Em entrevista à agência Lusa, o especialista em mobilidade humana diz que a forma de conduzir a intervenção policial e as estratégias das polícias mudaram "muito pouco" neste último ano, apesar do debate que se seguiu após a morte deste cidadão na Cova da Moura, a 21 de outubro de 2024, por um agente da PSP que começa a ser julgado na quarta-feira.
Jorge Malheiros recorda que, na altura desta "terrível ocorrência", falou-se da "necessidade de se ter uma componente no domínio da atuação da polícia, que incluísse, que recuperasse as lógicas do policiamento comunitário, do chamado policiamento de proximidade, que se tinha perdido".
"Discutiu-se o princípio, reconheceu-se as vantagens que teria, mas creio que, tirando algumas exceções pontuais, uma vez mais não se deu o salto que o acontecimento devia justificar", afirmou.
Alerta, contudo, para a necessidade de não se diabolizar a polícia.
"Às vezes, há um certo discurso de alguns atores políticos, sobretudo à esquerda, de diabolização da polícia. Esta diabolização da polícia é um erro porque o que se deve criticar são ações e não a estrutura em si", diz.
Ao desvalorizar a função da polícia, corre-se o risco de afastar os candidatos a agentes mais interessantes, por um lado, e daqueles que exercem se acantonarem junto de "quem se apropria de uma espécie de discurso protetor das polícias, designadamente a extrema-direita".
"Isto permite uma captura da polícia pela extrema-direita, desvalorizando os valores que farão da polícia e da sua ação algo que está próximo dos cidadãos, que protege os cidadãos, que dialoga com os cidadãos, que defende os grupos mais vulneráveis, que são mais frágeis, as crianças, etc.", acrescenta.
Outro aspeto que Jorge Malheiros considera ter mudado muito pouco foi a forma como o mercado de habitação funciona e que "continua a criar espaços muito diferentes e a levar à criação de áreas potencialmente mais segregadas, onde se concentra a população com desvantagem".
Os preços das habitações em algumas áreas, "designadamente dentro da cidade de Lisboa, mas também às vezes nas periferias, impedem um conjunto de pessoas de aceder a esses espaços e leva-as a se concentrarem em áreas mais periféricas, criando uma cidade mais injusta, mais desigual, do ponto de vista residencial", diz.
Além da periferização de alguns grupos populacionais, regista-se uma ausência do Estado nessas áreas, que não garante "a qualidade do espaço público", seja a nível da limpeza, como do estabelecimento de pontos entre essas áreas e as outras da cidade.
Jorge Malheiros recorda-se de, há um ano, após a morte de Odair Moniz e dos tumultos que se seguiram, os poderes públicos reconhecerem a necessidade de alguma intervenção nestes espaços, como espaços integrantes da cidade.
"Quer do ponto de vista das ações imateriais (como a formação da polícia, o policiamento de proximidade, etc.), quer das ações físicas (requalificar os espaços, melhor circulação, mais espaço público, mais ligações entre os espaços e a sua envolvente), foram referidas várias medidas que seriam positivas e que podiam contribuir para uma cidade mais justa, para mais justiça espacial, mais justiça sócio espacial, designadamente na Área Metropolitana de Lisboa".
E lamenta: "Os avanços efetivos foram poucos e parece-me que uma parte daquilo que se propunha acabou por não ser feito".
Tal como há um ano, Jorge Malheiros defende que, "além da questão específica da forma de conduzir a intervenção policial e das estratégias das polícias, que têm de mudar, e que mudaram muito pouco", é preciso mudar "a forma de intervenção no mercado de habitação, no sentido de promover uma cidade onde as pessoas se misturam mais".
"Isso não mudou nada, pelo contrário, acho que a forma como o mercado de habitação funciona continua a criar espaços muito diferentes e a levar à criação de áreas potencialmente mais segregadas, onde se concentra a população com desvantagem, assim como as intervenções no espaço público, de conservação do espaço público, de melhoria da qualidade desse espaço público, de criação de espaço público onde ele não existe, por exemplo, em algumas áreas mais degradadas, como a Cova da Moura".
Odair Moniz, um cabo-verdiano de 43 anos residente no Bairro do Zambujal, morreu na Cova da Moura a 21 de outubro de 2024, vítima de dois tiros disparados por um agente da PSP que está acusado do crime de homicídio. O início do seu julgamento está marcado para quarta-feira, no tribunal de Sintra.
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