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"Era muito à frente. Às vezes olhava para trás e via-me sozinha"

"Freak" e "revolucionária". Teresa Ricou, a primeira mulher palhaço de Portugal, é a entrevistada desta semana do Vozes ao Minuto.

"Era muito à frente. Às vezes olhava para trás e via-me sozinha"
Notícias ao Minuto

17/03/17 por Pedro Filipe Pina

País Teresa Ricou

À frente do Chapitô há uma mulher que mostra ainda não ter talento para abrandar. Foi a primeira mulher palhaço em Portugal, fê-lo num tempo em que o país ainda estava a aprender coisas sobre si próprio, coisas que se escondiam debaixo da vasta sombra de décadas do Estado Novo.

Um dia, Teresa Ricou decidiu criar o Chapitô, este espaço que é escola, é circo e até um bar com vista privilegiada sobre Lisboa. Foi há quase 40 anos.

O Vozes ao Minuto sentou-se à conversa com ela, num banco ao cimo da escadaria do exterior do Chapitô, com a tal vista sobre Lisboa ali por perto.

Falou-se da Teté e do Chapitô, do circo e dos portugueses.

A frase não é da Teresa mas costuma recuperá-la. Vamos usá-la como pergunta: As pessoas que não riem não são pessoas sérias?

Não sei se é uma blague ou algo acertado mas, como suposta cómica, acho isso. Não é dogma mas a vida, o mundo, não tem de ter nada contra a paz, a alegria, o humor, a qualidade de vida, a saúde, a saúde intelectual; tudo leva a um bem-estar e o bem-estar passa pelo riso, pela gargalhada.

O cómico vai dar a esse lado da transgressão e da ousadia, às vezes até incomoda muita genteO que a levou a decidir tornar-se mulher palhaço?

Foi a minha vontade de partilhar as coisas agradáveis da vida. Foi isso que me levou, por via do mundo do espetáculo, a descobrir uma forma divertida de estar e comunicar com o mundo. O cómico vai dar a esse lado da transgressão e da ousadia, às vezes até incomoda muita gente e eu desde pequena que tive esse lado da rebeldia muito presente.

Nós somos sete irmãos, há uns que saíram assim, outros assado. eu saí frita [risos]. É assim, o que é que eu hei-de fazer? Mas foi com muito prazer, tive uma vida muito boa, com uma família maravilhosa, mas eu era muito irrequieta e a minha rebeldia levou-me a, de vez em quando, ter de parar um bocadinho. Vivíamos em África, lá longe do resto do mundo, não havia escolas por perto. Estudei quase sempre como aluna interna, em colégios, para ver se ficava um bocadinho mais sossegada. Olhe, foi nisto que deu.

Estava à frente do seu tempo?

Sou uma pessoa revolucionária. As coisas pré-estabelecidas, desconfio delas. Temos de criar, reinventar em função de um bem comum, ao serviço da comunidade. Gosto muito de ouvir quem sabe, porque eu sei pouco, e aquilo que eu sei fui aprendendo a ouvir, a ler, a reconhecer o que é bom. E eu sou uma pessoa que escolhe muitas coisas. Gosto de trabalhar com lixo, por exemplo, estou sempre a recuperar as coisas mas não pode ser qualquer coisa. Tem de ser escolhido. A qualidade de pensamento e a exigência aprendem-se e eu aprendi ao longo da vida. Transviei-me um bocadinho das linhas pré-estabelecidas da sociedade de consumo, não sou pessoa de consumo, sou de recriar.

A carreira de palhaço seria sempre invulgar. Mas a Teresa escolheu-a mesmo sendo mulher e num país ainda conservador, educado por décadas de Estado Novo. Foi difícil?

O papel da mulher nesta sociedade era muito subalterno e eu nunca tive esse problema. Para já porque não me deixava submeter fosse a quem fosse. Tinha a minha liberdade, tinha a minha conduta natural. Sempre estive muito à frente, junto de movimentos políticos e sociais. Sou dinâmica, determinada, e por isso muitas vezes antecipei-me. Muitas vezes quando olhava para trás via-me sozinha, o resto ainda estava a pensar.

O meu pai era médico e ficou muito chocado por me ver a trabalhar atrás de um balcão num laboratórioSaiu de casa cedo [16 anos] e foi mãe cedo [19 anos].

Sim. Fi-lo também porque achava que tinha de participar na vida da família. O meu pai não precisava mas eu achava que tinha obrigação. Nós temos de construir a sociedade, e não estar à espera que alguém a construa por nós. Isso também é uma forma de consumo. Também comecei a trabalhar cedo. À revelia do meu pai fui trabalhar para os laboratórios Pfizer. Colava etiquetas atrás do balcão e já ganhava dinheiro, lá em Angola. O meu pai era médico e ficou muito chocado por me ver a trabalhar atrás de um balcão num laboratório. Isso não tem importância nenhuma, disse-me. Depois até cheguei a secretária. Uma pessoa tem de estar sempre com o olho aberto para as coisas melhorarem.

Voltou para Portugal depois do 25 de Abril.

Estava em França, exilada, não por razões políticas mas sociais. Estive sempre ao lado das causas e do que me parece importante para ajudar, no sentido de criar condições, que não sou uma pessoa de caridade.

Na cultura portuguesa ouve-se o ‘ah isto parece um circo’. Mas parece um circo porquê? Não pode serEra também uma questão de personalidade?

A minha família não é das artes mas fui parar ao circo, que para mim é um instrumento de trabalho, que também leva à mudança da sociedade. O Chapitô é trabalho feito. Mais do que feitio, é a minha forma de estar. Sou uma pessoa freak. Posso ficar o dia inteiro a apanhar sol, a olhar para o mar, a pensar, a não fazer nada, mas depois quando é preciso estar no lugar certo, estou cá, estou pronta.

Palavras como palhaço, circo, até artista, são por vezes usadas em português com sentido pejorativo. É uma questão cultural?

Completamente. É um problema da cultura portuguesa. Os palhaços são o que antigamente se chamava o bobo da corte. Eram eles que faziam a ligação entre o povo e o rei, tinham um papel fundamental, de denunciar, de fazer rir, que a rir se vai dizendo muitas coisas sérias. Mas a cultura – e nem vou dizer neste país, que eu adoro este Portugal e é aqui que eu vou ficar e vou morrer e daqui não vou sair – mas neste país maravilhoso a cultura não está na ordem do dia e tem de estar, para exatamente não se dizerem disparates destes.

Há palavras que têm essa conotação mal resolvida na sociedade. Na cultura portuguesa ouve-se o ‘ah isto parece um circo’. Mas parece um circo porquê? Não pode ser, é falta de cultura.

Portugal ainda é país de muito fado e pouco riso?

Um bocadinho. Mas por acaso o fado hoje em dia tem gente muito bonita a cantar, deram-lhe outra interpretação que leva a que esteja na ordem do dia. E foi pela malta nova, o que é muito interessante, não nos podemos é ficar por esse lado do fado de chorar a tristeza e a amargura, não. O circo também está a renascer e é preciso estar com atenção. Tal como no fado, é fundamental manter este diálogo entre o tradicional e o contemporâneo.

A imagem que muitos têm do circo ainda é a dos espectáculos com animais. Que pensa destes espetáculos?

Diga-se que o politicamente correto por vezes também é muito esquecido. Mas se realmente os animais não são bem tratados como deviam, o melhor é acabar. Até houve circos com condições para manter os animais mas estão sempre fora do seu meio ambiente, especialmente os de grande porte, que nascem e vivem em jaulas. Incomoda-me a ideia. Nunca trabalhei com esse tipo de animais embora até tenha trabalhado com galinhas, patos, com o cão, com o gato, animais domésticos. Quem tem esses animais como espetáculo está a passar algumas dificuldades mas está aí um grande movimento internacional contra isso e acho bem. Mas diga-se também que há circos espetaculares com animais e espetáculos maravilhosos sem animais, uma coisa não invalida a outra.

Estou um bocado esquecida da Teté, estou cheia de saudades mas não vejo o fundo ao tachoFaz distinção entre a Teresa e a Teté?

Não faço distinção mas estou um bocado esquecida da Teté, estou cheia de saudades mas não vejo o fundo ao tacho. Meti-me nisto [Chapitô] e, sem querer, apercebi-me de que era uma grande administração e tenho de fazê-la. Estava aqui a escrever uma frase [a tal de que demos conta na primeira parte desta entrevista] que ouvi agora da 'Inquietação', do José Mário Branco. “Eu não meti o barco ao mar para ficar pelo caminho”. Isto é para chegar até bom porto. Por isso vivo em constante [cantando] inquietação, inquietação, inquietação. [Risos]. Até comparo isto ao Spielberg, que faz aqueles filmes malucos, aquele mundo dele é toda uma máquina infernal – e se isto não estiver artilhado, não funciona.

Partilha os desafios?

Claro que partilho, mas partilho com quem quer partilhar. Não estou à espera porque tenho de continuar a andar. O grande objeto desta realização são os jovens e eles não estão aqui à espera que a gente esteja a discutir o sexo dos anjos para chegar a bom porto. As pessoas que não nasceram num berço de ouro como eu nasci têm obrigação de ser bem tratadas, caso contrário até me sinto mal, mas nem toda a gente tem esta noção. O mundo está num momento complicado e temos obrigação de o transformar. Tem de haver uma resposta para isto mas somos nós que a temos de fazer, não é o ditador que vem de lá de cima.

O erro atrapalha-me e nesse sentido sou frágil. Não posso errarO regresso aos palcos está nos planos?

Se conseguisse estar sossegada aqui com isto [Chapitô]. É preciso controlo administrativo e financeiro. Sem ser um pensamento economicista, mas isto tem de estar de pé, senão vai à falência. Mas tenho medo de errar. O erro atrapalha-me e nesse sentido sou frágil. Não posso errar. Lido com o erro todos os dias. Se um dos miúdos [com quem trabalhamos] foi preso é porque errou. E eu vou errar também? Não vou: tenho de lhes dar a certeza de que vão ter de sair daqui assim, de que errar é humano, sim, mas eu tenho de lhes dar outra retaguarda. Vivo numa constante contradição.

Já escreve ao computador?

Não, não. Tenho um telemóvel, é muito interessante para se ligar mas estão sempre a tocar na hora errada. Acho que também tenho medo de computadores, tenho a mania de que sou assim para a frente mas tenho fragilidades. Se estiver só com o computador, tenho medo de não conseguir falar com a pessoa. Às vezes fazem esse bloqueio entre as pessoas, estão todos num jantar mas está tudo a olhar para um ecrã. Não gosto disso, sou pessoa de falar.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui

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