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"É extraordinário verificar como, à primeira crise, isso nos estilhaçou"

Tensões diplomáticas sem precedentes, a ascensão do populismo e do extremismo, o papel - mais importante do que nunca- da NATO, e a maior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial são os temas analisados por José Alberto Azeredo Lopes na segunda parte da entrevista ao Vozes ao Minuto.

"É extraordinário verificar como, à primeira crise, isso nos estilhaçou"
Notícias ao Minuto

21/03/17 por João Oliveira e Elsa Pereira

País Azeredo Lopes

Acusam-no de ser "alarmista" quando diz que nem Portugal - considerando a sua localização geopolítica - está a salvo de um ataque terrorista, numa altura em que o populismo e o extremismo andam de mãos dadas. Não rejeita o rótulo, mas prefere o da honestidade, ainda que considere, até, que é uma afirmação banal.

O ministro da Defesa lembra que as Forças Armadas são, hoje, um pilar essencial para a nossa segurança  e que a pasta de que é titular nunca teve um papel tão relevante como agora. E não é só em Portugal, é no mundo inteiro.

Sobre a crise dos refugiados, Azeredo Lopes deixa um recado: não é com "campanhas para os coitadinhos" e muito menos "com muros" que se resolverá o problema.

A Turquia e a Holanda estão perante uma crise diplomática grave. Enfrentamos uma nova ameaça extremista, considerando o golpe de Estado falhado na Turquia e o referendo para as alterações constitucionais que darão mais poder a Erdogan?

Não é a primeira vez que são promovidas, por via referendária, alterações constitucionais na Turquia. Em segundo lugar, estes incidentes – que eu considero muito tristes – são explicáveis pelas circunstâncias de ambas as partes estarem activissimamente envolvidas em processos eleitorais. É uma tempestade perfeita pelas circunstâncias de A e B estarem envolvidos em processos eleitorais digamos até emocionalmente importantes e cada um, eventualmente, ter pensado – não querendo eu presumir isso – retirar vantagem ou procurar evitar desvantagem eleitoral consoante a resposta que desse ou não desse a esta crise.

Sou um otimista e acho que ainda vamos claramente a tempo de lamber as nossas feridasEssa questão que coloca em relação à Turquia também se pode colocar em relação a países europeus. Não gosto muito de falar em derivas democráticas mas é verdade que há elementos de preocupação em várias situações que seria fácil arrolar. Basta ver as diferentes posições tomadas durante a crise dos refugiados. Sou um otimista e acho que ainda vamos claramente a tempo de lamber as nossas feridas. Mas é extraordinário verificar – e digo isso com muita pena – como, à primeira crise grave, de 2008 em diante, isso nos estilhaçou literalmente.

A Turquia continua a parecer não ter medo de nada. Apelida a Alemanha de nazi, ameaça até quebrar o acordo que selou para o acolhimento de refugiados. Há algo que a União Europeia possa fazer para acalmar tanta hostilidade neste momento?

Estamos a falar, apesar de tudo, de uma linguagem político-diplomática que pode ser mais ou menos veemente. Se há coisa a que me habituei a não valorizar mais são as invocações do nazismo ou do fascismo. É uma regra de ouro. Cada vez que há um excesso verbal, temos tendência para caminhar para esse tipo de desqualificações. Devo elogiar a resposta holandesa e a resposta alemã, que foram serenas e procuraram não dramatizar nem atirar mais gasolina para o forno. Acho lamentável – não vou esconder que tenho muita pena – que estejamos a falar de um país que ainda recentemente tinha uma vontade firme de pertencer à União Europeia.

O falhanço da adesão da Turquia à União Europeia contribuiu – em certa forma – para elevar o 'narcisismo' de Erdogan?

Não falaria em narcisismo. Está a falar de um país tolerante, que por razões que têm a ver com situações conflituais na região e nomeadamente na Síria foi obrigado a virar-se claramente para o Oriente – quer em termos de segurança, quer em termos de alterações do quadro geopolítico que resultam da relação mais conflitual que temos hoje com a Federação Russa. Temos um regime, que era o de Bashar Al-Assad, que todos pensavam condenado e que, aparentemente, funciona como elemento de proto estabilidade num país como a Síria, com uma intervenção direta da Federação Russa e com o envolvimento de todos os países da região. As relações de proximidade com a Síria contendem necessariamente com questões vitais para a segurança dos Estados.

A União Europeia só foi construída para o bom tempo. A primeira vez que choveu, parecia que tínhamos perdido a cabeçaSe pensarmos que, numa forma de que eu não me orgulho, encaramos a questão dos refugiados como uma ameaça securitária dramática para a nossa existência, e o Líbano é o país que tem no seu território mais refugiados do que todos aqueles que alguma vez foram recebidos na União Europeia, se calhar devia obrigar-nos a pensar muito seriamente o que é que nós estamos a construir como modelo. Até por razões egoísticas. Uma das razões da prosperidade europeia foi a circunstância de os outros nos verem como um exemplo, exemplo soft e não de ‘hard power’. Hoje não tenho a certeza que a imagem de valorização que era feita da nossa democracia e do nosso respeito pelos Direitos Humanos funcione da mesma maneira.

Há várias licões que aprendemos. Como disse uma antiga comissária italiana, nós esquecemo-nos de que a União Europeia só foi construída para o bom tempo. A primeira vez que choveu, parecia que tínhamos perdido a cabeça. No fundo, percebemos – hoje com mais humildade, na altura sem saber muito bem o que fazer – que não tínhamos sedimentado o suficiente as nossas sociedades e que tínhamos apontado para modelos unívocos de eficiência económica e financeira; e o desastre que foi o modo absolutamente monolítico como encarámos todos os casos de crise que enfrentámos – e Portugal sofreu isso na pele – mostram como porventura cometemos erros muito graves.

Trump tem razão quando diz que a NATO é obsoleta?

Trump já disse que a NATO era obsoleta e depois veio fazer declarações de amor à NATO. Mais uma vez, procuro ver nessa dimensão obsoleta que ele atribuiu à organização uma crítica - usando termos que eu nunca utilizaria - ao facto que ele depois retificou ou que outros clarificaram por ele. O que é que eles disseram? A NATO é uma organização que nasce em 1949 e que, no fundo, batiza o início da Guerra Fria. A NATO está concebida como uma organização político-militar de defesa de um sistema de aliança em que os que estão dentro criam um sistema defensivo contra um inimigo externo. Independentemente de quem é o inimigo, a verdade é que a organização foi pensada para um modelo bastante convencional. Quando surgem fenómenos como a Al-Qaeda, como a promiscuidade entre Estados e entidades não-estatais, como proto Estados, grupos armados cada vez mais organizados, a dimensão transnacional que nós não conseguimos perceber durante anos.

As pessoas acusam-me de ser alarmista, mas acho que seria desonesto dizer que Portugal não está sob ameaça do terrorismo transnacionalLembrem-se do tempo de que precisámos para ser eficientes na luta contra a Al-Qaeda. Qual foi a nossa primeira reação? Reagimos ao vinho novo com outros velhos. Porquê? Invadimos o Afeganistão e porquê? O ataque era de tal forma esmagador que só podia estar num Estado, não podia ser uma organização terrorista. Nós não atacámos essencialmente a Al-Qaeda. Nós atacámos o regime talibã porque achávamos que ele é que controlava a Al-Qaeda, mas quando caiu o Afeganistão, a Al-Qaeda não caiu. Depois houve vários ataques: Madrid, Bali, Londres e tantos outros. E a NATO teve dificuldade em adaptar-se ao modelo em que tem algo que não é territorialmente palpável. Eu não posso lançar blindados contra a Al-Qaeda, não faz sentido. Esse debate levou a que o combate contra o Daesh, a partir de 2014, fosse essencialmente assumido por uma coligação de Estados – em que Portugal está integrado – e que passou a intervir em dois teatros de operações. Primeiro no Iraque, depois mais na Síria e agora na Líbia. Ou seja, a NATO teve de enfrentar - e Portugal martelou sem fim nesta matéria – que era tempo de uma segurança a 360 graus, o Flanco Leste, a criação de ‘battle groups’, etc. Mas não estamos a fazer o suficiente no Flanco Sul. E porquê? Por uma questão de racismo? Nada disso. É porque, a sul, nós não podíamos mobilizar divisões nem ‘battle groups’. É este debate que está em apuração atual da organização e também por isso a importância de alguns países do Sul – entre os quais Portugal – fazem uma reunião e enviam uma carta ao secretário-geral a dizer ‘Em Varsóvia, não pode ser só Leste, tem de haver também Flanco Sul’.

A dada altura, disse, e cito, "seria um desastre se o papel da NATO fosse diminuído". A questão é: há margem para o reforçar?

Há margem para não o deixar diminuir. Há margem para o tornar mais visível numa dimensão da Defesa dos membros da NATO, que é crucial, que é o chamado Flanco Sul. Já foram dados passos e, ainda recentemente, foi aceite a posição dos quatro países ditos do Sul – Portugal, França, Itália e Espanha -, que reuniram no Porto e foi feito um documento, a Carta do Porto, que enviámos ao Secretário-Geral e que teve uma adesão muito mais alargada do que eu próprio esperava. E isto significou o quê? Que na agenda da NATO entrou definitivamente o Sul. Ou seja, a NATO vai ter de pensar para lá de uma visão relativamente tradicional que está relacionada com ameaças convencionais. Relativamente à ameaça terrorista transnacional, discutem-se hoje missões de formação e treino, de capacitação em matéria de Defesa. E os países mais a Norte perceberam que falar em Sul é ridículo. Há algum país que possa dizer que está imune a ataques?

Os Estados, hoje, são como aquelas manadas com animais feridos em que vem logo o predador por trás para os capturar. E só agora é que percebemos

Nem mesmo nós?

Nem mesmo nós, evidentemente. As pessoas acusam-me de ser alarmista, mas acho que seria desonesto dizer que Portugal não está sob ameaça do terrorismo transnacional. Naturalmente que está, nem vou invocar sequer vídeos ou mensagens em que é referido o Al-Andaluz e Portugal especificamente. Não é para estar a valorizar. Mas, por definição, qualquer país europeu pode ser alvo de um ataque isolado ou mais organizado de uma organização terrorista desta natureza. Dizer isto é uma banalidade, mas serve para nós cidadãos termos noção de que a Defesa nacional não se faz ali em frente a Badajoz nem Elvas, faz-se muitíssimo mais e de forma mais eficiente projetando as nossas forças num sistema de segurança cooperativo para a República Centro-Africana ou para o Mali, onde temos uma situação muito difícil, com um inimigo – e não falo em adversário – muito eficiente e que, in extremis, ia conquistando o Mali se não fosse a intervenção militar francesa. Mas e daí que esta estratégia, feita pela senhora Mogherini para a União Europeia, define a fronteira externa de defesa do país. Curioso: É na República Centro-Africana que nós podemos evitar que o país resvale para o caos. E o caos, como sabe, é o terreno mais fértil para organizações desta natureza. É como aqueles bichos que apanham os animais feridos, aquelas larvas que se encrustam, é isso um bocado o terrorismo. A Nigéria ficou fragilizada, apareceu o Boko Haram. No Mali apareceu a Al-Qaeda. A Líbia está como está e sabe-se o que foi preciso fazer para evitar que de repente se tivesse colado ao Daesh. Os Estados, hoje, são como aquelas manadas com animais feridos em que vem logo o predador por trás para os capturar. E só agora é que percebemos.

Eu garanto – podem achar que vou mentir – que as pessoas falam das nossas Forças Armadas e do seu papel com muito respeito.Independentemente disso, é um interesse próprio e egoístico nosso – e as pessoas é bom que percebam – que se nós evitarmos que a República Centro-Africana resvale para o caos, como palco de conflitos armados entre grupos, é do nosso interesse que assim seja. Porque é ali que está o foco da criminalidade internacional. Se pudermos dar um contributo, tanto quanto possível, então estamos a projetar a nossa Defesa e a defender-nos melhor: estamos a valorizar o papel de Portugal como ator credível. Eu garanto – podem achar que vou mentir – que as pessoas falam das nossas Forças Armadas e do seu papel com muito respeito. Temos nesta área pessoas muitíssimo qualificadas.

A ascensão da extrema-direita tem contribuído para aumentar este clima de insegurança por todo o mundo ou é mais ao contrário?

É uma relação biunívoca. Recentemente, a insegurança é um dos palcos mais férteis para o surgimento da demagogia e para a mobilização das massas no sentido de extremar posições. Temos aqui dois problemas. Primeiro, a função da comunicação social, que é um desastre se perder a relevância que teve. Tinha o monopólio de um espaço que perdeu, mas não perdeu só isso, perdeu tudo. Isto significa que hoje, através das redes sociais, que é possível um pequeno grupo ser muito mais eficiente na promoção dos tais valores da intolerância que referiu. Nos países mais insuspeitos há hoje uma representação popular do medo, da revolta, da intolerância, que está associada e por isso é que eu tenho dúvida em saber qual é o ovo e a galinha nesta história.

Por fim, mas não menos importante, o que é que está a falhar na resolução da crise dos refugiados?

A questão dos refugiados já não se mede em milhares, vai medir-se em centenas de milhar ou até em milhões. Depois, tem situações de crise aguda e epidémica como aconteceu recentemente na União Europeia por medidas aliás discutíveis, algumas delas de contenção ou de controlo mínimo. Algumas foram benignas – ou seja, um controlo mais eficiente dos tráficos, atacando o traficante e procurando preocupar-se um bocado menos com aquele que merece a proteção -, ou seja, atacando o traficante e a sua fonte de rendimento, é mais fácil conter o fluxo de refugiados. Para que isto não seja interpretado como uma vantagem e a ideia de nos mantermos longe, ‘que vão morrer longe’, eu acho que a Europa vai ter de enfrentar seriamente esta questão.

Se pensamos que resolvemos isto com muros, estamos muito enganados. Demonstrou-se que se pensarmos que isso se resolve com campanhas para os coitadinhos, estamos muito enganadosIsso significa que não o está a fazer?

A associação entre a questão migratória e as questões de segurança e de Defesa ainda não está resolvida no plano europeu. Tanto que basta ver as soluções extremadas que alguns países adotaram, nomeadamente a construção de barreiras físicas no sentido mais literal do termo, para não falar em muros para impedirem a entrada do ‘inimigo’. Aquilo a que estamos a assistir é, por enquanto, a um controlo de danos, basicamente. O que não é mau, é bom. Agora, que a questão não está resolvida, não está. Que a questão não será perpetuamente resolúvel com medidas de controlo de danos, também não. Que a questão não é resolúvel assim vê-se pela circunstância de países charneira como a Turquia invocarem, vai não vai, e como instrumento de pressão política, uma eventual decisão de abrir ou fechar a torneira. É esse debate que estamos a assistir. Se pensamos que resolvemos isto com muros, estamos muito enganados. Demonstrou-se que se pensarmos que isso se resolve com campanhas para os coitadinhos, estamos muito enganados. Nem oito, nem oitenta. Eventualmente tem de se discutir quem beneficia ou não de um estatuto de proteção internacional, mas tenho a convicção de que não pode ser recusado esse estatuto. O que quer que seja que pensemos sobre o assunto, não vai resolver nada dizermos que não o queremos, porque vamos continuar a enfrentar essa questão, a bem ou mal.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.

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