tenhamos dúvidas de que o futuro é elétrico

Mencionou soluções de mobilidade, essa é uma questão que muitos podem ver como complicada por causa das emissões. No entanto, os carros híbridos e elétricos estão a ser cada vez mais notados no mercado. Em Portugal já há uma mentalidade positiva dos consumidores relativamente a estes veículos?

Não tenhamos dúvidas de que o futuro é elétrico. Desejavelmente, o futuro é elétrico e renovável. Portugal pode e deve fazer mais pela implementação de energias renováveis e não apenas na eletricidade. A água quente solar, por exemplo, é algo que deveria estar em todas as casas e não está, sendo que somos o país que tem maior número de horas de sol da Europa. O fotovoltaico representa menos de 2% do total de produção em Portugal.

No que diz respeito à mobilidade, o problema aqui… é inevitável, vamos ter de fazer uma aposta maior nos veículos elétricos. O problema é o custo, que de momento ainda é muito elevado para o consumidor particular. Para a empresa, se eu considerar que consigo descontar em IRC, consigo reaver o IVA, consigo ter um apoio na compra, tenho insenção do ISV, do IUC, tudo isso leva a que nós consigamos realmente ter condições mais favoráveis às empresas.

O número de vendas de veículos elétricos está aumentar. Ainda é uma fração mínima do mercado... 

Da mesma forma que o Governo oferece benefícios às empresas não o poderia fazer também a particulares? Que tipo de incentivos é que poderiam ser oferecidos?

Deveria fazer mais aos particulares. Há um maior estímulo para o uso de empresas (que tem vindo sem dúvida a aumentar bastante) e não tanto para os particulares. Para estes, diria que é quase altruísta escolher um veículo elétrico mas tem de haver aqui um racional económico.

Quando agora as pessoas levam sacos às compras é porque o saco passou a custar dez cêntimos, pelo menos. Com os veículos elétricos é a mesma coisa. Os painéis fotovoltaicos, por exemplo, reduziram várias vezes o seu valor nos últimos anos e estão muitíssimo mais acessíveis.

Os incentivos aos veículos elétricos não podem passar só pelas empresas mas também pelos particulares para que comecemos a ter economias de escala e para que o preço comece a descer.

É isso que as grandes marcas estão a fazer à escala mundial e a nossa expectativa é de que em 2030, com a posição de alguns governos – como é o caso da Holanda para 2025 e da Alemanha para 2030 – os carros vendidos nestes dois países, nestas alturas, venham a ser exclusivamente elétricos. A nossa ideia é que com estes sinais a indústria comece efetivamente a dar uma resposta em linha e que Portugal comece também a fazer essa tradição, mais rapidamente.

Eu tenho de preparar o país para poder dar uma resposta em relação à utilização do veículo elétrico. Há aqui um trabalho longuíssimo por fazerHá muitos que acreditam que Portugal tenha um problema de infra-estruturas, seja em postos de carregamento suficientes seja número de locais para deixar os carros a carregar. Como é que contraria isto? Há algo a fazer por parte do Governo ou é uma questão a longo prazo?

Acho que houve um erro, que está agora a ser corrigido e saiu caro. Devíamos ter acompanhado a disponibilização de postos de acordo com o aumento da frota. [No governo PS anterior ao PSD-CDS, em 2008,] foi dada uma enorme prioridade aos veículos elétricos. Houve a ideia de criar a infra-estrutura e criaram-se inúmeros postos que depois não tiveram manutenção, utilização, acompanhamento. Agora já começo a não ter postos. Mesmo não tendo muitos veículos elétricos, começo a não ter postos onde os carregar.

Os outros postos… Em muitos casos foi dinheiro que não foi rentabilizado, foram infra-estruturas que não foram utilizadas. O que se espera no futuro é uma coordenação entre maior oferta de postos de carregamento com uma maior expansão da frota e que acompanhe as duas coisas.

Em muitos casos as empresas carregam os seus automóveis elétricos no próprio local da empresa, por isso também são mais favorecidas em relação a este tipo de veículo, porque têm essa maior capacidade de trabalhar com ele enquanto as pessoas estão muito condicionadas, sobretudo as que não têm garagem. Se a pessoa mora num apartamento no quinto andar, quer dizer, como é que carrega o carro?

Eu tenho de preparar o país para poder dar uma resposta em relação à utilização do veículo elétrico. Há aqui um trabalho longuíssimo por fazer mas que também não pode ser feito de um momento para o outro porque me arrisco a voltar a estar com infra-estruturas que depois não são utilizadas.

Há o mito de que o carro elétrico também representa um problema para o ambiente. Se as baterias são reaproveitadas, se são substituídas ou destruídas…

Mas isso é efetivamente um mito. Todo o material das baterias é completamente reciclado. Agora, há efetivamente preocupações, nomeadamente sobre os materiais que são utilizados para as baterias e a energia necessária para eu obter esses materiais, o lítio em particular. Os estudos de ciclo de vida que são feitos mostram mesmo assim que essa maior pegada energética e ecológica dos veículos é fortemente compensada pelas emissões evitadas na utilização do veículo.

Há várias fabricantes automóveis que têm investido fortemente no mercado dos veículos elétricos mas, falando de políticas sustentáveis e de automóveis elétricos é impossível não falar da Tesla. É uma marca altamente conotada com este mercado e já anunciou que a partir do segundo semestre estará presente em Portugal. A entrada da Tesla no nosso país pode ter efeito positivo?

Claro que sim. Não se sabe bem como é que a Tesla vai ou não entrar em Portugal, se vai ter um papel mais ativo ou passivo na economia dos veículos elétricos. Desde as reservas de lítio, por exemplo, que em Portugal são extremamente importantes, até à ideia do apoio e desenvolvimento de projetos relacionados com as baterias e com os veículos, etc.

É claro que a Tesla é um grande fator de inovação e que aliás tem obrigado o mercado a evoluir no sentido de gerar veículos com maiores autonomias e com melhor resposta. Estou convencido de que esta é uma questão completamente transversal a todas as marcas automóveis, sendo que a postura da Tesla faz diferença porque a sua aposta e visibilidade que dá ao veículo elétrico e à produção de energias renováveis e gestão da energia tem tido um impacto muito relevante à escala mundial.

Como é que a ZERO vê a possível construção da Gigafactory para Portugal? As últimas informações indicavam que a Tesla estava em negociações com o Governo português para que o projeto se concretizasse. A ZERO esteve envolvida nas negociações ou tem conhecimento sobre o assunto?

Não. Tivemos contactos com a sociedade que se organizou para apelar a essa vinda da Tesla mas não sabemos que resposta é que vamos ter.

Mas o Governo devia criar incentivos para o tornar possível?

Em muitas destas indústrias o Governo acaba sempre por conseguir incentivos. Claro que uma solução dessas seria bem-vinda para Portugal por uma razão simples. Como digo, Portugal é um país que, à escala mundial, afirma-se como estando a fazer investimentos em energias renováveis, como estando a trabalhar na eficiência energética, etc, etc. O facto – que aliás foi a ZERO que investigou e que divulgou – de termos tido quatro dias e meio de eletricidade continuamente renovável em maio do ano passado, é um facto que percorreu o mundo.

Estive há uma semana e meia com o anterior vice-presidente dos EUA, o Al Gore - estive através da ZERO num conjunto de sessões durante três dias - e fiquei muito satisfeito por ver que, quando ele fala das soluções, um dos slides que aparece é de Portugal. A CNN fez reportagens sobre Portugal e, como digo, foi algo que pôs realmente Portugal num mapa dos investimentos numa área do futuro do quadro do Acordo de Paris e das alterações climáticas. Isto para um país que não tem outras fontes energéticas que não as renováveis. Oxalá não se descubra petróleo, porque isso faz parte da economia do passado e queremos investir na economia do futuro, que são as renováveis e a eficiência energética.

Este Governo quer sempre satisfazer gregos e troianos

Referiu agora petróleo e é impossível passar à margem das polémicas de Tavira e Alzejur. O que se passou afinal?

A nossa principal preocupação é em relação ao Algarve, à exploração em terra, a questão está ultrapassada. A Portfuel do Sousa Cintra é uma concessão que não vai efetivamente avançar. Mas a da Repsol/Partex frente a Tavira preocupa-nos porque pensávamos também que havia argumentos suficientes para cancelar mas a possibilidade de se avançar continua a existir. A principal preocupação é com o furo em ‘deep offshore’ da Eni/Galp, que é frente a Aljezur a uns 40 quilómetros da costa Vicentina.

E preocupa-nos por uma razão simples. Houve uma consulta pública. Houve mais de 42 mil participações de uma consulta pública. Mais do que essa discordância que devia ponderar na decisão – e não ponderou rigorosamente nada – houve um conjunto de argumentos, houve pareceres técnicos relevantes que foram entregues sobre os riscos associados e legitimidade de estar a dar um tipo de utilização privada do espaço marítimo à Eni/Galp.

Portanto ficámos a perceber que este governo sofre verdadeiramente de um problema de esquizofrenia porque é capaz de dizer e de traçar objetivos que nos parecem verdadeiramente excecionais para começarmos a programar que em 2050 teremos um país neutro nas nossas emissões de carbono. A Suécia também tem esse objetivo para 2045, a Alemanha também está na linha para essa mesma data.

O que é facto é que ao mesmo tempo que temos esta aposta, estamos a começar um ciclo que não tem sentido, que faz parte do passado. Ir à procura de petróleo. Isso tem sido muito visível nas decisões deste governo. Este Governo quer sempre satisfazer gregos e troianos. Vejam-se as barragens. Suspendeu umas, pôs outras em em stand-by, mas deu o OK ao Alto Tâmega. Recusou a Portfuel, pôs a Repsol/Partex em suspensão e deu o OK à Eni/Galp.

O problema é que, da forma como os contratos como estão desenhados, se mais tarde o governo quiser recuar os custos desse recuo serão dezenas de milhões de euros. Isto quando havia argumentos técnicos suficientes para não ter atribuído o título de utilização privada e o Estado não teria de pagar um euro de indemnização ao consórcio Eni/Galp por não permitir avançar com o furo.

Há alguma coisa que se possa fazer de momento? O que é que a ZERO está a fazer nesse sentido?

A ZERO está a trabalhar com outras 11 associações, um trabalho grande de conjunto onde nós, do ponto de vista legal e público vamos procurar contrariar o que conseguirmos. Basicamente é esse o nosso objetivo. Há um movimento que é o ‘Futuro Limpo’, onde temos reuniões importantes de troca de impressões e de estratégias para tentar contrariar esta intenção política que vai no sentido contrário dos compromissos pretendidos.

*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.

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