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O (sub)mundo da mendicidade lisboeta e as histórias de quem nele habita

O Notícias ao Minuto não é indiferente àqueles que nada têm e, por isso, embarcou numa carrinha da Legião da Boa Vontade, para uma ronda de entrega de refeições aos sem-abrigo de Lisboa. Siga-nos nesta jornada.

O (sub)mundo da mendicidade lisboeta e as histórias de quem nele habita
Notícias ao Minuto

08:30 - 25/12/16 por M.L com Inês Esparteiro Araújo

País Pobreza

Avenida do Brasil, 20 horas, pleno dezembro, a poucos dias do Natal. A noite ainda é uma criança mas o placard da rua já exibe uma temperatura que não chega aos dois dígitos (9ºC).

A imagem de Cristo dá-nos a certeza de que estamos a chegar ao edifício da Legião da Boa Vontade, instituição de cariz social que se dedica a ajudar pessoas carenciadas, das mais variadas formas. Na aventura desta noite, o foco dos voluntários incide nos sem-abrigo que se concentram na zona do Saldanha, Marquês de Pombal e, por fim, Santa Apolónia.

Rodrigo, engenheiro informático e voluntário há três anos, coordena a ronda, auxiliado por um grupo de quatro voluntários, do qual o Notícias ao Minuto faz esta noite parte. Rodrigo não perde tempo e começa de imediato a ‘orientar as tropas’ e a distribuir tarefas. “Quem dá a sopa fica do lado direito, uma dá as colheres de sopa, outro oferece o chá” e por aí em diante. “Muita atenção”: O uso de luvas é obrigatório, porque até nestas bandas a ASAE faz um controlo apertado.

Apesar de o panorama nas ruas ser triste, Rodrigo quer certificar-se de que os voluntários não vão acusar essa carga negativa durante a ronda. “Divirtam-se”, “conversem com eles”, aconselha-nos, momentos antes de carregarmos a carrinha com os reservatórios de sopa, chá e sacos de pão. Hoje, diz-nos com prontidão, a comida não é tanta como habitualmente para evitar desperdiçar. Nas últimas rondas sobrara comida e acertar na quantidade de pessoas que vai ‘aparecer’ é sempre um tiro no escuro.

Está na altura de pôr os ‘corações apertados’ de lado e ir ao encontro de quem por nós espera. Uma noite que se pressente ainda mais complicada - há apenas três cobertores para distribuir de entre centenas de pessoas que vamos encontrar. “Nem sei como é que vou fazer, não sei mesmo”, desabafa Rodrigo, que se vê forçado a escolher os ‘afortunados’ que os vão receber. Um dilema entre outros que hão de surgir.

De dia, são as zonas mais movimentadas e caras da cidade, de noite a realidade muda de cor

Primeira paragem, pleno Saldanha. Fazem fila mulheres, homens, novos e velhos. Uns sem casa, outros ‘apenas’ com rendimentos insuficientes para garantir a alimentação. “Olha a dona Tina, já a pedi em casamento, mas não aceita”, mete-se Rodrigo, introduzindo-nos os amigos da rua. Logo ali, o primeiro cobertor entregue. Um açoriano – com sotaque profundo, sem qualquer amparo familiar – vai direto ao assunto. Rodrigo leva-o, com discrição, para outro lado da carrinha e entrega-lhe, secretamente, o cobertor. Se assim não fosse, gerar-se-ia uma confusão entre as largas dezenas de sem-abrigo.

O primeiro reservatório de sopa esgota-se logo no Saldanha. Há quem repita a sopa mais do que duas vezes e há quem traga marmita para ainda levar para casa. Os que a têm. Faltam ainda duas paragens, mas a esperança de que a comida irá ser suficiente mantém-se. No caminho, Rodrigo conta-nos a história de um "antigo empresário que caiu na miséria depois de um divórcio complicado. "Por vergonha de pedir comeu arroz durante um mês". É um entre os muitos casos de quem tudo teve e nada tem. "A vida dá muitas voltas" é a frase que melhor resume a vida destas pessoas.

O frio começa a entranhar-se e os casacos já não chegam para aquecer o corpo. Paramos a carrinha perto do Marquês de Pombal. O pano de fundo altera-se face ao que havíamos encontrado no Saldanha. Aqui, a fila é composta apenas por homens, aparentemente mais velhos. Para muitos deles, a rua já é a sua casa há algum tempo.

‘Einstein’ é um exemplo disso. Fomos avisados de que era um“resmungão”, que reclamava sempre quando as coisas “não corriam à sua maneira”. Numa frase: “O mais antipático de todos”. Pede-nos sopa pela segunda vez. “Está boa não está?”, perguntamos-lhe. Mas a resposta é apenas um abanar de cabeça, qualquer coisa como ‘deixem-me em paz’. “Como se chama?”, insistimos. “Porquê? Quer namorar comigo?”, atira. Começara-se a gerar proximidade suficiente e, ao terceiro prato de sopa de feijão, acaba por dar-nos o nome: ‘Einstein’ afinal é Serafim. Dorme num alpendre, com roupas que o mantêm quente.

Perto de si, mais quatro ou cinco a dormir. Um dos quais, um jovem alemão de 29 anos. “Como vieste aqui parar?”. Partiu de “Düsseldorf até Espanha”, queria apenas viajar e “andar de bicicleta”. Recebeu depois uma proposta de trabalho para Portugal e não hesitou. “Estou aqui há um ano. Não tenho dinheiro. Não falo português”. Nos breves minutos em que decide confiar-nos a sua história, há momentos em que a sua expressão facial congela. Fica sem palavras. Perde o raciocínio. Mesmo a tremer de frio, com as calças rotas, recusa um dos cobertores que podíamos dar. “Eu tenho um saco de cama. Podem dar a outra pessoa que não precisa”. Poucos minutos depois deixa-nos. 

Entre os que dizem ser ‘mecânicos dos dentes’ e os que só já perguntam pelo bacalhau do dia de Natal, o ‘Homem do cabelo para trás’ destaca-se. Já conhece o coordenador. Quer pô-lo a par das novidades. “O filho autista, de 29 anos, passara lá por casa” depois de largos meses sem aparecer, começa por contar. A “casa” de que fala é na verdade um “barracão” numa fábrica abandonada, onde, por estes dias, entra demasiado frio. Mais um cobertor entregue.

Passa por “doutor”, assim como faz questão de dizer. O sobretudo e o cachecol axadrezado reforçam o rótulo. Com uns biscates aqui e acolá vai conseguindo sobreviver. Nesta noite, o sentimento de culpa por acontecimentos do passado reina. Sabe que “foi injusto para com a mulher”, mas, assegura,  ela fez com que “chegasse a um limite”. Depressa começa a falar de política, escravos e de literatura espanhola. “Encontro livros, leio os que gosto, os outros vendo-os”, confessa, demonstrando saber mais do que aquilo que se aprende em frente a um televisor.

E quando a comida acaba?

À medida que a ronda se aproxima do fim, a comida escasseia. Outra das regras é que todos podem repetir quantas vezes quiserem tanto o chá como a sopa. Se tal forma de procedimento é “injusta” para os últimos, Rodrigo confirma. É um “problema que todos já identificaram”, mas até ao momento ainda nada foi mudado.

Última paragem, Santa Apolónia. O relógio já marca as 23 horas e os 9ºC de há duas horas já lá vão. Sentimo-lo no corpo. Além das mãos, pés e nariz gelados, também o coração havia de sofrer um duro golpe de realidade. 'Piriquito', 'Dom Juan africano', entre tantos outros, engrossam a fila ao lado da carrinha. É Rodrigo quem tem de dar voz. "Pessoal, disse-vos que ia à CP ver o que tinham para nos dar hoje. Deram 'bola'. Temos só umas carcaças, que vamos dividir por todos, e chá".

A sopa acabara-se na zona do Marquês. A desilusão no rosto de quem recorre à Legião da Boa Vontade é tanta quanto a dos voluntários. "Pode ser um chá, então!", respondem alguns. "Pelo menos está quentinho", ouve-se. Dois ou três chás servidos e eis que se acaba também.

A alcunha de 'Piriquito' reflete na perfeição a figura de Francisco. Um 'idoso' de 66 anos mas que aparenta ja estar quase na casa dos 80. Cabelos brancos e corpo franzino, a sua fragilidade não escapa a ninguém. Quando se apercebe de que não há chá, as lágrimas são mais fortes do que tudo o resto. Não será só pelo chá em si. “Não posso nem beber um chá quentinho? Já não há isso sequer?”. Para todos os que assistem, este é o momento mais comovente da noite.

Conta-nos a sua história. A mulher, "mais nova do que eu, veja lá", teve dois AVC e está internada. Por isso, Francisco agora vive com as duas filhas mais novas. “Tenho saudades da minha mulher”, balbucia com a boca quase serrada, negando, ao mesmo tempo, estar com frio. O tremor constante das mãos é culpa "da doença" e o evelhecimento do corpo resultado "de uma vida de muito trabalho".

Sem mais comida para dar, a única que coisa que os voluntários podem dar é conversa. E carinho. Coisas sem preço mas de valor incalculável. Há quem reclame dos poucos apoios, da "maldade que há por aí". "Ja cheguei a estar três, quatro dias sem comer", queixa-se 'Dom Juan africano'. Indignado, continua: "Nós somos pessoas, não somos animais!".  Há quem, lamúrias à parte, apenas se limite a distribuir postais assinados por si. Diz ser pintor. Ou melhor, "artista".

Chegara a altura de partir.  Aos poucos, todos os que ali se concentram vão dispersando e aos voluntários nada resta a não ser tirar as luvas - sem nunca as atirar ao chão, assim mesmo, no sentido figurado. Entre o "lamentamos mas...", lágrimas e o silêncio ensurdecedor do momento, fica a promessa de lá retornar com tudo o que faltara naquela noite. 

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